quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Ser e ter e os coletes amarelos


A oposição entre ser e ter teve bastante voga, mas não pegou. As pessoas agora são o que têm e é essa a mensagem quer do mercado livre quer dos sindicatos. São ideologias materialistas que equacionam a felicidade com a obtenção dos desejos.

Nessa ideologia, os objectivos de uma pessoa esgotam-se no possuir.

Pensando fora dessa ideologia, tem de se conceder que o possuir faz sentido, na medida em que um eu precisa sempre de um suporte material que não se esgota no corpo: o eu estende-se sobre o mundo à volta dele, como na aranha a teia faz parte do mundo próprio. De modo que é sempre necessário ter o suficiente para se ser, e o necessário não são apenas a comida e o abrigo: cada pessoa tem de construir o casulo em que vai existir e através do qual se vai relacionar com o ambiente e com os outros e assim ser. 

Mas a actual definição do eu como «tenho» parece-me anormal. Essa é a definição do conquistador de terras. Mas mesmo no conquistador, as conquistas são apenas a prova da sua capacidade de conquista, a prova do que ele é, a prova de «eu sou um conquistador e eis as minhas conquistas». Mesmo o conquistador tem para poder sentir que é. Tal como o novo rico exibe casas enormes, carros potentes e roupas e telemóveis caríssimos. Todo esse arsenal é a prova de que ele é capaz, de que conquistou, de que ele é. Essa prova funciona para ele e para os outros: para que ele saiba e para que os outros saibam que ele é.

E, de facto, o ser é sempre o resultado do reconhecimento de um avaliador de nós próprios. Os avaliadores podem ser eu próprio ou os outros (William James). Mas mesmo quando o avaliador de mim sou eu, os critérios com que avalio não são nunca integralmente meus, são apenas interiorizações de critérios que recolhi do mundo social em que nasci. Esses critérios de avaliação moral são sempre comparativos: há um ideal e as pessoas são avaliadas por referência a ele.

E por isso o ser exige que haja uma comunidade que nos avalie e aprecie, comunidade essa de que eu tenho de me sentir fazer parte e de que partilho os critérios de avaliação. Ou seja, só se é na medida em que se vive numa comunidade com a qual nos identificamos.

No mundo atomista, impessoal, individualista em que vivemos, vive-se anonimamente e não se é avaliado por ninguém excepto pela nossa capacidade de ter, porque é o que os outros, que não nos conhecem, podem ver e reconhecer.

Nos assalariados a condição ainda é pior, porque se é avaliado apenas como peça necessária ao lucro e se é recompensado em capacidade de comprar e ter.

Nas comunidades antigas, pré-tecnológicas, cada pessoa era conhecida por si própria: pelo grau em que se cumpria os critérios mas também pela sua personalidade, pelas suas manias, pelos seus gostos. Era-se alguém, bom ou mau, virtuoso ou pecador, e tinha-se identidade (a Gemeinschaft de Tonies).

Mas o mundo é agora enorme, vivemos vidas solitárias, em que se procura a independência individual total em que o único critério de avaliação é o ter.

E por isso um protesto de solidão, de falta de reconhecimento da própria existência, da ausência de identidade social apenas se pode exprimir em termos de reivindicações de ter – aumentos de salário, de pensões, de coisas que permitem possuir.

Não sei se o que aqui digo se aplica completamente ao caso dos coletes amarelos, mas suponho que pelo menos uma parte da explicação é esta.

Santo Estêvão, 13 de Dezembro de 2018

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Este texto escrevi-o há muito tempo. Mas ocorreu-me publicá-lo agora, pensando nos meus avós. 



