sábado, 20 de outubro de 2012

Da alienação

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Em torno do conceito de alienação

A industrialização trouxe alterações muito grandes à vida das pessoas. Houve migrações do campo para as cidades e o trabalho deixou de ser artesanal para se organizar em cadeias de produção. As próprias cidades se orga­nizaram como grandes fábricas com separação de trabalhadores e classes possidentes. O trabalho fabril era duro e monótono e a vida dos trabalhadores parecia pavorosa às classes médias: cada operário desempenhava uma operação na cadeia de produção sem ter de compreender a relação do seu trabalho com o produto final. O próprio operário era como uma peça, cega, estúpida, de um maquinismo. Fora do trabalho os operários procuravam consolo no álcool e na prostituição. A impressão que se tinha era de uma turba cinzenta, despersonalizada, que vivia sem alma, sem significado, sem objectivos. É a isto que Marx chamou a alienação: afastamento da vida e do seu significado. 

Por contraste pensava­ se que o trabalho artesanal ou até rural era mais afortunado. O camponês ou artesão viveriam vidas menos alienadas porque seriam autores do seu trabalho: o camponês semeava, mondava, arava, plantava e colhia, num ciclo que compreendia e até certo ponto controlava; o artesão fazia peças que concebia ele próprio, de princípio a fim. Parecia aos intelectuais que essas vidas, menos padronizadas, menos especializadas, pediam uma maior participação do trabalhador porque o trabalho era planeado e executado por eles. Não estavam alienados do significado das coisas que faziam, eram autores e não meras peças de máquina.

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Esta defesa da importância da autoria das próprias vidas, da valorização da acção voluntária e do conhecimento e controlo das consequências das nossas acções no ambiente tem origem em duas ideias.

A primeira, mais óbvia, é o romantismo, que diabolizou o trabalho industrial e idilizou a vida nos campos: as fábricas são feias, monótonas, o campo é belo e sempre em mutação com as estações.

A segunda tem raízes muito mais antigas: trata­ se da afirmação, de Espinosa, de que a liberdade do homem é interior e depende da sua capacidade de conhecer o porquê do que faz. Esta afirmação está ligada à compreensão de que a vida é uma representação do mundo exterior, isto é, que o mundo exterior apenas faz sentido quando conotado por nós: o mundo em si não tem significado; o significado é dado pela mente, quando interpreta esse mundo.

O operário, que faz uma operação repetida sem fim não tem qualquer controlo sobre o produto final, nem precisa de o compreender; em contrapartida, o artesão ou o camponês têm de tomar várias decisões sobre como executar cada uma das várias operações necessárias ao resultado final. Trata­ se, pois, de trabalho autónomo, decidido pelo próprio trabalhador, que compreende o porquê do que faz e sabe decidir como o fazer em cada momento.

Em consequência disto, o artesão ou camponês possuiriam a vida em muito maior grau do que os operários fabris. Como pessoas, seriam mais ricas, mais auto­ determinadas, mais livres, menos alienadas porque possuiriam mentalmente o seu mundo em muito mais alto grau do que os operários.

Há uma distinção importante entre ser e ter, que deriva directamente da definição da liberdade como conhecimento dos determinantes das nossas acções. Ser é conhecer­ se e ao mundo, saber porque fazemos o que fazemos. Ter é simplesmente o aumento de poder sobre os outros e sobre as coisas. Espinosa opunha o conhecimento de si e do mundo à procura desenfreada de prazer material (posses, poder, sexo) e dizia que esta procura de prazer nos reduz à escravidão: sem compreender o porquê dos nossos desejos, limitamo­ nos a correr de um para outro como criaturas irracionais.

Marx e a sua teoria da alienação inserem­ se nesta linha de pensamento. O trabalhador fabril apenas poderia aspirar a ter para poder obter breves momentos de prazer e de esquecimento. Era um escravo totalmente alienado, definia­ se já não pelo conhecimento que tinha das razões do seu trabalho mas apenas pela procura de ter o suficiente para sobreviver e alienar­ se mais no álcool e no sexo pago. Seria necessário reorganizar a economia de maneira a devolver às pessoas a autonomia, a autoria, a reflexão sobre si próprias e sobre as relações com o mundo em sua volta.

Marx pensava que o homem está, sempre, em luta com o ambiente. Para vencer essa luta, organiza­ se associativamente (cooperativamente, diríamos agora) e decide, com autonomia e conhecimento de si e do seu mundo, as acções sobre esse ambiente. Seria este o objectivo da nova organização do trabalho: a democracia, poder dos trabalhadores para pensar colectivamente as suas relações com o ambiente. A solução que Marx acabou por preconizar não se revelou possível (abolir o ter e promover o ser exclusivamente) e há que dissociar Marx quer do leninismo quer do estalinismo que traem o seu pensamento, mas interessa ressalvar a ideia de alie­nação.

A pessoa alienada não tem interior, define­ se apenas pelo resultado das suas acções. A pessoa não alienada pensa­ se e ao ambiente para planear a sua acção. O primeiro é um corpo que gera comportamentos; o segundo é uma mente que conduz um corpo.

Esta distinção aplica­ se à própria definição da actividade dos pensadores, cientistas, intelectuais. Um intelectual deveria tentar atingir uma compreensão teórica de um campo e apresentar uma teoria original que dê sentido a um conjunto de dados. A actividade universitária era criativa, activa, e procurava dar significado a um campo de estudo. O resultado da ciência deveria ser uma representação do mundo que enriquecesse o espírito humano.

A posição que acabei de sumariar é anti­ tecnicista, humanista, defensora de que é o sujeito que estrutura o mundo e assim o compreende. A realidade objectiva só ganha sentido quando interiorizada pelas subjectividades individuais. Não é subjectivista no sentido de pretender que o significado do mundo se gera apenas por contemplação interior. Mas não é objectivista porque compreende que o significado das coisas apenas é dado quando a realidade é pensada, e porque compreende que esse significado tem origem nas nossas mentes e não nas próprias coisas. Pode­ se descrever como uma filosofia do indivíduo que se sabe centro da acção sobre o ambiente, acção essa que tem de ser representada na mente para poder ser planeada a seguir.

Mantenhamos presente esta ideia da importância da actividade do sujeito como factor de liberdade e de acção sobre o ambiente, e consideremos um ponto de vista muito diferente que surgiu também no Séc. xix.

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Esse outro ponto de vista responde por vários nomes –positivismo, pragmatismo, cientismo, tecnologismo– e tem origem no pensamento aplicado: a ideia de que o conhecimento serve para submeter o mundo ao homem. O conhecimento é visto de maneira bastante diferente do da posição anterior: não interessa o que uma coisa é, apenas como se comportará em tais e tais condições. O conhecimento é, pois, visto como previsão e não como representação intelectual autónoma.

O conhecimento das coisas deriva apenas da descrição: não se deve tentar compreendê­ las, apenas descrevê­ las e prever o que acontece. A ciência torna­ se objectiva por exclusão do sujeito, pólo de subjectividade.

