quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Interpretações e o que não é dito na música; e mais coisas

Coisas de Música

§ Lautenbacher e as sonatas e partitas
Consegui, finalmente, obter as Sonatas e Partitas de Bach pela Lautenbacher­. Tive­‑as – de resto penso ter mesmo sido a primeira versão das peças que tive – em disco­. Mas era uma Vox Box, e o número de «plops» e «clics» era insuportável­. Consegui, mais tarde – em Paris, na Fnac – as Sonatas do Biber por ela­. Mais recentemente comprei umas sonatas e partitas dela, mas tratava­‑se da primeira versão, mais seca e tecnicamente menos conseguida do que esta­. De há vários anos ando à procura desta versão. Encontrei­‑a na Fnac do Chiado, onde não ia há (também) vários anos.
Este disco dá uma visão muito diferene do Bach que agora se toca e se ouve­. A maior parte das pessoas dirá que é um Bach romântico, mas não me parece tal­. É mais um Bach sagrado e poderosamente expressivo do que propriamente romântico­. A não ser que «romântico» não queira dizer nada, como certamente não quer­. Os violinistas desta geração não eram particularmente românticos: afinal tocavam música contemporânea que os músicos barroqueiros nem sequer conhecem­. Desse modo, os violinistas como o Szering, que me parece a mim clássico – melhor exemplo ainda o Grummiaux – ou modernistas, como o Milstein (expressionista), seriam classificados como românticos, que é, definitivamente, o que eles não são­.
Os barroqueiros, com algumas excepções, renunciaram às emoções que, nos anos 60 e 70, passaram de moda: o heroismo, a alegria viril, a ternura e o lirismo­. Nessa altura, por influência da dureza do combate ideológico, por reacção contra os pais, por afirmação geracional, enfatizou­‑se uma contrapartida do «duro» que não existia antes: a sensualidade­. Em música, basta comparar o Walcha e o Leonhardt para se ter imediatamente a compreensão dessa diferença­. Sempre estive convencido de que o Leonhardt se tinha imposto porque os cravos que usava e a maneira como os usava, eram extremamente bonitos­. De resto, há uma sensualidade no Leonhardt que era praticamente desconhecida antes dele­.
O mundo passou a ser visto através de sentimentos corporais diferentes e mesmo a partir de conceitos diferentes­. A música «séria» nunca era música sensual­. Havia emoções sensoriais – basta ouvir a Pastoral do Beethoven – mas não me recordo de nenhuma música verdadeiramente sensual­.*1* Essas sensações eram evitadas na geração da Lautenbacher, do Kempff, do Walcha­. O «sério» opunha­‑se a muitas coisas – o frívolo, o sem significado – mas em igual porção ao sensual­. O sensual era visto como plebeu ou como desbragado­.
Com o Leonhardt, Bach passou a poder ser tocado sensualmente­. Para mim isso nunca foi uma boa solução­. Não vejo nada disso em Bach, exceptuando talvez em algumas cantatas mas mesmo assim de maneira pouco explícita em termos de música: linhas sinuosas, diatonia e tempos lentos­.
É, contudo, certo que o barroco não desconhecia a sensualidade­. Na música francesa – Couperin, por exemplo – ela é muito clara, mas nunca na música que não é de corte­. Lully não tem nada disso, Grigny muito menos­.
Havia, na primeira metade deste século e na tradição que me formou, a noção do sublime, que se perdeu completamente na música barroqueira­. Tudo isto para dizer que esta versão – o Bach da Lautenbacher – tem precisamente esse sentimento­. É a isso que os críticos musicais chamam «sostenuto»: já vi classificar assim o tipo de sonoridade da Lautenbacher­.
Ela tem tempi não rápidos, mas não lentos; um fraseado muito marcado e com gestos amplos, mas integrados num conjunto; finalmente, tem uma sonoridade impressionante: vibrante, grave, sonora, muito intensa­. É a isto que chamaríamos actualmente «romantismo», mas trata­‑se apenas da assunção do sublime, recusado agora por ridículo.