Estátuas de bronze, moldes de barro, originais de cera

Uma das coisas que me impressionam quando considero as pessoas que conheci e que nasceram numa época de certezas – a honra, a palavra dada, a dignidade, a lealdade, o casamento, a família, tudo coisas que hoje em dia não se sabe bem o que significam – é a sua impressionante força.
Tratava­-se de pessoas que, pelos seus ideais, pelos moldes em que foram criados, pareciam de bronze. Podia­-se sempre contar com padrões éticos absolutamente justos de acordo com a cultura do tempo delas; tinha­-se a sua aprovação ou desaprovação – absolutamente imparciais – conforme se agia de acordo com essas regras ou não. Tratava­-se de pessoas fortes, honradas, absolutamente honestas. 
 
E, contudo, a minha geração, ainda que admire estas pessoas, não consegue ser como elas. Ocorre­-me uma analogia. Disse acima que estas pessoas me parecem de bronze, como as estátuas que ainda hoje podemos ver nos bons museus da antiguidade clássica. Elas sentiam­-se de bronze, inatacáveis, fortes e seguras. Mesmo tendo o mundo contra eles mantinham­-se quem eram.

E nós? Passou a 2ª Guerra mundial e a geração dos meus pais foi perdendo a fé. Depois tivemos a propaganda revolucionária que tentou demonstrar que a moral burguesa era hipócrita. O resultado foi que a minha geração cresceu na dúvida completa: o que são os valores? Durante toda a minha juventude os vi bem criticados e mal defendidos. Na medida em que a esquerda impôs os valores de solidariedade e justiça social (pelo menos no papel: a prática foi sempre diferente) os valores anteriores foram substituídos. Mas tínhamos assimilado demasiado bem a ideia de que o molde era de barro. 

Misturemos a metáfora e o seu referente: qualquer pessoa com espírito crítico pensava que se os moldes burgueses são de barro, quaisquer moldes são de barro. Porquê a solidariedade? Porquê a justiça social?

Seguindo a metáfora, a minha geração compreendeu que, se a estátua é de bronze, o molde da estátua é de barro. É dentro desse barro que se deita o bronze que vai fazer a estátua. E o barro é barro, poeira amassada como se quer. Assim perdemos as certezas.

Com a queda da esquerda, as coisas pioraram, porque o ideal da igualdade foi destruído pelo capitalismo. E aí, com a consciência surda de que os moldes eram todos de barro, as pessoas entregaram­-se ao mais profundo egoísmo – é esse o princípio do neo­-liberalismo até há tão pouco defendido por todos os intelectuais da moda.

O problema é que o egoísmo não é solução porque é fundamentalmente gerador de infelicidade. Somos pessoas sociais, o nosso país tem uma fortíssima influência católica que nos faz ver os outros como pessoas e não apenas como concorrentes.

De resto, para as pessoas normais, é preciso uma regra, um modelo, para governar as nossas vidas; temos de estabelecer princípios para que haja um mínimo de ordem intelectual e coerência naquilo que fazemos. Mas os moldes são de barro: se os princípios não têm justificação como nos podemos orientar por eles?

Deixem­-me continuar a metáfora. Como se fazem – ou pelo menos como se fizeram durante muito tempo – os moldes de barro? Fazia­-se primeiro uma matriz, o modelo da estátua que queríamos produzir em bronze. Esse molde era feito num material plástico, que se podia moldar, modificar, acrescentar, reduzir: a cera. Trata­-se do método conhecido por «cera perdida»: faz­-se o modelo, cobre­-se com o molde de barro, aquece­-se o mo­delo e a cera liquefaz­-se e sai; fica-se com o modelo em barro e depois podemos introduzir nele o bronze líquido – o tal bronze de que eram feitos os nossos avós.

É isso que nos sentimos agora: produtos de modelos de cera; não, não podemos nem conseguimos acreditar que somos de bronze. Sabemos que, na origem, somos apenas cera, maleável, insubstancial, plástica e amorfa.