A ênfase na previsão exclui pois a ideia de que o conhecimento é uma interiorização dos fenómenos externos e, sobretudo, um conhecimento de si próprio: o «Eu» não se vê, não é tecnologicamente identificável, de modo que é substituído pelo sistema nervoso, que deve ser conhecido para prever a conduta. Assim, todo o conhecimento seria de coisas e das condutas necessárias a manipular essas coisas.

O conhecimento das coisas permitiria o progresso, isto é, a subjugação do ambiente às nossas necessidades. O positivismo é tecnicista, objectivista, anti­ psicológico, concretista e utilitarista. O conhecimento advogado pelo positivismo é até regulamentado e cheio de proibições: é conhecimento sobre coisas úteis ao homem, de coisas que possam ser usadas para o progresso material e tudo o resto é proscrito.

A actividade do intelectual é, também, muito diferente: de pensador que procura compreender o mundo torna­ se um instrumento de descrição e comparação entre as várias descrições. Encontra regularidades e resume­ as matematicamente em leis descritivas. A actividade teórica passa a ser proscrita se for além da descrição e correlação.

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As duas posições não podem ser mais diferentes. A primeira (que não tem nome, mas que podemos designar por holismo, de holos, todo, ou de humanismo, pela sua preocupação com a pessoa) pretende o crescimento individual, o desenvolvimento de uma visão do mundo integrada que implica o conhecimento de si próprio. Nesta perspectiva, o conhecimento do mundo e de si são co­ dependentes e não há propriamente objectividade porque todo o conhecimento das coisas assenta nos processos de que cada indivíduo ou cultura dependem para construir uma imagem da realidade.

A outra, o positivismo, passa um traço grosso sobre toda a subjectividade, que considera marca de espíritos arcaicos, e considera a realidade como objectiva, pura, existente em si própria. Para a conhecer teríamos de nos despojar completamente da nossa subjectividade. Teríamos de ser como um maquinismo de recolha de dados, simples, sem subjectividade. O sujeito apaga­ se como centro do mundo, que passa a ser o exterior.

A diferença entre as duas posições pode ser ilustrada com uma comparação. A actividade desejada do investigador pode ser semelhante a uma máquina fotográfica ou a um pintor. A primeira apenas regista; a segunda interpreta e salienta as linhas de força. Sublinho que a máquina fotográfica embora inconsciente, não é completamente objectiva: impõe as suas características (cor, luminosidade, grão, resolução) ao objecto. O pintor, ainda que realista, está consciente da sua subjectividade e sabe o que impõe. É esta a diferença entre os dois grupos. O positivismo é mais ingénuo porque acredita na possibilidade de apagar o sujeito; o holismo humanista sabe que o sujeito está sempre presente porque qualquer fenómeno de conhecimento implica um sujeito cognoscente.

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O holismo humanista foi vencido não por não ter méritos mas porque o centro da vida intelectual deixou de ser a Europa, onde nasceu, e passou para os Estados Unidos. Na América, com a ênfase na tecnologia e na modificação do ambiente e um horror vitoriano a todas as formas de introspecção e subjectividade, matou­ se o sujeito activo. Substituiu­ o o «posto de trabalho», uma função impessoal que deveria ser desempenhada independentemente das características de quem o ocupa.

A tendência ocorreu primeiro na definição do trabalho nas empresas, mas cedo passou para o trabalho nas Universidades. Pretendeu­ se que o conhecimento era atingível por processos de descrição e tecnologia, que os conceitos eram pouco importantes (ou mesmo proibidos) e que a realidade era conhecível apenas pela anulação completa do sujeito de conhecimento que deveria passar a uma peça de maquinismo, a um puro recolector de dados. O sujeito define­ se, assim, pela sua conduta, pelos resultados objectivos que consegue produzir impessoalmente, pelos dados que consegue relatar e não por aquilo que pensa.

Em termos de trabalho, presume­ se igualmente que o sujeito se define por aquilo que ganha e que pode comprar: pelo Ter e já, nada, pelo Ser. O Ter vê­ se, o Ser sente­ se, e o que se sente não é objectivo e, portanto, não se pode considerar na análise. A ênfase no Ter e o desprezo pelo Ser é a posição oposta à liberdade interior de que falava Espinosa; tudo é definido apenas em termos de satisfação de apetites e tudo o que se procura dar às pessoas é o dinheiro para conseguir satisfazê­ los. Trata­ se da posição que os pensadores do Séc. xix criticaram: encoraja­ se a alienação e afirma­ se que é nesse estado alienado que as pessoas são mais produtivas.

Uma das consequências directas da ênfase nos resultados em detrimento das pessoas é a tendência à especialização. Se um trabalhador fizer apenas uma coisa será, pensa­ se, mais eficaz do que se fizer várias: pode ser excelente naquilo que faz, ainda que não saiba mais nada, e é isso mesmo que se procura, o especialista absoluto de uma determinada área. Quer­ se a rendibilidade máxima de cada pessoa independentemente dos custos que essa rendibilidade acarreta para a felicidade dessa pessoa.

Esta tendência reflecte­ se na ideologia educativa: formam­ se técnicos, não se educam pessoas. O conhecimento de si e das relações com o mundo é irrelevante, nem sequer é considerado. Deixa de se falar em liberdade interior para se falar apenas em eficácia. Uma pessoa vale aquilo que produz. Deixa de interessar a sua importância como ser social, como pessoa que entra em contacto com outros, como ser pensante, para ficar apenas um valor quantitativo: a relação entre quanto produz e quanto ganha.

Consegue­ se assim postos de trabalho eficazes, geradores de muita riqueza, mas sem qualquer autonomia intelectual. O trabalhador passa a ser uma peça de máquina produtiva, precisamente aquilo que Marx denunciava como alienação.

Os humanistas esperavam que as pessoas quisessem, precisassem, de se conhecer e ao mundo. Mas as sociedades industriais de origem tecnológica mostraram que nem sempre assim é. Se se der às pessoas dinheiro e se se lhes criar apetites sempre novos em que o gastar, supre­ se essa necessidade. As sociedades industriais modernas provaram que o humanismo não é uma aspiração das pessoas comuns e que a alienação não é (pelo menos não é só) fruto de uma conspiração dos detentores do poder. É uma tendência humana profunda e a liberdade é apenas uma aspiração de intelectuais, exactamente como Espinosa compre­endera. Criar cidadãos livres é, pois, uma tarefa para os intelectuais que compreendem a alienação e os seus males.

Mas os próprios intelectuais sofreram a pressão para se transformar em peças de engrenagem. São avaliados pela quantidade de produção, exactamente como qualquer outro posto de trabalho, em termos meramente quantitativos, pretensamente objectivos. Como a produtividade é tanto maior quanto maior o grau de especialização, os universitários (já nem se lhes deve chamar intelectuais) especializam­ se numa metodologia, num campo muito estreito e, fora dessa metodologia e desse campo sabem muito pouco. É­ lhes completamente impossível tentar compreender o mundo à sua volta e dar­ lhe sentido porque apenas o sabem pensar de acordo com o seu estreito olhar especializado. É sem dúvida por isso que há tão poucas propostas teóricas realmente influentes e relevantes desde meados do Séc. xx: foi esse o momento em que o modelo do conhecimento passou da Europa para os Estados Unidos e assumiu a sua forma tecnicista, tecnológica, quantitativa e especializada. Os intelectuais passaram, pois, de pensadores a instrumentos. Estão, eles próprios, alienados e não podem pensar a sociedade que os gerou. Ou seja, passaram de intelectuais, pensadores, a instrumentos, a operários alienados e impotentes que não sabem pensar­ se nem ao mundo.