§ O Pop e o modernismo
A cultura pop é, em grande parte, responsável pelo sucesso dos barroqueiros­.­ Foram as pessoas educadas no rock e no pop – as gerações contestatárias meio instruídas – que passaram a consumir «barroco» em vez de «clássico», presumo que por oposição aos pais e ao passado­.­
O barroco era mais fácil do que o clássico porque o fraseado era mais curto, porque os ritmos eram mais claros e porque a música é, pelo menos no Bach mais fácil de ouvir, diatónica e modula pouco, como na música pop­.­ Era, portanto, fácil passar para o barroco­.­ A passagem foi facilitada porque o Harnoncourt deu voz às pessoas revoltadas: em vez de Beethoven, Brahms, Debussy, ouviam Bach­.­ Não podiam ser acusadas de serem brutais: afinal Bach é dito o maior compositor de todos, e isso dava­‑lhes a sensação de serem cultos­.­ Mas o que lhes trouxe realmente conforto foram as acusações do Harnoncourt relativamene ao passado: apresentou­‑se como um revolucionário anti­‑burguês e anti­‑convencional­.­ «Denunciava» vociferamente os «erros» dos seus colegas, chamando­‑lhes ignorantes – «uma mistura de genialidade e de ignorância»­.­ Quando, numa área nova, se chama ignorante a alguém e se sugere saber­‑se mais, é muito raro que alguém responda à altura­.­ Quase ninguém o fez além de se responder à letra: «baroqueux», «barroqueiros» é um termo do Karajan­.­ Houve musicólogos que, desde o início, se indignaram: não havia nenhum fundamento nas pretenções do Harnoncourt e companhia­.­ E houve quem não se fascinasse com o som dos cravos do Leonhardt porque percebia que a música tinha muito mais­.­ Foi sem dúvida em parte por isso que a música de órgão resistiu: estava em boas mãos e os órgãos eram sempre os mesmos: não se podia inventar um Schnitger novo porque o Walcha já os usava havia décadas­.­
Mas o mais relevante é que o Harnoncourt propunha, em termos musicias, uma visão de que as emoções de antigamente estavam completamente excluídas­.­ As versões do Harnoncourt eram, quase sempre, abruptas, duras, quase marteladas: incisivas, fortes, agressivas, quase, não tinham nenhuma ternura ou lirismo (daí a sua incapacidade total de dar um Vivaldi que convencesse alguém)­.­ Era uma visão completamente profana da música, uma visão por vezes convincente mas geralmente redutora porque retirava a música do seu contexto religioso­.­*2*
Podemos então juntar três elementos diferentes na mensagem que fez os barroqueiros triunfar: uma visão revolucionária contra o passado (embora em nome do passado mais antigo); uma simplificação das emoções, que eram mais congruentes com a brutalidade da mensagem revolucionária e, ao mesmo tempo, introduziam na música uma sensualidade desconhecida até então; ênfase num tipo de música aparentemente mais simples e mais próximo da música pop que até então se ouvia.
De modo que os barroqueiros venceram pela simplicidade e pela sua adesão a emoções que na altura eram importantes para a maioria dos universitários: ruptura com o passado, energia na enunciação, sensualidade em vez de lirismo­ e simplicidade da música que defendiam (os Brandeburgueses parecem fáceis, as Cantatas também).*3*
Este exemplo é interessante, porque mostra que as interpretações «históricas» são, paradoxalmente, dependentes da corrente da cultura dos anos 60 e 70: as ideias de libertação, de contestação, a criação de um mundo novo mas culto são todas comuns ao Harnoncourt – não sei nada do Leonhardt, que nunca se exprimiu muito – e à geração que tinha 20 anos quando dos anos 70­.­ Nesse sentido, o movimento «musicológico» não o foi: foi apenas mais um reflexo dos tempos, usando instrumentos antigos como concreção da revolução­.­ Foi apenas uma outra forma de negar as gerações anteriores, exactamente como os modernistas tinham feito, mas com outro espírito­.

§ O Tema da Rejeição do Passado
Dir­‑se­‑ia que não pode haver maior diferença entre o modernismo e os barroqueiros: entre o Walcha, que pode ser considerado um modernista na música, e o Harnoncourt ou o Leonhardt, vai uma diferença colossal: do abstracto ao concrecto­.­ Contudo há semelhança entre os dois movimentos­.­ Para me explicar tenho de me esquecer momentaneamente do Walcha e, em boa verdade, dos músicos anteriores aos barroqueiros­.

Modernismo — Os modernismos*4* parecem­‑me um movimento de reacção contra o passado­. Essa reacção tem, como todas as reacções, raízes sociais que são a existência de muita gente instruída que não conseguiu encontrar público e identidade pública satisfatória­. Por isso, essas pessoas tentaram afirmar­‑se reagindo contra o que os não reconhecia­. Além disso, houve consciência da necessidade de sair dos impasses do ­Séc­. xix­. Na música isso é perfeitamente claro com a transição de Wagner para Mahler e Schoenberg­. Se se modulava constantemente, se se podiam fazer harmonias com todos os graus da escala, se não havia intervalos bons e maus, a solução só podia ser racional e arbitrária­. Nas artes plásticas defendeu­‑se mais ou menos o mesmo, mas com base em outras considerações: a ideia de que a pureza era desfeada pelo ornamento e, mais tarde, a arbitrariedade do que se faz (convencionalismo, tal como em Schoenberg): se tudo é arbitrário, deixa de haver razão para aceitar códigos que se reconhece serem arbitrários e que são, em qualquer caso, limitativos. Isso leva, numa expressão simplista e tola, ao dadaísmo­ e, em expressões mais complexas, a certas formas de modernismo­ (conceptualismo ou formalismo, por exemplo). A procura de formas puras é uma formulação da consciência da arbitrariedade: algures deve haver uma forma pura, um sentido para as coisas (Mondriaan)­. No oposto da procura da pureza penso que se situa o cinismo do Picasso: a deformação como possibilidade estética­. O acto gratuito foi mais difícil de realizar nas artes aplicadas: ainda hoje se procura (Frank Gerry – é assim que se escreve o nome dele?) sem se atingir, porque não é possível gratuitidade do gesto numa arte funcional.
Todos estes casos, misturados e confundidos, são sempre revelação da recusa da tradição, tomada como impura, gasta, ou convencional­. É isso, no fundo, que unifica todos os modernismos­.*5* Entre um Jackson Pollock ou um Picasso não há nada de comum excepto a recusa da tradição.