Apercebemo­-nos desta situação quando perdemos, quando o nosso cônjuge com quem pensávamos vir a envelhecer nos deixa, quando perdemos o emprego, quando o nosso filho que adoramos se volta contra nós e parece odiar­-nos. Havendo valores estáveis era possível recomeçar, perceber, explicar. E agora? Que regras há para explicar? Que o mundo é cruel? Que o mundo não tem sentido? Que a vida é dura e que depois se morre? Tudo isto será verdade, mas não dá consolo, não ajuda, deixa­-nos completamente sós num mundo hostil. Ficamos nus e ao frio, numa paisagem desolada e sem saber para onde ir. Estamos nus no mundo, sem defesa, sem rumo, sem nada.
 
Há quem brinque com isso. O post­-modernismo pode ser trágico – quando as pessoas realmente compreenderam a tragédia que é não ter quaisquer referenciais – ou lúdico, quando pessoas oportunistas ou ingénuas descobrem que podem ser o que quiserem. Já se afirmou com alegria a nulidade do ser e o triunfo do niilismo. Nos meios intelectuais americanos, franceses ou lisboetas há quem se ufane de que «a verdade não existe». Claro que a verdade não existe, porque qualquer juízo humano é uma imposição de uma ontologia (que é uma ficção) a um mundo que nem sabemos o que é.

Mas existe o Eu, no mínimo, a consciência de ser. Não se pode ser sem se impôr ordem, sem se classificar, sem se compreender. Na nossa espécie tudo tem de ter um sentido.

Agora tomámos consciência de que esse sentido não existe. Isso é bom? Não, é uma profunda tragédia, ou pelo menos é assim que a maior parte das pessoas, quando em crise, toma disso consciência.
§
A verdade é que, como eu já escrevi, a moral – o molde – é uma invenção humana pura e simples. Sim, podemos estar biologicamente preparados para a aceitar, como certos dados indicam. Mas nem por isso, aos olhos crus e secos do racionalismo, deixa de ser uma fantasia. Sim, beneficiamos todos em seguir as regras e em acreditar nelas.

Mas o problema é este: o mundo é uma coisa que se transforma no tempo, sem direcção e sem sentido. Obedece à sua própria estrutura, que é apenas a estrutura de si próprio. Não há aí lugar para qualquer intenção, para qualquer significado, para qualquer teleologia.

Peço a atenção dos meus leitores para este ponto: é simples mas é contra­ intuitivo. Se, em vez de antecedente, falarmos de causa, de dever ou de culpa; e se, em vez de consequente, falarmos em bem e mal, estamos a impor um postulado ontológico sobre o mundo. O mundo não é moral nem deixa de o ser, não tem causas nem consequências: é uma mera sequência de efeitos físico­-químicos.

São os nossos cérebros e as nossas mentes, condicionados pelos nossos genes e pelos traços da cultura que fomos geneticamente programados a aceitar acriticamente, que vêm o mundo como ético ou como tendo de ter sentido.

O grande problema vem de se compreender isso. Aí compreendemos que somos de cera. E, por mais princípios que procuremos, não temos saída: são aqueles que nós quisermos e mesmo esses não têm nenhum valor.

É então que nos sentimos nus e sozinhos perante um mundo sem sentido e indiferente ao nosso sofrimento e angústia. Não há nada a que nos possamos agarrar de maior do que nós: somos apenas nós, solitários e nus na nossa angústia.
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Há pelo menos quatro saídas para quem se confronta com o que eu disse. A primeira é desistir. A segunda é inventar um sentido sabendo­-se que é falso. A terceira é fingir que não se compreendeu. A quarta é cultivar o hedonismo.

— Quanto à primeira solução, há a dizer apenas isto: há pessoas que gostam de viver e outras que não gostam. Algumas dessas têm a coragem de desistir. Feliz ou infelizmente quase todos nós, mesmo nos momentos de mais negro desespero, estamos demasiado agarrados à vida e temos demasiado medo da irreversibilidade da morte.