Uma das consequências evidentes deste estreitamento de posições é o economicismo vigente no tempo presente: estamos a destruir o planeta e a sociedade em nome de uma definição de bem­ estar puramente quantitativa, especializada, sectorial, produto puro dos académicos tecnocráticos e fascinados pela quantificação: a riqueza. Consideramos que a competitividade, a agressividade, a ambição, a eficácia especializada são valores mais importantes do que o conhecimento do mundo e de si próprio e que o bem­ estar mental e social das pessoas. Em nome da competitividade as pessoas consomem quantidades impressionantes de tranquilizantes e anti­ depressivos e vivem vidas miseráveis. A ênfase no resultado visível, na conduta, na produtividade, triunfou completamente sobre a preocupação com o sujeito.

O triunfo da alienação e a derrota do humanismo são completos.

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O resultado desta derrota do humanismo e do domínio do resultado foi catastrófico. O planeta está em risco, a sociedade em agonia, a economia é impossível de prever, há assimetrias de riqueza impensáveis e escravidão da maior parte das pessoas a empregos em que servem os donos. Há crise económica, social, ecológica, psicológica. Não pode haver dúvida de que o sistema falhou ou pelo menos ninguém o pode eticamente defender. Não sei se outro sistema não falharia de outra maneira, mas não seria desta, pelo menos.

Temos de recuperar o valor de pensar, em conjunto, os problemas do nosso tempo. Não apenas em termos de economia (e tampouco de ecologia), não apenas em termos de rendimentos mas em termos de conceitos definidores do Ocidente: a liberdade, a cultura, a promoção do livre­ arbítrio, o auto­ conhecimento. Para isso é necessário voltar à ideia de pluri-disciplinaridade, de humanismo, de princípios que guiam as nossas vidas. Tudo temas que foram depostos pelo excesso de tecnicismo, pela avidez do poder e do dinheiro, pela rapidez e superficialidade dos tempos do capitalismo desen­freado.

Precisamos de uma ciência de conceitos compreensíveis por todas as pessoas, independentemente da sua formação, que nos permitam pensar o mundo. Temos de fazer entender que a função principal da ciência não é prever, mas conhecer; não deve ser apenas uma actividade que alguns híper­ especialistas praticam, uns para os outros, em laboratórios e gabinetes remotos e que apenas chega às pessoas como tecnologia. Deve ser também isso, mas, além disso, tem de ser a formulação de conceitos que permitam às pessoas cultas pensar o seu mundo e a posição que nele se ocupa.

É essa capacidade de ter conceitos para nos pensarmos a nós próprios e ao mundo que permite a liberdade individual e política: a não ser que se aceite que demagogia e democracia são a mesma coisa, a democracia é impossível sem que os eleitores compreendam e influam nas opções governativas. A base da democracia é que as pessoas possam escolher, propor, participar. É, portanto, o contrário da alienação que se vive no presente.

Temos, se defendermos a liberdade intelectual, cívica, pessoal, de promover uma cultura de conceitos e de valores humanistas e não apenas de tecnologia e de consumo: uma cultura do Ser em vez do Ter. Há que ir além das aparências, da pressa excitada de mostrar o mais simples e da tentativa de nivelar por baixo, e ir mais fundo, com mais vagar e atenção, e de tentar puxar o baixo para cima.

Há, pois, que pensar, reflectir, combater a tendência para transformar toda a gente em postos de trabalho que não se podem pensar. Não estou a defender qualquer forma de marxismo: essa teoria falhou. Uso o conceito de alienação porque é actual e é o resultado da tendência para ver o mundo como tecnologia sem sujeito. O que defendo é um regresso ao humanismo, à educação para a cidadania, para o conhecimento de si e da sociedade, para que as pessoas se consigam pensar e ao seu mundo. O que pretendo é que os intelectuais não se conformem com o estatuto de máquinas fotográficas a que o mundo moderno os votou e que ensinem a liberdade mental.

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Portugal está numa situação em que tem de modificar todos os seus valores: talvez possamos pensar na futilidade de agora, quando o sistema do Ter revela ter completamente falhado, o imitar (na economia, nas universi­da­des). Pensemos em alternativas mostrando a utilidade do Ser – podemos pensar­ nos e ao nosso mundo em vez de nos alienarmos simplesmente para melhor ficarmos à disposição de quem nos quer comprar e possuir.

Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva
Santo Estêvão, 19-20 de Outubro de 2012

segunda-feira, 2 de abril de 2012




Leitura da Bovary, 2012


Conheço muitas Bovarys. O mundo, sem vida interior autónoma que forneça a sua própria estimulação resulta sempre na procura das fontes de prazer fora de si. Quando não somos capazes de fornecer a nossa própria estimulação temos sempre de a procurar fora de nós. E queremos mais e mais, sem conseguirmos encontrar nada que nos satisfaça duradouramente.

Num romance, num filme, é­ nos apresentada uma figura que faz e sente o que nós não fazemos e nunca sentimos. Queremos então ser como essa figura. Parecer essa figura, sentir o que achámos que essa figura sentiu. As nossas vidas são maçadoras, sem cor, e procuramos estimulação fora de nós.

Copiar um modelo para sentir o que nunca sentimos mas entrevemos é uma espécie de receita de sensação: fazemos como x para sentir o que x sentiu no romance ou no filme. Assim, o bovarysmo ocorre com todos nós: dependendo da nossa capacidade de imaginação e da clareza do exemplo, copiamos um modelo para ser algo que não somos e assim sentir uma identidade que, sozinhos, não seríamos capazes de forjar. É, ao mesmo tempo, uma fuga de nós e uma completude de nós: sentimos que nos falta qualquer coisa e procuramo­ la no modelo que entrevimos que a tem.

A imitação do modelo pode ser feita quer para nós quer para os outros; como o que somos depende do que os outros acham de nós, os dois aspectos estão relacionados, mas há quem dependa mais dos seus próprios critérios de avaliação da comparação com o modelo, e quem dependa mais da avaliação que os outros fazem da comparação com esse modelo. Na Madame Bovary trata­ se do primeiro caso.

Nesse sentido, a vida é efectivamente um palco (mesmo que os actores e o público sejamos nós) e somos apenas títeres comandados pela nossa vontade de ser como o modelo que copiámos sem o ter criado. Não creio que seja verdade o que o Goffman diz, que somos apenas isso, porque tem de haver quem julgue a conformidade ao modelo, e esse juiz, por menos consciência que se tenha de si, somos nós.

Os animais são, nós queremos ser. Talvez isso seja o que nos torna uma «espécie em devir», como dizia o Lorenz, mas ao mesmo tempo é o que nos torna falsos, impuros no sentir, insinceros, actores perante nós e os outros.