A cultura pop — Curiosamente, todas as formas de arte foram, no ­Séc­. xx, substituídas na prática pela cultura pop­.*6* A cultura pop e o modernismo são diferentes nas suas origens­. Parece­‑me que o modernismo poderá conter a cultura pop, mas que o contrário seria sempre impossível­. O modernismo teve sempre em si a rejeição da dicotomia entre alta e baixa cultura, de modo que é potencialmente compatível com a cultura pop­. Mas a cultura pop é um fenómeno ateórico, aparentemente espontâneo, um produto directo do mercado­. Dado que o modernismo está associado, na maior parte das suas formas, a um discurso de esquerda, parece potencialmente incompatível com a cultura pop, fenómeno decorrente do capitalismo. Não foi isso que ocorreu em muitos casos – Jack Lang, ministro da cultura em França de um governo de esquerda, defendeu a importância das culturas urbanas e, especificamente, da cultura pop. Provavelmente foi a noção de que tanto o modernismo quanto a cultura pop negavam a distinção entre alta e baixa cultura que levou à assimilação da cultura pop pelo modernismo.
A cultura pop explica­‑se por haver, nas cidades, grande quantidade de pessoas sem qualquer cultura – nem alta nem baixa – mas com poder de compra­. Trata­‑se dos adolescentes do pós­‑guerra, que, num período de expansão económica e individualismo materialista e hedonista, procuravam, como qualquer outro grupo, forma de ver expressa na arte as suas preocupações­. Não existem grupos humanos sem cultura, de modo que apareceu uma cultura popular dos meios urbanos e que exprimia as preocupações das pessoas desses meios. As pessoas que podiam pagar por essa cultura eram, principalmente, os jovens, dada a fase de crescimento económico dos post­‑guerra. A cultura pop funciona então como uma espécie de projecção da não ideologia dos adolescentes desaculturados­. Reflecte, por isso, preocupações adolescentes: a imagem, sentimentos simples mas intensos – o mais das vezes amorosos –, a distinção entre o mal e o bem (sendo o bem a gratificação individual mais ou menos imediata e o mal o impedimento dessa gratificação)­.
Criou­‑se assim uma cultura muito simples­. A música dá uma ideia clara disso, mas também se encontram exemplos nos movimentos mais ou menos modernistas como o Roy Liechtenstein ou o Andy Wharrol, que exploraram a cultura infantil da imagem (bandas desenhadas, estrelas de cinema) então existente nos Estados Unidos­. O modernismo viu esses movimentos sempre como vanguardistas porque eram contra as regras dos adultos que faziam lei­. Citar uma imagem de uma banda desenhada é nulo como forma de arte (Wham, do Liechtenstein) mas significativo culturalmente porque se afirma que tem tanto mérito quanto uma obra de arte consagrada pelos poderes estabelecidos; as manchas do Jackson Pollock dizem precisamente o mesmo e, no limite, as figuras distorcidas do Picasso também­. É sempre a afirmação do alternativo, do diferente­, a negação dos cânones do passado.*7*

§ Modernismo, pop e Capitalismo
Neste sentido, o modernismo e a cultura pop podem, potencialmente, integrar­‑se no sistema capitalista moderno: ambas transmitem mensagens simples ou que podem ser explicadas em poucas palavras e que não requerem nem cultura nem grande diferenciação estética. Têm ambos um mercado quase imediato nas culturas urbanas órfãs de cultura e de história. Ambas funcionam como mensagem simplificada para uma camada de compradores psicológicamente simplificada.

§ Conclusão
A conclusão tem de ser sobre música, porque foi assim que iniciei este texto. Voltemos, pois, à Lautenbacher e às suas sonatas e partitas para violino solo.
Para compreender a sua mensagem não é possível aceitar apenas o som ou a voluptuosidade. O som é magnífico, o fraseado bastante claro e explícito. Mas está tudo ao serviço de uma emoção que está totalmente fora de moda: o sublime. Esse conceito é realmente romântico, no sentido de que o romantismo o reconheceu. Mas é igualmente clássico, barroco, medieval e, na verdade, existiu em todos os tempos, mesmo nas culturas primitivas em que se diz de uma coisa poderosa e que assusta que tem mana. Sempre ouve, em todas as culturas, momentos em que nos extasiamos perante uma coisa que nos transcende. Essa é a essência da emoção religiosa: sermos pequenos e insignificantes perante o sublimemente grande que nos ultrapassa.
É talvez essa a principal dificuldade que esta versão tem para as pessoas educadas nas culturas do pós­‑guerra e do hedonismo egocêntrico: a impossibilidade de, nessas pessoas, se poder considerar que há algo que, em importância e em sacralidade, as transcende. Nesse aspecto, a versão da Lautenbacher está datada: já poucas pessoas aceitarão que haja algo que as transcende. Agora as pessoas procuram a expressão dos seus problemas, e não a demonstração de que há, fora delas, uma transcendência. Não é necessário ser­‑se religioso para aceitar isto: é apenas necessário ter­‑se sido educado com a sensação de que não somos o centro do mundo e de que a vida não serve apenas para a satisfação das nossas vontades.
Esta é, pois, uma interpretação anterior à morte de Deus e à sua substituição pelo prazer do eu. É isso que a torna, talvez, tão difícil de entender para a maior parte das pessoas, que lhe preferem naturalmente o Milstein, que exprime directamente a angústia do ser e os problemas da expressão do eu.
É, pois, um caso interessante e que revela as diferenças abissais entre o sentir de hoje e o de há 40 anos. O que dizer, neste contexto, da tentativa de interpretar «correctamente» a música antiga? Mas esse é outro problema, e não o tratarei agora.