— Tentar ignorar. Diz­-se que Sócrates terá declarado preferir ser um Sócrates – entenda­-se, um homem inteligente mas infeliz – do que um cão feliz – entenda­-se, um homem inconsciente das razões porque faz as coisas.
Se esta frase é de facto de Sócrates, ele mostra­-se aqui bem mais próximo do cão do que do filósofo inteligente. É que, uma vez descoberto o jogo, não há saída possível. Sócrates teria dito «preferir». Mas o problema é que, quando se descobre o mecanismo, já não se tem escolha nem qualquer possibilidade de «preferir» seja o que for. Está­-se condenado à danação eterna da falta de significado e da ausência de princípios que dêm norte à nossa vida.

— Inventar um sentido que se sabe ser falso é, igualmente, impossível. As coisas que sabemos serem falsas não têm o poder de nos influenciar ou de nos motivar. Esta afirmação foi demonstrada no quadro dos estudos de atitudes (não se consegue modificar a auto­-estima física de uma pessoa que ouve uma descrição física dela em que ela não acredita; mas se essa descrição parecer real dá­-se a modificação na auto-estima). De modo que o mito post-moderno de que «se inventam significados» pura e simplesmente não funciona.

­— O Hedonismo. A não ser que sejamos psicopatas ou seres egocentricamente primários, todos já sentimos culpa ao seguirmos estratégias egoístas. É verdade que a sociedade capitalista, ferozmente competitiva, tenta incutir­-nos a ideia – o tal molde de barro – de que temos de nos preocupar primeiro e quase só connosco. Há pessoas que são tão plásticas que o aceitam sem problemas de consciência. Mas fazer mal ao nosso semelhante, apesar de tudo, vai contra a matriz judaico­-cristã da nossa civilização; e fazer mal a um amigo parece ser intrinsecamente culpabilizante: pode ser uma instrução inata. Não são todas as pessoas que se conseguem tornar no modelo do calculista frio que usa os outros. Para nosso bem ou nosso mal, todos queremos gostar de alguém e que as pessoas de quem gostamos gostem de nós.

O hedonismo só grosseiramente se pode equacionar com praticar sexo, tomar drogas e comer muito. Tudo isso corresponde apenas a papéis, a caricaturas que a cultura nos apresenta como exemplos a não seguir. O estereótipo do homem que, enganado pela mulher, se entrega a uma vida de deboche é exactamente isso: um estereótipo e um modelo social. Não é seguindo modelos sociais que ultrapassaremos crises.

Cultivar o prazer significa apenas gostar de viver. Para gostarmos de viver, temos de saber o que queremos (por oposição àquilo que a sociedade pensou por nós). Para isso temos de nos conhecer, temos de nos emancipar dos papeis que a sociedade nos propõe. Temos de saber auscultar o nosso sentir e de perceber que consequências têm para nós as coisas. E, racionalmente, cultivar o que nos interessa e nos agrada.

É esta aprendizagem da individualidade, de uma solidão entre os outros, de estarmos nus connosco próprios, que é a chave para vencer crises.
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Resta saber se preparamos psicólogos e psiquiatras capazes de ajudar as pessoas a aprender a sua individualidade e a auscultar­-se e definir­-se. Mas esse é outro problema, para outra comunicação.
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O que aqui disse não é optimismo nem pessimismo. Penso que é realismo. 


Segundo texto, que dá resposta a este, e já aqui publicado

Ars Vivendi: Ler o Jornal1


Um fragmento de Pierre Daninos (sobre a nostalgia da inocência de uma vida toda programada: Monsieur Massenavette), a Aparição do sentir o eu, de Vergílio Ferreira e a Madame Bovary, de Flaubert, são os três inspiradores deste texto (incongruentes? Mas um trágico é sempre um cómico e vice­ versa; e creio que Flaubert se riu e enterneceu ao mesmo tempo com as Bovarys que conheceu). M. Massenavette é um pasteleiro de uma cidade de província e Daninos inveja a vida dele por um segundo: uma vida calma, assente em princípios que não são postos em causa e todo entregue à sua profissão. Na Aparição discute­ se a descoberta do eu, o milagre do ser contra o não ser. Na Bovary trata­ se da necessidade de sentir e de viver intensamente.