Mesmo as emoções que se pensam mais puras – o amor entre duas pessoas – são sempre modelados num exemplo qualquer. Dois apaixonados pensam que sentem o mesmo e tentam transmitir ao outro o que sentem, para se sentirem compreendidos. Mas o outro interpreta outra coisa, que pensa ser o que o outro sente: e ambos pensam que partilham do mesmo espírito enquanto se enganam sobre como o outro sente esse espírito. Esse engano é mantido pela força da atracção física e mental que se sente durante a paixão; é depis dela que se percebe que a fusão nunca existiu senão na nossa mente. Mas não transmitimos o que sentimos: apenas tentamos, desesperadamente, fazer­ nos compreender e para isso recorremos à linguagem comum com o outro, que é sempre uma linguagem partilhada porque recorre a um modelo comum. Mesmo na paixão somos insinceros, embora sinceramente, e nos enganamos uns aos outros e a nós próprios.

As únicas emoções que podemos ter são aquelas que não se exprimem por expressões faciais ou por palavras. São as que sentimos na solidão connosco, sem palavras, sem gestos, sem caretas, sem nos imaginarmos a ser seja o que for. A música ajuda a dar forma a essas emoções. Mas mesmo aí somos insinceros porque a música foi feita por outro que provavelmente sentiu uma coisa diferente da que nós lá vemos; e se compositor e ouvinte sentirem coisa parecida, é porque têm o mesmo modelo de emoções, porque há um referente, um modelo, comum.

A emoção pura é solitária, sem palavras, sem elaboração, como a dos animais e das crianças que não falam. Tudo o resto vem de fora, não é nosso. Essa emoção pura é-nos acessível?

Se somos marionetas da cultura em que vivemos e queremos ser como os modelos que nos deram, se quase nunca somos nós próprios, que resta senão tentar compreender o que sentimos sem emoção? Pode-se não pensar no caso e viver as marionetas que somos, mas essa escolha não é para mim.


terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Ética, compaixão e lei

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Ética, compaixão e lei

Este texto foi escrito na sequência de um debate público com o Prof. Paulo Borges. A ideia do debate era confrontar as Éticas da Lei e da Compaixão. O resultado do debate foi, não surpreendentemente para mim, como se pode deduzir das últimas palavras deste texto, uma grande convergência a partir de posições muito diferentes. A conclusão que tiro é a de que, partindo de que ponto de vista for, a não ser que não defendamos o humanismo, seremos conduzidos ao mesmo tipo de ética fundamental. O que isto significa, parece­ me, é que temos todos um sentimento do «bem do grupo», da necessidade de diminuir o sofrimento e de evitar a destruição. Nem sempre foi assim, mas, como disse no encontro, «as pessoas de boa vontade convergem na ética». Lisboa, 27 de Janeiro de 2012. 
 

Função da ética e desenvolvimento do humanismo

A função da ética é a regulação das actividades sociais para o benefício da comunidade. Há comunidades de vários tipos. Na nossa espécie, aparentemente, as primeiras comunidades eram compostas de poucos indivíduos que formavam grupos; esses grupos tinham relações de rivalidade. Não é fundamentalmente diferente do que se encontra nas sociedades ágrafas que chegaram ao nosso tempo.

Nessas sociedades muito simples há muita competição entre grupos (há guerras constantes apesar do que se diz popularmente), e pode­ se demonstrar que o altruísmo é a estratégia que mais beneficia quer o grupo quer o indivíduo (porque o indivíduo precisa do grupo). Assim, em grupos muito pequenos, os indivíduos cooperam muito intensamente: um membro do grupo é considerado um irmão, e cada membro do grupo tem as obrigações de um irmão relativamente a todos. Esses grupos são fortemente identitários e muito cooperativos mas são agressivos relativamente aos outros grupos. Ou seja, a cooperação é limitada (estritamente) aos membros do grupo identitário. Os membros de outros grupos são vistos como inimigos que devem ser exterminados porque representam um perigo para o «nosso» grupo.

Há muitíssimos dados que ilustram esta realidade sombria. Contarei apenas três casos que revelam até que ponto este fenómeno é «natural». Há uns anos os antropólogos que estudavam uma tribo primitiva decidiram mostrar ao chefe como era a sua terra, fazendo­ o sobrevoá­ la de helicóptero. O chefe pediu para levar três pedras grandes. Quando se lhe perguntou para quê, disse que era para lançar na aldeia vizinha, para matar os adversários. Além disso, em muitíssimas culturas, a palavra que designa a tribo («Inuit», por exemplo) significa «pessoa»; os nomes por que se designam as outras tribos são, quase sempre, depreciativos. Nos bosquímanos !Kung a palavra que designa «estrangeiro» significa «mal» («dole).

Esta tendência para defender o grupo identitário e atacar o grupo rival ba­seia­ se no que pode ser um padrão inato da nossa espécie, que partilhamos, até certo ponto com outros primatas. Quando dois grupos se odeiam, assim que há uma assimetria momentânea, o mais forte ataca e os machos sentem uma pressão interna para matar selvaticamente os rivais e violar as fêmeas. Conhecemos casos demais deste fenómeno para o podermos negar por razões ideológicas.

Na sequência da agricultura houve muito mais alimento para partilhar mas ao mesmo tempo a sociedade tornou­ se menos igualitária e desenvolveram­ se reinos. Esses reinos faziam guerra a outros reinos, mas precisavam, para isso, de ser estritamente cooperativos. Não é, portanto, por acaso, que as regras «éticas» surgem no neolítico: era necessário que toda a população de um reino conseguisse cooperar sem rivalidades que perturbassem a produção requerida para conseguir a riqueza necessária para conduzir a guerra.

Com as invasões bárbaras na Europa, caiu o Império romano, que assegurava paz, e diminuiu brutalmente a produtividade da terra. A população decaiu muitíssimo e caiu­ se numa organização pior do que a anterior ao neolítico (porque as estruturas sociais foram todas destruídas com as invasões). Progressivamente chegou­ se ao resultado esperado pelos modelos da coope­ra­ção/ exploração: emergiu uma classe de batoteiros que exploravam os outros. A essa classe deu­ se o nome de «nobreza» e, em parte, também «clero». Ambas afirmavam assegurar funções mais importantes do que a produção primária (a defesa e a relação com deus) e na prática consumiam proporcionalmente muitíssimo mais recursos do que os produtores pri­mários.

Esse sistema evoluiu para o feudalismo, em que o senhor de uma terra nominalmente protegia um território em troca de alimento e vários im­postos. Como os senhores feudais não tinham limite de poder, esses impostos transformaram os camponeses em «servos» e em alguns países efectivamente em «escravos» (muitos dos países eslavos mantiveram o regímen até ao Séc. xıx). Por detrás dessa desigualdade desenvolveu­ se uma ideologia justificativa que se disfarçava de ética: o direito divino ao poder e a diferença de qualidade entre as classes (os três «estados», como se lhes deve chamar). O campesinato era completamente esmagado de impostos e inclusivamente de ataques guerreiros por parte dos nobres (a guerra medieval fez­ se, em grande parte, contra os camponeses desarmados, não contra tropas armadas). Na Idade Média houve várias revoltas de camponeses dirigidos por cabos de guerra ambiciosos e sem escrúpulos, que por seu turno matavam os nobres: oscilava quem tinha mais poder de agressão e era essa a base de relação social.