Rodrigo de Bettencourt Saraiva de Sá

Lisboa, 2­‑3 de Julho de 2008
*1*O fado, esse sim, era sexuado, sensual, húmido de alcova, mas era precisamente desprezado por ser isso­.
*2* O Leonhardt não procedeu da mesma maneira: como sensual que é, é também místico, como o veio a revelar nos seus discos mais tardios e mesmo, sem ser em Bach, em reportório organístico do ­Séc­. xvii que tocava no final dos anos 70 (há uma ou duas cantatas gravadas pelo Leonhardt por essa altura que são convincentes nesse aspecto, também, embora eu o ache mau maestro)­. Mas não é negável que o Leonhardt dos primeiros discos é extremamente inferior àquilo que veio a ser e àquilo que na altura o Walcha ou o Anton Heiller faziam­. Em qualquer caso, o Leonhardt aparecia sempre ligado ao Harnoncourt, que era quem escrevia os textos de apresentação.
*3*Não referi aqui o Reinhardt Goebel: é o típico rocker que passou para um reportório sério e que, diria eu, nem sequer compreende bem: tudo é tocado a partir da voz de cima, sem qualquer atenção ao contraponto e com tempi de rock’n roll. É significativo que seja um dos intérpretes mais venerados pelo público entusiasmado pelos «barroqueiros». O mesmo para Andreas Staier, cravista abrupto e rápido.
*4*Não há um modernismo­. Há vários movimentos independentes que apenas partilham a rejeição do passado­. Por isso há tantas posições diferentes­. Tomarei aqui apenas a noção de rejeição de passado e será esse o significado do termo que usarei­. Interessante ver os Concepts of Modern Art, apesar da baboseira­.
*5*Na música, Harnoncourt, mais do que qualquer outro dos barroqueiros históricos, seria classificado como modernista e, mais especificamente, como expressionista, utilizando as formas antigas para exprimir os conflitos do nosso tempo­. Reinhardt Goebell, menos musical, ou pelo menos menos culto ou menos inteligente, acentuou ainda mais essa tendência.
*6*Incluo no termo «cultura pop» o rock’n roll. Independentemente de muita gente ficar chocada com a assimilação do rock ao pop, o facto é que pertencem à mesma família e que o pop inclui o rock.
*7*É exactamente no mesmo espírito que se deve compreender o entusiasmo do Séc xx pelo étnico­. Antes do modernismo, o étnico era, principalmente, o pitoresco: tinha­‑se coisas étnicas como exemplos, em vitrinas, em colecções, tal como se tinham animais empalhados ou quadros de borboletas­. Actualmente o étnico ganhou autonomia: pode­‑se mobilar uma casa em estilo étnico tal como se pôde procurar inspiração artística em estilos que não são ocidentais­. Trata­‑se, mais uma vez, de negar a herança especificamente europeia e enfatizar outros modelos­. O processo é circular em termos filosóficos: afinal não há ênfase na criação original, apenas se procura um outro modelo­. Mas funciona em termos sociológicos e de produção de arte porque se consegue cumprir o único princípio que realmente está em causa: a rejeição do recebido, a recusa da tradição­.

sábado, 25 de junho de 2016

EUREXIT

A ideia da Europa foi, sempre, uma ideia de intelectuais (pode-se ler Denis de Rougemont – 28 siècles d'Europe – sobre este tema).

Isso porque «a Europa» implica uma visão distanciada da cultura europeia no seu conjunto e das necessidades geo-estratégicas de uma zona, finalmente muito pequena, do mundo (a Europa é uma península da Ásia). Essa visão distanciada apenas uma pessoa culta a pode ter.

O povo acredita no que vê e conhece. E, por isso foi, sempre, insensível à ideia da Europa: é regionalista, nacionalista, racista e tem desconfiança e medo pelo que é diferente de si.

Esse regionalismo, associado a uma aberração intelectual da supremacia racial e cultural da Alemanha, levou às duas guerras do Sec xx. E tornou, no espírito de toda a gente que conheceu essa guerra, horror profundo por nacionalismos.

Assim, apesar de sempre ter havido sentimentos espontâneos de nacionalismo e regionalismo, nunca foram expressos por partidos políticos (até Le Pen) porque havia vergonha de se ser associado com o as ideias alarves que levaram ao nazismo. Essa vergonha era mantida por uma censura intelectual baseada na afirmação de que qualquer forma de nacionalismo era vizinha do nazismo.

Agora esse argumento deixou de pegar. Os velhos que viveram o tempo da guerra morreram; os velhos de agora são os nacionalistas que foram censurados durante a segunda metade do Séc xx. Os ideólogos da união também morreram ou estão a morrer e perderam influência.

Sem a memória da guerra e sem os próprios ideólogos da união post-guerra, deixou de haver vergonha de se ser nacionalista.

Rapidamente apareceram os demagogos que se aproveitaram do espírito bairrista, regionalista, nacionalista e do medo da diferença.

O Reino Unido é o primeiro caso. A França será, talvez o segundo, segue-se a Holanda.

Pode ser o fim da Europa unida.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Carta a uma rapariga que perdeu um grande amor


CARTA A UMA RAPARIGA QUE PERDEU UM GRANDE AMOR

Sei como te sentes. É toda a vida que parece que se foi, é o próprio chão vivencial que parece que nos foge. Não há rumo, nem sentido. Não há futuro nem passado, apenas o presente e a pavorosa angústia que o preenche. O passado, e com ele o sentido, foram­ te retirados. Tudo o que era teu, teu e d’Ele, não é, de momento, de ninguém. Foi tudo como que amputado, como que decepado e sangra. Tudo dói. Os únicos momentos suportáveis são quando dormes, quando não te sentes. Queres morrer, mas falta­ te a coragem. O não ser parece­ te um sono de que não se acorda e de que avidamente não queres acordar. 

Tudo quanto tinhas era teu, mas não apenas teu. Era vosso, de ti por Ele e d’Ele por ti. E é isso que agora vês em toda a tua vida: tudo o que tens existiu entre ti e Ele. Tudo é um sinal dilacerante do que perdeste, tudo te diz que o que parecia ser nunca foi.