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Quando eu era pequeno tinha a ideia de que os crescidos se levavam a sério e habitavam totalmente a personagem que eu via. O protótipo disto era a leitura do jornal: via­ os ler o jornal, muito seriamente, mas não entendia como era possível uma pessoa interessar­ se por coisas tão desinteressantes (porque separadas do desejo auto­ centrado) como a política ou os faits­ divers.

De tanto ver as personagens, em pequenos, acabamos por acreditar nelas. É mais tarde, quando tentamos nós próprios entrar para as personagens (usando o exemplo, quando tentamos achar o jornal interessante) que as coisas se alteram, porque sentimos a incapacidade de sair do nosso eu simples e auto­ centrado que só se interessa pelos seus próprios caprichos e vontades. No jornal lê­ se sobre coisas que não somos nós, pelo menos no sentido de não serem coisas que nos afectam directamente. É preciso uma pessoa sentir­ se parte de uma sociedade, de um conjunto de normas, para compreender em que é que as notícias políticas ou económicas a afectam. Uma criança nunca será capaz disso, porque vive integralmente no plano dos desejos primários: aquilo a que o Freud chamaria o princípio do prazer.

A pessoa que lê o jornal com prazer sente­ se, como M. Massenavette, parte de uma comunidade, conhece o seu papel, toma partido e assume o papel que a comunidade lhe deu. No limite, vive no papel, sem nunca sonhar com problemas existenciais ou sequer psicológicos. Os Mm. Massenavettes são a matéria­ prima de que se fazem as sociedades estáveis: são a carne e o espírito que dão corpo às estruturas sociais. Cumprem, fazem cumprir e não existem como seres questionadores. Não compreendem a Aparição e nunca cederiam às tentações de Emma Bovary: a sua personagem social nunca o permitiria. A Bovary, pelo contrário, não tolera a obediência às normas do seu estatuto. Em parte porque é ambiciosa, em parte porque não as compreende mas as despreza, em parte –e talvez sobretudo– porque precisa de sentir. E como sentir para um espírito simples é apenas sentir os prazeres primários, procura o sexo. Mas, como a criança de Freud, vive no princípio do prazer. De resto, é um M. Massenavette que a Bovary rejeita: o seu marido, contente com a sua sorte.

Emma Bovary tipifica aquilo a que chamo não acreditar na personagem por baixo. Não conseguimos compreender os atractivos da personagem –não conseguimos chegar a ler o jornal, e apenas podemos fingir que o fazemos– porque o que realmente tem significado para nós são os nossos desejos imediatos, aquilo que nos cerca: não conseguimos interessar­ nos pela discussão de uma lei que não nos diga respeito, não conseguimos interessar­ nos pela ideia de «país». Somos todos no nosso querer e desejar e não no que se passa fora de nós e sem relação directa connosco.

Mesmo quando finalmente conseguimos interessar­ nos pelo que se passa longe de nós –quando finalmente temos interesse na leitura do jornal– há sempre grandes tentações de cair no egocentrismo infantil. Se pudermos conseguir ser o centro do mundo e ter o que desejamos sentimo­ nos de novo como crianças e sentimos o prazer inteiro do desejo gratificado. Daí que, na adolescência e, para muita gente, durante toda a vida, consideremos os que jogam realmente as regras e que se interessam principalmente pelo que vem no jornal uns tansos, uns ingénuos. Afinal, a regra que aplaudimos quando lemos o jornal pode ser a honestidade, mas eu vou lá resistir a ficar com o dinheiro todo ou a ir para a cama com a bela mulher de um amigo! Há, portanto, muitas pessoas que já lêem o jornal, mas sobretudo sobre o seu clube, sobre o seu carro, o seu computador, e têm sempre um olho para o que podem arranjar como gratificação primária. Digamos que lêem o jornal porque fica mal ler (ver?) o Playboy. E por isso há tantas «Revistas do Automóvel», «A Bola» e «Maria».