Com o fortalecimento do poder real a agressão decaiu: o rei precisava de paz no reino para enriquecer, de modo que todos beneficiavam de uma paz relativa. Contudo, as etnias que não faziam parte do grupo identitário foram sempre atacadas (por exemplo, os judeus, que por seu turno desprezavam os gentios; ou as «bruxas» que foram mortas aos milhares. Este estado de rivalidade entre grupos identitários ocorre sempre na nossa espécie e foi bem identificada pelos psicólogos sociais – cf. noção de «grupos mínimos»).

Foi, parece, no Séc. xvıı xvııı que a mensagem fundamental do cristianismo paulista afectou mais directamente a política: os teóricos sociais defenderam que as pessoas, mesmo diferentes de nós, tinham direitos. Esta tendência parece ter tido como origem o desenvolvimento da literacia e dos romances: um leitor tem de se identificar com personagens que não são ele próprio e para isso precisa de uma teoria da mente mais complexa do que simplesmente «saber o que o outro sabe», mas que inclui «saber o que o outro sentiria se...». Este dado não é seguro, mas em qualquer caso é aparentemente verdade que foi com o racionalismo do Séc xvııı que se considerou claramente os direitos das outras pessoas. Os «direitos humanos» derivam precisamente dessa altura.

Essa revolução das mentalidades implicou duas coisas diferentes. Por um lado a compreensão de que o outro sofre e a capacidade psicológica de nos imaginarmos na situação dos outros; essa ideia não era nova: como disse, o cristianismo paulista defendia precisamente o mesmo. O outro elemento, este novo, foi a existência de iniciativas legais conducentes a uma sociedade em que a cada pessoa se asseguravam os direitos. Houve, pois, a compreensão de que o outro sofre e leis que tentaram evitar que isso pudesse ocorrer. A democracia, a primeira fase da Revolução Francesa, são precisamente a expressão desse movimento.

De então para cá tem havido progressos constantes na ideia de que não se pode fazer mal às outras pessoas e na construção de sistemas legais que impedem que poucos se aproveitem de muitos (os sistemas fiscais pretendem precisamente impedir isso). Com altos e baixos tem­ se caminhado progressivamente nessa direcção.

No nosso tempo assistimos à construção do «estado social», que é precisamente a manifestação mais generosa dessa tendência; infelizmente esse estado social baseava­ se numa super­ exploração do planeta e na desigualdade da repartição dos benefícios (quase todos vinham para a Europa e para os Estados Unidos) que não é possível manter e por isso vai desa­parecer.1
 

A base da ética

Como vimos, a base mais arcaica da ética é a formação de grupos identitários: a tribo, o grupo de parentes, são outras tantas máfias que promovem o interesse próprio em detrimento do de todos os outros grupos. Nessa situação, a ética é, como o viu Durkheim, o próprio grupo, grupo esse que se distingue dos outros em termos «qualitativos» (um membro do meu grupo é uma pessoa, os membros de outros grupos são inimigos que podem ser caçados e que devem ser mortos). Essa condição leva a guerras constantes entre os vários grupos.

O que conduz, progressivamente, a uma menor agressão não é uma ética transcendente, mas a necessidade dos reis em manter coeso um grupo de pessoas mais ou menos heterogéneo. Essa coesão é necessária para assegurar o poder do monarca e a sua riqueza.

Para assegurar essa coesão são necessárias duas coisas: que o comportamento cooperativo seja recompensado (o que equivale à ideia de que o trabalho é recompensado) e que o comportamento de exploração dos cooperadores seja punido. É neste passo que entra a importância da Lei: a lei determina o que é bom e o que é mau para o grupo. Se todos se comportarem de acordo com a lei, advirá daí o maior bem para o maior número (claro que isto pressupõe que as leis estão bem feitas e que foram correctamente pensadas).

A seguir à época de centralização do poder entra em jogo um outro factor, este mais filosófico. É necessário que haja a compreensão de que o outro é respeitável em princípio, mesmo quando não se conhece. De outra forma o comércio (que gera muito mais riqueza do que a agricultura) e as trocas tornam­ se impossíveis mesmo com leis severas. Foram estes dois passos que se deram entre os Sécs. xvı e xvııı.

Assim, a base da ética é dupla: tem que ver com a concepção do outro, da necessidade de considerar o outro, mesmo de outro grupo, como semelhante a mim (como se diz desde S. Paulo);2 e com a regulação do comportamento da sociedade através do reforço do comportamento cooperativo e da punição do não cooperativo para que o resultado seja o maior bem para o maior número. Ou seja, a ética moderna desenvolve­ se através da ideia de que somos todos iguais e da lei que obriga a que assim nos comportemos. 
 

A ética e os sentimentos

Num plano puramente psicológico, estes dois termos, ética e sentimen­tos/afectos, opõem­ se. Para isso darei um exemplo, tirado de Kohlberg.
Imaginemos que um homem vai num navio que afunda. Na precipitação é colocado num salva­ vidas com duas crianças. O salva­ vidas não comporta o peso dos três: um deles tem de ser deitado ao mar para que os outros dois se salvem. O homem é pai de uma das crianças e tem de ser ele a conduzir o salva­ vidas porque as crianças são incapazes disso. Qual é a conduta ética?
Não há resposta correcta a esta pergunta. Mas o problema que se põe é de saber se o homem devem seguir os seus afectos de pai e salvar o filho ou se deve tirar à sorte. Eticamente falando, ele não pode distinguir entre duas vidas com base na sua emoção egoísta: de maneira que deveria tirar à sorte.

O dilema pode parecer artificial, mas compreende­ se imediatamente se considerarmos o problema da corrupção. Uma pessoa com poder deve favorecer os seus amigos e parentes ou não? Claro que todos achamos que não deve: as suas emoções egoístas devem estar fora da decisão e ele deve escolher quem é mais habilitado para o lugar.

Ou seja, o comportamento justo deve ser totalmente desinteressado, deve ser tomado não por pessoas com sentimentos mas por cérebros frios. É por isso que se diz que Dura sed lex (Dura lex sed lex).

Pode então ser­ se guiado pela compaixão (no sentido habitual do termo) e esperar um resultado ético? Parece­ me que não. Apenas se se tiver compaixão indiscriminada por todos os outros (isto é, apenas se não se tiverem afectos particulares, apenas se se gostar tanto dos nossos pais e filhos quanto de um Sâmbia da Nova­ Guiné desconhecido) se poderia esperar um comportamento ético.