Sei como gostavas do musgo nas paredes de pedra, dos fetos debaixo das árvores. Sei como aprendeste a perder­ te n’Ele como te perdias na profundidade do verde do musgo. E sei que por isso já não consegues perder­ te em nada, porque perder­ te em alguma coisa te recorda que já te não podes perder n’Ele. Estás sozinha, sabes que ninguém te pode ajudar. Estás sozinha porque a beleza que sentes não a podes dar a ninguém e que, para ti, dói mais senti­ la do que negá­ la. E é assim que vai ser sempre, até encontrares a quem dar se ainda o conseguires fazer: a beleza, que dantes era esperança, sinal de amor, é agora recordação amarga. O musgo vai deixar de ser um poço em que entravas, uma esperança mágica, para ser apenas um bonito tom de verde. O vento nas folhas dos choupos, que antes te dava paz e te centrava a nostalgia do ser no amor que sentias e no conforto da companhia é agora apenas o ruído indiferente do vento a passar por entre folhas. É um ruído belo, mas é um ruído que te mostra apenas que a beleza se desinteressa de ti. Tudo deveria calar­ se, tudo deveria dizer­ te que a beleza já lá não está porque tu estás de luto, porque a beleza em ti já não existe. Mas ela está lá, indiferente ao teu sofrimento. E a beleza passa a doer, a mostrar­ te que estás sozinha. Já não celebra o teu amor e o teu ser, mas apenas te lembra de que tu és só, que mesmo a beleza se desinteressou de ti.

É nessa beleza que reside a tua salvação, mas também a tua condenação. Hás­ de conseguir compreender que essa beleza existe porque tu a vês, não porque a vês para Ele. A beleza é tua, não vossa. E vais, pouco a pouco, conseguir vê­ la. Mas nesse momento mudarás: compreenderás que és tu e o teu mundo, tu no singular, sem complemento. Nesse momento que perceberás que estás sozinha e que vais continuar sozinha para sempre, porque o que sentes será sempre apenas teu. Se conseguires voltar a encontrar a quem dar a profundidade do musgo que voltaste a sentir, renascerás. Mas se não encontrares ou tiveres medo de a voltar a mostrar ficarás em ti para sempre.

Não será fácil viver em ti. A beleza é algo que se dá. Só faz sentido achar belo o que se pode mostrar. Tu mostraste­ o apenas a uma pessoa. A partir de agora vais conseguir vê­ lo só para ti? Ou vais tentar mostrá­ lo a quem te comover, quase sem selecção? Se for esse o caso, viverás apenas em ti, e os outros a quem mostras serão apenas um suporte de ti próprio, uma espécie de montra dos teus sentimentos. «Vejam como é lindo». Ao compreender que o acto de mostrar é apenas equivalente ao acto de sentir, compreenderás que estás ainda mais sozinha, que mesmo os outros são apenas objectos, interlocutores sem significado, uma plateia que te serve de apoio concreto. Os outros serão apenas projecções de ti, apoios à tua própria emoção. Estás sozinha, tu e o que sentes.

Tu não és uma diletante do amor ou da beleza –­ duas palavras para a mesma coisa. Ao tratar essa coisa como algo que se mostra a qualquer pessoa sentes­ te a trair­ te até ao âmago. Podes tentar fazer do mostrar uma missão, podes ensinar. É um acto de ternura mas ao mesmo tempo de renúncia.

Tens de encontrar a quem dar que compreenda. Pode ser a crianças. Pode mesmo ser no abstracto: podes escrever, fazer música, criar a partir de ti. Os outros, se quiserem, que encontrem lá o que lhes aprouver. Estás sozinha, mas na medida em que conseguires objectivar a beleza que sentes num suporte que não sejam outras pessoas terás conseguido voltar a viver.

Podes ter a sorte de encontrar quem aches que mereça receber o que tens para dar e podes mesmo conseguir receber de novo. Se isso não acontecer, a solução é apenas dar sentido à tua própria beleza objectivando­ a para ti.

Viver quando se sente é difícil. Vive para ti e faz beleza ainda que não encontres a quem a dar.


sexta-feira, 15 de abril de 2016

Sobre a questão do género da palavra «cidadão»

Sobre a questão do género da palavra «cidadão»

Instalou­ se uma confusão em torno da palavra «cidadão» e do pretenso sexismo que há em dizer «cartão de cidadão». Para esclarecer isto é fundamental compreender duas coisas em primeiro lugar.
Primeira, que a questão da equacionação de género e sexo é uma consequência do facto de, em inglês, sexo e género corresponderem sempre («her face, his arms» apontam para cara e braços de um ser vivo de sexo feminino e masculino respectivamente). Segunda coisa, que sexo e género não coincidem sempre na maioria das línguas.
Um exemplo cómico e excelente desta discrepância entre o inglês e a maioria das outras línguas é espanto que os falantes do inglês sentem perante géneros que não correspondem a sexos: considere-se um extracto do cómico texto «The horrors of the German language», de Mark Twain:
[In German]« a tree is male, its buds are female, its leaves are neuter, horses are sexless, dogs are male, cats are female – tomcats included».
Connosco as árvores são do género feminino, mas isso não espanta ninguém: a ninguém ocorre que se há uma árvore terá de haver um árvoro. É que em português sexo (propriedade biológica de um ser vivo) e género (categoria gramatical de uma palavra) não coincidem necessariamente.