Mas passa­ se que não somos assim. Por um lado, todos nós defendemos os nossos próximos. E os nossos próximos são os nossos parentes e os membros do nosso grupo cooperativo (há um provérbio árabe muito eloquente: eu contra o meu irmão; eu e o meu irmão contra o meu primo; eu e o meu primo contra um outro Maometano; eu e os outros Maometanos contra o infiel). Na verdade, desafio quem quer que não seja psicopata a conseguir, na situação do dilema com que comecei esta secção, não escolher o filho. Eu, pelo menos, não teria nenhum respeito nem simpatia por quem não escolhesse o filho na situação descrita: consideraria tal pessoa um monstro. Da mesma maneira, compreendo a tentação nepotista e o favorecimento de amigos. Mas vão contra o bem comum e é para isso que serve a Lei: para nos forçar a pormos o bem de todos acima do bem das pessoas por quem sentimos afecto. A ética do afecto é um mecanismo antigo que se adequava aos pequenos grupos identitários mas que funciona mal em grandes grupos compostos de pessoas anónimas.

Temos, então, que se seguirmos os nossos afectos (a nossa tendência para a compaixão) formaremos um grupo identitário semelhante ao descrito no início desta conversa: o grupo cooperativo que se opõe aos outros grupos. Esta ideia paroquial da ética foi, como vimos, progressivamente vencida graças à ideia abstracta da dignidade humana, seja quem for o humano em questão. Ou seja, foi um princípio filosófico e uma técnica legal que garantiram a visão democrática e humanitária que quase todos defendemos actualmente, e não a com­paixão biologicamente determinada.

Pode então concluir­ se que é necessária uma lei que obrigue as pessoas a não seguir os seus impulsos de compaixão e de generosidade relativamente aos parentes e amigos. Na ausência de tais leis o grupo será fraccionado em sub­ grupos familiares que definem máfias. O bem comum é uma ideia abstracta, não o fruto do sentimento, de modo que é necessário forçar a sua existência através da Lei. 

O caso particular de dar a outra face

Há ideologias da compaixão (por exemplo, o cristianismo) que afirmam que devemos apagar completamente o nosso Eu perante os outros. Assim, se agredidos ou ofendidos, deveremos dar a outra face.

Não é possível concordar racionalmente com essa posição. Imaginemos um caso simples. Um grupo deseja o maior bem para o maior número e todos seguem esse comportamento. O que sucederá se um membro desse grupo escolher agredir os outros para lhes retirar os recursos (isto é, se fizer batota)? Explorará os outros, talvez até à morte. Se a medida do seu enriquecimento for proporcional à dos membros que o seguem rapidamente o número de agressores aumentará a ponto de fazer perigar o grupo. O que sucede então é que o grupo se extingue e que outros grupos mais cooperativos substituem o grupo de agressores egoístas. Foi isto que sucedeu durante a Idade Média e é isto que ocorre sempre que a Lei deixa de ser aplicada (como ocorre, correntemente, em vários países de Leste).

Há várias estratégias para resolver o problema da batota. Nenhuma delas é dar a outra face. A estratégia que vence as outras é a «reciprocidade generosa», quer dizer, fazemos ao outro o que ele nos fez, perdoando­ lhe alguns deslizes. Mas nunca a estratégia vencedora é dar a outra face. Fazê­ lo é encorajar o aparecimento dos chefes de guerra. A excepção mais conhecida, Ghandi, explica­ se porque, na nossa espécie, a influência sobre os outros se faz não apenas pela força mas pela influência ética. Gnahdi deu a outra face material mas não moralmente e fez que cada ofensa que lhe era feita fizesse ricochete e atingisse o agressor. Ou seja, trata­ se de uma estratégia de redirecção da agressão e não de uma estratégia de pura não agressão. Assim, conclui­ se que a única forma de responder à agressão é com agressão, embora não necessariamente do mesmo tipo.

A Lei resolve este problema evitando que tenham de ser os indivíduos ofendidos a retaliar a agressão, o que levaria à anarquia e ao caos. O Estado tem, numa sociedade moderna, o monopólio da força, e usa­ a contra quem não cumpre as regras. É esse o outro lado importante da lei: determina, como vimos, o que se faz para promover a cooperação; e pune o que vai contra a co­operação. Assegura, assim, uma sociedade mais justa e com menos sofrimento do que as «sociedades naturais», que rapidamente se tornam palco de guerras entre fortes e fracos, como na Idade Média. 

A questão do «Eu»

O anterior tem que ver com a questão da afirmação do Eu. A maior parte das éticas de inspiração religiosa defende que o eu deve renunciar a si, que se deve atenuar. Esta limitação do eu tem uma função: o diminuir a egoísmo, assim favorecendo a cooperação. É, de resto, a condição sine qua non para que seja possível considerar um assunto eticamente: «julgo este assunto como se eu não fosse parte interessada». Esse afastamento do eu é, portanto, necessário à co­ope­ração. E contudo, pode­ se ir longe demais nesse aspecto: se pusermos o outro como igual a nós, não haverá problema, mas um excesso de inibição do Eu leva, tal como o dar a outra face, a favorecer os batoteiros. De modo que se tem defendido que, para que uma sociedade seja ética, é necessário que cada um tenha a capacidade de punir o adversário quando ele faz batota. Isso implica que cada um tenha poder (e que o use eticamente), mas que esse poder seja controlado pela Lei. É esta a ideia da participação cívica que se defende ser necessária aos regímenes democráticos. Quando há grandes distâncias de poder a consequência é que quem tem pouco poder não tem qualquer possibilidade de influenciar quem tem o exercício do executivo. É o que se passa nas antigas ditaduras que não fizeram uma boa transição para a democracia (na Turquia, por exemplo, e também entre nós). Se o Eu se apagar para apenas promover o bem do outro, é necessário que o Estado exerça uma lei completamente justa. Como a lei é, sempre, imperfeita e como há sempre batoteiros, anular o Eu corresponde a encorajar os exploradores.

De modo que, embora o anular do Eu seja uma tarefa que se pode con­siderar eticamente meritória, (tanto mais que é muito difícil) os seus efeitos no nível do grupo podem conduzir a in­justiças.

Isto não significa que o Eu se exerça da maneira mais primária: tem de ser agente não do seu próprio bem­ estar mas do controlo dos outros, de modo a garantir que eles cumprem as regras cooperativas.

Finalmente, o Eu tem um papel extremamente importante na cooperação: as personae (os conjuntos de papéis que a cultura disponibiliza) mais cooperativas têm de ser muito prestigiadas para que os indivíduos procurem acomodar­ se a essas personae. No processo, comparam­ se umas às outras de maneira a serem «melhores» no cumprimento do papel cooperativo. Assim é a própria competição por prestígio que leva à cooperação. É dessa maneira que os papéis interiorizados promovem directamente a cooperação: em vez de ser a persona do «Rei», do «chefe autoritário» a ter prestígio, é a do «cooperante» a mais bem vista. Isto só sucede no caso em que a cultura prestigie esses papeis, o que não sucede sempre; por exemplo, nas culturas da «honra» tende a ser o «chefe autoritário» que goza de um estatuto especial a ser o papel mais prestigiado. Como se compreende, se todos tentarem emular esse papel de chefe autoritário não haverá cooperação possível: todos lutarão por ocupar esse lugar. Talvez seja essa uma das causas da dificuldade que as sociedades mediterrânicas têm sentido em adaptar­ se à democracia coope­rativa. 
 

Dois níveis da ética

Há dois níveis bastante diferentes de ética. A ética puramente pessoal, em que procuramos conformar­ nos a um modelo de comportamento ético, conformação essa que é, em si, o fim em si da ética. E a ética de grupo, que pretende garantir o bem estar de um grupo (que pode ser definido como um grupo identitário ou como a própria humanidade, ou ainda a todos os seres vivos). Neste segunda ética, o objectivo é pragmático e social e não interno e privado: pretende­ se que o bem estar se difunda, que as injustiças que vemos nos outros deixem de existir.

As duas éticas podem entrar em conflito. Um exemplo pode ser o seguinte: imaginemos que, para impedir um assassino de matar uma população, é necessário fazer uma coisa que a minha ética privada impede. Que deverei fazer? Seguir a minha ética interna e ficar em paz comigo? Ou cometer a acção que condeno e conseguir o objectivo de salvar pessoas? No meu espírito, não há dúvida: deve­ se tomar a segunda posição. Mas os defensores de que os actos éticos o são intrinsecamente, mais do que as consequências, não estarão de acordo.

Mais uma vez a ética da Lei resolve o problema: os comportamentos devem ter em consideração a ética no plano do grupo. É verdade que pode haver leis relativas à ética privada (há vários exemplos de religião). Mas a Lei civil, a Lei que pretende o bem do maior número será sempre uma lei racional que esquece a salvação do indivíduo e que coloca acima dela o bem comum.3
 

Ética da lei ou da compaixão?

A não ser que se defina compaixão como afirmação filosófica da igualdade de todas as pessoas, o que equivale a dizer que a caridade é a afirmação dos direitos do Homem e a defender a necessidade de uma lei que os regulamente (o que é equivalente à «ética da Lei»), a ética da Lei aqui defendida parece­ me ser a única possibilidade realista de garantir o funcionamento justo, equilibrado e humanitário de uma sociedade. É uma escolha filosófica que tem de ser defendida ideologicamente e que deve traduzir­ se na Lei e não uma questão de compaixão no sentido de que um sentimento de caridade para com cada indivíduo. O «Homem» comover­ nos­ á abstractamente, não em termos individuais e concretos. E para combatermos o sofrimento do todo teremos de causar sofrimentos individuais (nomeadamente a quem faz batota e não co­opera), mesmo que isso nos cause pena ou incómodo.

Pode ser um equívoco semântico distinguir entre as duas éticas. Na verdade, é essa a minha convicção: as duas partem de afirmações diferentes – ética individual e ética colectiva – mas chegam a resultados semelhantes. Aquilo a que eu chamo ética da Lei chamar­ se­ á ética da compaixão partindo de outro pres­suposto.

Se assim for, ainda bem; significará que estamos de acordo. Se não for assim, esperemos uma discussão cooperativa entre pessoas bem­ intencio­nadas.

Lisboa, 24 de Janeiro de 2012  
R. Sá­ Nogueira Saraiva

1 Também actualmente verifica­ se o desenvolvimento de tendências que nada têm que ver com a inspiração democrática e igualitária – o neo­ liberalismo e, sobretudo, o desenvolvimento de uma tecnologia financeira desregulada, são uma forte ameaça desta evolução geral a que assistimos desde o Séc. xvı.
2 Refiro S. Paulo e não Jesus Cristo porque é S. Paulo que destina a mensagem cristã a to­das as pessoas, «circuncisos e não circuncisos», aparentemente contra a opinião de S. Pedro.
3 Esta questão levanta bastantes problemas: a questão dos meios e dos fins. Mas não a tratarei aqui por ser relativamente secundária à discussão. Mas direi que, se a opção ética for ilegal, o sujeito deve tomá­ la; mas que a sociedade tem o direito, talvez o dever, de a punir, ou de abrir uma excepção justificada se a lei o permitir (o que não ocorre na lei que utilizamos em Portugal).

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Música e Emoções

É a primeira tentativa. Logo se melhora.

Música e emoções

 

para breve, espero

Light from darkness

I found this text of mine lying about ion the net.
It is about Walcha and Bach (the early organ recordings)


Light from darkness

"Why `light from darkness'? Walcha was blind, and his knowledge of the inner polyphony of Bach's works appears almost in `black and white'. Indeed, I often find that Walcha's playing reminds me of a water crystal: perfect, but almost non existing. You get incomparable sense of structure, polyphony is perfect (Walcha's toucher was unique, and his registrations often involve sharp sound - and therefore you can hear everything). And he manages to seem not to be present: the music is, not the interpreter. Of course that is not true. His playing is so personal you will find all the other organists different.


He was arguably the most important - in terms of impact - of all the Bachian organists. As a matter of fact, his stereo Bach recordings are often presented as the standard. Therefore, it is inevitable to compare this mono set with the best known one.


Now I don't think Walcha's Bach is very Bachian - I don't believe Bach played it like that. Nevertheless, most of his playing is very impressive (he played all the most important organ and harpsichord Bach works) and you do see into one of the most powerful music minds ever (Bach) through one of the most intelligent interpretative minds (Walcha). Some of Walcha's interpretattions (from the stereo set) are, I think, almost impossible to better. So how does Walcha fare against himself?


Although there is a very obvious continuity from the first to the second sets, I think they differ much more than one would believe.
All the interpretations are more expressive in the mono set. This is much easier to detect comparing the St.Pierre-le-Jeune recordings with the Cappel and Hambourg ones. Take the Orgelbüchlein. Although played in a low reverberating space, the Cappel recordings are actually slower. This gives the pieces, I think, more identity. Any one is in fact much more moved. Ore take the variations on Sei gegrüsset Jesu gütich. The Hambourg recording is heart piercing: it is excruciatingly beautiful, almost unbelievable. The St.Pierre one is totally decanted, ethereal; it moves, but it does not make you break in shatters.


The Preludes and Fugues are sometimes similar - or different but equally good. I would make two exceptions: I prefer both the great a minor and the 'dorian' fugues at Alkmaar. I may prefer the g minor (BWV535) p&f at Saint-Pierre, and I certainly favour the 'small' e-minor played there.
So, how does Walcha compares with himself?


By a very small margin I prefer the former recordings. Of course, audio technique is not so good; but technically Walcha was at his best - which means fabulously, almost unbeleivably, superlatively good). But, on the other hand, the stereo recordings have so many miracles to be found...


So if you have to take a decision on which to buy, go for both of them... You wont' regret it."