Sexo e género

Reforcemos então as diferenças:
Sexo é um atributo de um ser vivo: cão ou cadela, gato ou gata, cabra ou bode.
Género é uma propriedade das palavras, por exemplo, dos substantivos. Assim: barriga, peito, pescoço e cabeça não têm sexo, mas são do género feminino, masculino, de novo masculino e finalmente feminino. Para nós, como para qualquer falante de uma linguagem com géneros, é evidente que «pescoço» não é macho e cabeça não é fêmea – apenas são referidos em dois géneros gramaticais diferentes.
Claro que nos anglófonos que não conhecem outras línguas a confusão entre sexo e género pode ocorrer, dado que o género coincide sempre com o sexo. Assim, «his book, her face» — os pronomes têm género e esse género gramatical coincide com o sexo.
No inglês não existem palavras com género gramatical mas sem sexo. Isso ocorre, contudo, na maior parte das línguas. Daí o espanto de Mark Twain e a confusão criada em torno do conceito de «género» e, no caso presente, no «cartão de cidadão».

O Neutro Português

O alemão tem neutro. E o português? Tem sim: «alguém», «aquilo», «aqui» são neutros. Mas nos substantivos há forçosamente género masculino ou feminino. Significa isso que «árvore» é um conceito feminino? Claro que não porque «choupo», «pinheiro», «carvalho» são do género masculinos e fazem parte das árvores. Apenas significa que gramaticalmente têm género feminino, não que têm sexo feminino.
Mas há outro tipo de neutro. Imaginemos duas conversas possíveis: «Tem filhos? Sim, uma rapariga e um rapaz»; e «Plantei hoje duas árvores! Um castanheiro e uma figueira!» Compreende-se que «filhos» não se refere a sexo mas sim a género gramatical; o mesmo com árvore, como já vimos.
Para tornar a questão mais clara, consideremos dois títulos possíveis de um livro: «O cão: saúde e conduta»; e «A cadela e o cão: saúde e conduta». No primeiro caso entende-se que o livro é sobre cães, genérico que inclui machos e fêmeas. No segundo entende-se que o livro trata ou das relações entre cães e cadelas do ponto de vista da conduta e da saúde ou das diferenças entre saúde e conduta de cães e cadelas.
Há sexismo neste uso da linguagem? Mais um exemplo: «Tem cabras? Sim, 14 cabras e um bode». Ou seja. Não, não há sexismo, é o nosso neutro.
Assim, em português, o neutro pode ser do género masculino (o cão) ou feminino (a árvore).

Finalmente, o Cartão de Cidadão

«Cidadão», neste caso, trata do genérico – do neutro. Cartão de cidadão, livro do cão, cartão de eleitor, pastor de cabras.
Ou seja, pode parecer haver sexismo no inglês, em que género e sexo coincidem necessariamente, mas é evidente que não há nas línguas, como a nossa, em que isso não ocorre. O que há é apenas uso do nosso equivalente funcional do neutro que, neste caso, é expresso pelo género gramatical feminino.
Pode-se ir até um pouco mais longe. No caso de «cartão de cidadão» é gramaticalmente óbvio que o género é neutro: «cartão DE cidadão»; Se fosse «cartão DO cidadão» poderia pensar-se em sexismo. Mas DE cidadão tira qualquer dúvida porque o género é, neste caso, indicado pelo pronome, e o género é neutro, como em «cartão de eleitor».

Feminismo e sua importância

O feminismo é um movimento definidor da modernidade. Foi e é importante ao reclamar direitos iguais para os dois sexos. Mas o feminismo só é uma questão linguística em inglês, língua em que sexo e género coincidem sempre. Não em português, em que isso não ocorre.
Importar guerras linguísticas de uma língua que funciona de maneira tão diferente da nossa é, admitamos, uma perda de tempo.

sábado, 9 de abril de 2016

Radicalizações


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A propósito do livro de Ha-Joon Chang (23 things they don't tell you about capitalism, Penguin, 2010), que desmistifica completamente a ideia de que o liberalismo funciona –serve apenas para enriquecer quem é mais rico— alguns comentários sobre a situação absurda da direita portuguesa.

A direita portuguesa, era a classe média – profissões liberais, quadros superiores do Estado. Era «direita» apenas no sentido de que não era «esquerda revolucionária» e que era mais ou menos conservadora (em termos estéticos e éticos). Posta assim, a «direita» portuguesa inclui a maior parte das famílias que conheci.

Ora a direita, agora, reclama­ se neo-liberal, isto é, promotora do mercado livre; o que é uma maneira de permitir a quem já tem muitas posses poder investir e ganhar; não é uma maneira de defender as classes das profissões liberais e dos quadros superiores do Estado. Naturalmente, essa «direita» não seria liberal – estaria, nesse caso, a ser suicida.

Mas, na medida em que essa «direita» nada se revê nas «causas fracturantes da esquerda» (casamento homossexual, liberdade total de emigração, vergonha história do nosso passado, etc.) vai­ se identificando com o que está contra essas causas fracturantes. Ora o que está contra essas causas fracturantes é uma direita que, na ausência de programa económico específico, acabou por abraçar o neo-liberalismo. Ser «conservador» passou, assim, de repente, a ser semelhante a «ser neo­ liberal». A situação é absurda, porque o neo­ liberalismo não é conservador no sentido da direita europeia continental e, especificamente, de Portugal.

Muitas das pessoas que andam a namorar o neo-liberalismo fazem-no apenas por não haver, em Portugal, um representante claro do conservadorismo tranquilo, centrista, português. E o mesmo se passa na restante Europa continental.

Que valores representa esse «conservadorismo»? Valores cristãos, sobretudo: igualdade, certamente, mas elitismo ao mesmo tempo; liberdade, mas não licenciosidade e libertinismo ou liberalismo; o domínio da lei, igual para todos; acabar com o povo, no sentido de tornar toda a gente de classe média – de todos serem civilizados e cultos, na tradição cultural ocidental. É uma aurea mediocritas, um domínio de uma classe média remediada e culta (a ideia, em si, é romana, de Virgílio).