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

INSIDE JOB
Quando saíu, não vi o filme. Andei à procura dele até que se comprou. Vi­‑o já duas vezes (o filme é relativamente claro apesar de algumas faltas de sequência, mas a multiplicidade de nomes de pessoas e de produtos financeiros não ajuda nada e é muito fácil perdermo­‑nos).
Se compreendi bem, é a seguinte a explicação do desastre.
No passado as empresas financeiras eram pequenas: uma falência implicava apenas a empresa que falia. E essas falências eram improváveis, porque cada empresa era responsável por emitir os produtos financeiros (geralmente empréstimos) e por os cobrar: quem empresta quer receber, e tinha­‑se o cuidado de emprestar apenas a quem se sabia que poderia pagar.
Contudo, com a facilidade de comunicações (com a revolução informática: o filme não o diz mas é evidente que sem computadores todos ligados entre si a desregulação teria sido impossível) inventou­‑se um sistema diferente.
Normalmente quem empresta é afectado se não for reembolsado. Mas se quem empresta for pago independentemente de a dívida ser paga ou não, as coisas alteram­‑se. Foi o que sucedeu com os sistemas de seguros de dívida. Numa situação deste tipo, quem empresta será pago pela seguradora. Tem, portanto, vantagem em emprestar o mais possível, mesmo a quem se sabe que não poderia pagar.
É aqui que surge a primeira batota – a primeira evidente imoralidade: criaram­‑se «produtos financeiros» que combinavam todas as dívidas provenientes de empréstimos para a compra de casa, de carro, empréstimos pessoais e mais coisas, em produtos financeiros (acções) compósitas, a que se chama cdo. Um cdo é, portanto, comprável no mercado financeiro. Para ser claro, um cdo é uma amálgama de mau crédito disfarçado numa coisa que ninguém sabe o que é. Cdo significa «lixo tóxico».
Como os cdo são voluntariamente «opacos» e impossíveis de compreender –ninguém sabe realmente o que são– arranjou­‑se uma maneira de serem propagandeados. Essa propaganda veio das agências de rating, que foram convencidas a avaliar como investimentos de alta segurança o que sabiam ser lixo. Ganharam dinheiro com isso porque elas próprias investiram nesse lixo. As agências de rating são uma das peças fundamentais do embuste.
Por serem avaliadas com os mais altos níveis de segurança, os lixos tóxicos foram comprados para assegurar as poupanças (os investimentos cujos juros garantem as reformas). Contudo, quem criou os pacotes de lixo tóxico, sabia que os cdo eram instáveis e perigosos. Criou­‑se, para isso, a segunda arma: os cds. Um cds é uma aposta. Uma seguradora aposta comigo que um produto compósito (cdo) vai continuar a dar lucro. Comprando o cds eu aposto que não, que vai falir. Se o cdo falir, a seguradora paga­‑me; se não falir a seguradora mantém o dinheiro que eu lhe dei pelo cds.
Estas apostas não dependem de eu comprar o cdo: é mesmo apenas uma aposta. Posso comprar um cds sobre a dívida grega: aposto com a seguradora em que a dívida não é paga. Se eu ganhar a aposta, a seguradora paga­‑me; se não, fica com o dinheiro. Assim, todos podemos comprar cds sobre coisas que não temos.
Ora os bancos e as agências de rating compraram cds de cdo (=apostaram na falência de produtos que vendiam e que classificavam com aaa). Como sabiam que os cdo eram lixo, protegeram­‑se comprando os cds.
Neste processo, quem fica mais exposto são as agências que vendem os cds, evidentemente, porque, tratando­‑se de lixo tóxico, é certo que vão perder a aposta e ter de pagar aos compradores dos cds. Contudo, e apesar disso, o sistema manteve­‑se, porque os lucros imediatos de vender cds sobre lixo são enormes. Os riscos também são, mas é essa a natureza da especulação.
A especulação em tão larga escala foi possível por duas razões. Em primeiro lugar por causa da «alavancagem». Este termo incompreensível quer apenas dizer «especulação»: alavancagem significa apenas que uma empresa está a vender e a comprar a crédito, com dinheiro emprestado e que não tem nenhuma possibilidade de realizar. Assim, há empresas que têm uma alavancagem de 33:1, o que significa que de cada 33 unidades de dinheiro que movem, apenas têm, realmente, 1. Com tanto dinheiro virtual, quem ganhe muito dinheiro a vender cdo e cds ganha uma fortuna. Como as empresas já não são compostas por equipas mas apenas por falcões que saltam de empresa em empresa como bons vendedores que recebem prémios pelo volume de negócios, esses vendedores (que são quem dirige as empresas) fazem fortunas enormes. É esta a segunda razão que fez que um sistema tão perigoso fosse possível.
As empresas, em si (os accionistas), têm ganhos alavancados, isto é, que os bancos e as seguradores podem não poder pagar.
O sistema é perigosíssimo, particularmente para quem vende os cds (para não falar já dos desgraçados, nós, que investem em produtos que não sabem o que são e que ficam depois na miséria quando os cdo se revelam lixo). Na presente crise, foi a aig, a maior seguradora do mundo, que não conseguiu pagar os cds (as apostas) dos produtos tóxicos.
Não conseguindo pagar, não se conseguia receber, os bancos que especularam (a tal alavancagem) ficaram com enormes perdas e o sistema, por um triz, não bloqueou (porque os governos injectaram dinheiro que pediram emprestado: é essa a explicação da crise da dívida soberana, é por isso que a Europa está em apuros).
Perguntamo­‑nos como foi possível. Ninguém deu por nada? A explicação é sinistra. Os grandes grupos financeiros pagam (muitíssimo bem) a professores das Universidades mais prestigiadas para que eles escrevam uma teoria económica que lhes dê cobertura. No mais marxista dos exemplos, o poder paga para fazer uma ideologia que o suporte.
Poderíamos então esperar que a administração Obama tivesse sucesso e regulasse a economia. Mas todos os responsáveis pelos crimes estão, são, a administração Obama.
Então? Podemos esperar outra crise a qualquer momento. Vivemos sobre uma bomba relógio que não sabemos quando explodirá. E entretanto alguém faz lucro com a miséria alheia e com a destruição da economia.
É a situação política e de poder mais imoral que já vi. É provocado por uma assimetria de poder brutal (os financeiros que vendem o que querem sem dizer o que é) por uma pequeníssima minoria que provoca a falência e a desgraça de pessoas que confiaram na banca (imaginemos um casal de 70 anos que se vê, de repente, com toda a sua reforma comprometida porque comprou lixo tóxico que lhe foi vendido como triplo A). Essa minoria compra intelectuais para justificarem a sua acção predatória sobre os outros, de maneira que os especialistas, formados que são nessa ideologia falsa, não conseguem criticar o processo (como quando a monarquia dizia que era por direiro de Deus que reinava e pagava aos teólogos para lhes fazer a ideologia que forçava os outros à conformação).
Diz­‑se, na psicologia evolutiva, que os psicopatas podem ter vantagem em certos contextos sociais (quando há poucas normas). É completamente verdade, neste caso. Todos os bandidos financeiros que aí andam são rufias sem escrúpulos, sem sentimentos de culpa, que procuram sensações (droga, prostituição, lucros para lá do compreensível) e que sabem a desgraça que causam aos outros mas que se riem disso ainda por cima.
Vai acabar por haver regulação: as sociedades realmente auto­‑regulam­‑se. Mas para isso seria necessário que todos compreendessem o problema. E isso não é fácil: o problema é complexo e os financeiros e economistas esforçam­‑se para o manter complexo e impenetrável.
Neste caso, a única solução é educar as pessoas e promover mais democracia.