A aurea mediocritas é exactamente o contrário do que o liberalismo defende —o mundo é de quem o conquistar, independentemente de quaisquer valores— e do que a verdadeira esquerda defende —redução do indivíduo a uma estatística, indiferienciação dos sexos, que passam a «géneros», corte radical com as culturas do passado, arbitrariedade de todos os valores.
É possível, hoje, essa via do meio? Sim e não.

Vamos ao Sim.

Sim na medida em que há países que a seguem com sucesso – na Escandinávia, embora com alguns problemas, têm-no conseguido, embora com um radicalismo ideológico que parece ir deitar tudo a perder.

Sim na medida em que os países que seguiram políticas de mercado livre reais tiveram crescimentos enormes em pouco tempo mas que levaram directamente a uma crise quase sem precedentes. Portanto, se o liberalismo é inviável há lugar para essa via do meio.

Sim na medida em que na ausência de políticas de centro, redistribuidoras, há desigualdades brutais que levam a rupturas sociais. Segue-se que tem de haver essa via do meio ou que haverá caos.

Agora vamos ao Não.

Não porque os poderosos são os ricos e, como em todos os tempos, os poderosos pagam a escravos para que lhes escrevam literatura justificatória – agora são os tratados de economia neo-liberal, com aldrabices e tudo; no passado foram teólogos que defendiam a monarquia como determinada por Deus.

Não porque os sistemas do meio são, por natureza, instáveis porque em democracia não há maneira de conseguir que os governos, na esperança de serem reeleitos, não gastem demais com a segurança social, determinando depois cortes brutais (como recentemente sucedeu entre nós). Ou seja, um governo de centro tende, ele próprio, a gastar demais e comprometer o equilíbrio.

Não, finalmente, porque a opinião pública está radicalizada: há extrema-esquerda e neo-liberais. No meio já quase ninguém fala, e quem fala deixou de ser ouvido porque só se ouve agora quem fala grosso e demagógico.

Escrevo tudo isto porque noto, nos eleitores tradicionalmente do centro, quer PS quer PSD, tendências para radicalização. Seguindo o que a psicologia social econtrou, cada grupo se radicaliza ordeiramente onde «deve», à esquerda no caso PS à direita no caso PSD. Ninguém parece saber bem em que acreditava inicialmente: apenas sabiam o grupo de pertença. Isto é: «sou de esquerda? então agora radicalizo-me à esquerda! Sou conservador? Então passo a neo-liberal!».

E finalmente escrevo isto para não desistir. Para lutar contra o enfileiramento das pessoas em grupos ululantes que defendem aquilo de que nem sabem sequer os perigos que representa para elas próprias.

quarta-feira, 23 de março de 2016

Um dos poderes da religião

A questão árabe na Europa não tem solução nada clara (haverá quem me diga que politicamente correcto seria dizer «terrorista» e não «árabe»; mas já veremos porque não faço a dissociação).

Levanta uma questão. Há vários grupos étnicos extra-europeus na Europa; uns estão integrados, outros não. Mas, salvo erro, o único que forma revoltas armadas é o árabe. Porquê?

Creio que a explicação é, pelo menos em parte, a seguinte. Desde há pelo menos 30 anos que há árabes na Europa a afirmar que é preciso atacar os europeus (precisamente na Bélgica, a convite de um amigo árabe, tinha eu 25 anos, encontrei-me, num café, com um grupo de extremistas árabes. A questão não era religiosa, era simplesmente cultural: «tu deves morrer porque és europeu», foi-me dito com ódio no olhar).

Presumo que esse ódio exista também em comunidades africanas, talvez outras. Mas porque é que são os árabes a fazer os atentados?

Porque a religião lhes serve de fundamentação, porque a guerra santa vem no Corão. Bem sei que o Corão não diz só isso, que se pode pretender que é uma religião de paz (isto daria muito que comentar – é uma religião de paz depois da conquista total do mundo). Mas também diz isso. Importa perceber que não estou a criticar a religião islâmica. O que estou a dizer é que a religião —qualquer religião— tem um poder de união que nada mais tem.

E isso porque a religião, por definição, não se discute, está acima do indivíduo. E estando acima de cada indivíduo pode unir todos os indivíduos.

Parece absurdo a um espírito racionalista. Mas não deixa de parecer ser verdade.

Do ódio ao próximo ao amor do outro



  1. Há pessoas que não gostam das condições em que vivem. Chamemos­-lhes «descontentes». Encontram um bode expiatório nos outros, que acham serem os causadores da angústia que os descontentes sentem; e passam assim a odiar o próximo e, logo a seguir, a odiar as pessoas em geral.
  2. Para justificar um sentimento tão mal-visto, os descontentes generalizam esse ódio ao próximo e às pessoas na fórmula, aceitável, «condenar a sociedade» («a culpa é dos burgueses, dos judeus, dos comunistas, dos americanos», etc.)
  3. Ao mesmo tempo que desenvolvem ódio ao próximo, e ainda para se justificar, os descontentes inventam um «homem ideal», não «corrompido pela sociedade», homem esse que podem amar. Rousseau tornou essa ideia popular com o «bom selvagem».
  4. No nosso tempo, esse «bom selvagem» é qualquer pessoa, qualquer cultura que não seja ocidental. É aquilo a que podemos chamar «o outro». Atenção, que «o outro» (idealização) é diferente de «o próximo» (pessoas que se conhecem de facto).
  5. Esperar-se-ia que, quando «o outro» se revela ameaçador, as ilusões desaparecessem. Mas se o ódio ao próximo for suficientemente violento não será assim. Nesse caso, o descontente, ao ver um «outro» atacar o «próximo», identificar-se-á com o outro: afinal, tal como o descontente, o outro ataca o próximo e odeia-o.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Sobre a radicalização política.

Num artigo recente no Público, Pacheco Pereira defende que houve uma radicalização da direita; admite, também, que o Bloco de Esquerda promoveu a reedição da dicotomia esquerda-direita. Num artigo recente do The Economist lê-se que nos Estados Unidos há, igualmente, uma radicalização, sobretudo à direita.

Tomemos em consideração o que diz Pacheco, que é mais próximo da nossa realidade, e consideremos depois o efeito mais geral da radicalização à direita e à esquerda.

O que Pacheco diz é que a mensagem da direita se transformou numa realidade nas mentes das pessoas. O que foi assimilado é simples: que há que ter as contas certas e que esse argumento é mais forte do que os argumentos de justiça social.

Isto é verdade? Creio que sim. Compreende-se? Creio igualmente que sim.

Que é verdade em Portugal prova-o o facto de Passos Coelho ter ganho as eleições, quase com maioria absoluta, com esse mesmo argumento. No plano europeu essa ideia foi principalmente defendida pela Alemanha, mas conseguiu determinar a política da UE. Que se compreende mostra-o a necessidade de reformar o estado social europeu, mesmo antes do domínio alemão.

O facto de se compreender que os gastos com as políticas sociais (parte importante dos gastos do Estado) tinham atingido níveis incomportáveis não justifica que se diga que não houve um reforço das posições da direita liberal. Pelo contrário, os dois fenómenos estão ligados: houve tal reforço e em consequência parcial do insucesso das políticas demasiado generosas.

Dir-se-á: «a esquerda falhou e por isso a direita sai reforçada».

Mas não foi isso que se passou. Não foi «a esquerda» que falhou: foi o modelo social europeu, que não era particularmente de esquerda. Era partilhado pelo centro (social-democratas e democratas-cristãos). Ambos os grupos defendiam um Estado interventivo e com preocupações sociais. Na Europa esse modelo foi atacado por Margaret Thatcher; e, com a crise financeira, todos os países tiveram de o repensar.

Foi então que a direita mudou o discurso: de democrata-cristã passou, quase sem transição, a liberal. A razão é que a democracia cristã, isto é, a ideia do Estado Social forte e da economia parcialmente dirigida pelo Estado, falhou. As outras ideias de direita (nacionalismos, monarquia iluminista, etc.) estavam desacreditadas. Mas havia um outro pensamento económico «de direita» a emergir nos anos 80 — precisamente o neo-liberalismo, popularizado por Milton Friedman mas que nunca tinha deixado de existir, mesmo no tempo de domínio do keynesianismo. Foi essa ideia que os partidos de direita europeus abraçaram.

Os partidos políticos não têm tempo de estudar ciência política: têm de ganhar eleições, e para isso precisam de uma mensagem simples e clara. A da direita passou a ser que o mercado tudo resolve. Na Europa sabe-se muito bem que não é assim: num sistema de mercado completamente livre há acumulação de capital, assimetrias de rendimentos, instabilidade de trabalho e, claro, revoluções. Foi isso mesmo que o Estado Social pretendeu resolver. A direita voltou, então, a uma solução já testada (no Séc. xix) e rejeitada.

Pode então dizer-se que houve uma radicalização do discurso da direita? Não exactamente, o que houve foi uma mudança de paradigma: abandonou-se um paradigma em que o Estado tem intervenção na economia para um outro em que deixa de a ter. A «radicalização» vem de que o liberalismo é o oposto da democracia cristã: defende o apagamento do Estado em vez da sua importância como actor económico e social. Ou seja, há mudança de filosofia política por parte dos conservadores, não radicalização de uma posição conservadora anterior.

É então verdade, como defende Pacheco Pereira, que várias das reivindicações que passam agora como de extrema-esquerda não o são, de todo. Assim, a assunção, pelo Estado, da educação, da saúde, das estradas e caminhos de ferro, são todas elas, directamente herdadas do republicanismo. A preocupação com o ambiente, agora considerada um valor de esquerda, foi sempre uma preocupação de qualquer pessoa informada. Diferenças entre a esquerda e a direita eram mais baseadas na religião (casamento, divórcio, igualdade entre homem e mulher) e no nacionalismo/internacionalismo (defesa da língua e da cultura nacional ou internacionalismo) do que com qualquer dos anteriores.

Retomemos então a pergunta inicial: houve radicalização da direita? Não, houve mudança de paradigma.

Ora o liberalismo, no seu extremo (no seu absurdo, parece-me) defende que o Estado deve quase desaparecer. A saúde seria privada, a educação também, as comunicações, transportes, tudo seria resolvido apenas pela iniciativa privada. Esse modelo nem nos Estados Unidos existe, mas tem uma lógica mental tentadora: se todos seguirem o seu interesse farão aquilo que os outros querem para vender a mais baixo preço. É verdade, mas isso nunca ocorre: há sempre cartéis, grupos que tomam conta do poder e monopólios. O mito da ausência de Estado é, precisamente, um mito.

Mas tal como um socialismo primário («a terra a quem a trabalha») foi popular por ser fácil de perceber, um liberalismo primário («a iniciativa privada tudo resolve») também o é.

Tudo isto dito, é verdade que agora passa como mensagem de extrema-esquerda a antiga mensagem do centro europeu. Que se corre o risco de substituir a filosofia política pela economia (mais uma vez, ao arrepio da tradição política europeia). E, finalmente, de a direita voltar a defender uma sociedade assimétrica, injusta, potencialmente explosiva em termos sociais.

O exacto contrário da democracia cristã europeia.

A direita radicalizou-se? Sem dúvida.