Há uma forma particular de mascarar o rejeitar por baixo em rejeitar por cima que é muito frequente. Isto é, conhece­ se a personagem mas não se gosta dela. As razões são superficiais: rejeita­ se apenas por achar que viver «daquela maneira» é vieux jeux ou «foleiro», sem realmente compreender o que se rejeita. Finge­ se então um desdém «superior» pela posição que não se compreende porque se é primário e auto­ centrado. Na minha memória estão todos os pedantes de todos os círculos «bem­ pensantes» e muitas raparigas bonitas que se recusavam ao banal – como a Bovary. A recusa era puramente infantil: queriam apenas a gratificação imediata, mas, imitando quem realmente se pergunta porquê ler o jornal, diziam que o não liam porque o desprezavam. E dizendo­ se acima das regras tentavam (e conseguiam e conseguem, pelo menos durante algum tem­po) que as outras pessoas os deixem seguir apenas a necessidade primária de prazer imediato, em nome de um «ideal» mais profundo. Ou seja, dizendo­ se acima das regras, essas pessoas conseguem viver por baixo delas com o consentimento dos outros.

Claro que uma rejeição profunda da personagem é muito diferente e mais rara – na verdade é raríssima e provavelmente nunca é integral. Estar realmente acima da personagem implica compreendê­ la, compreender o eu e compreender que, qualquer que seja a personagem, o eu é mais do que ela. Isto significa compreender que o que eu faço ou sinto não é tudo aquilo que sou, e que o eu mais verdadeiramente Eu é o que observa o que faço e sinto. Nesse sentido, o eu é a tal aparição de que Vergílio Ferreira fala, o milagre de ser um eu. O eu­ desejo, sensação de ser e prazer de fazer não é afinal eu próprio; eu sou quem pensa esse eu, quem o vê e quem o comenta. É, afinal, o aparecimento do eu racional, do eu cartesiano, que pode tentar compreender o outro eu, o dos impulsos, entu­siasmos e deveres.

Não se trata de dois eus diferentes, mas apenas de duas localizações diferentes da nossa atenção: a primeira é mais emocional e directa; a segunda existe num plano mais neutro, de não acção e de observação das possibilidades e das razões da acção.

Ainda que quase ninguém enuncie esta diferença entre eu­ ac­ção/ emo­ção e eu­ observação dos meus sentimentos e acções, as pessoas têm potencialmente consciência da diferença porque essa consciência está implícita na linguagem: «eu sinto­ me alegre», «eu fiz uma asneira». Nestes casos a linguagem afirma os dois eus: o que observa é o que fala e refere­ se ao eu que sente e fez. Na maior parte das pessoas este eu «comentador» limita­ se a observar o que o eu acção faz. Nesse sentido pode criticar­ se: «mas que estupidez», diz o eu comentador, «o que eu fiz!», sendo este segundo eu o eu agente. Mas essa crítica segue critérios que foram importados de outras pessoas, do que se ouviu: ou, retomando a metáfora, critérios aprendidos no jornal. Não são critérios que tenham sido realmente pensados pela pessoa.

Em parêntesis, é interessante notar que tanto M. Massenavette como Emma Bovary nunca desenvolvem realmente a capacidade de se questionar autonomamente. É certo que M. Massenavette se vê como membro da sociedade, visto e questionado por ela, enquanto que Emma Bovary se centra sobretudo no seu prazer de mulher. Mas nenhum deles consegue criar novas regras ou justificar realmente o seu comportamento: «porque os outros fazem assim» e «porque eu quero» são as únicas explicações que eles poderiam dar de fazerem o que fazem. E fecho o parêntesis.

Quando as sociedades são estáveis, produzem­ se os Mm. Massenavettes, que se entregam de alma e coração à sua personagem e tiram dela verdadeiro prazer: afinal vêm­ se fazer o único papel que aprenderam. Podem subsistir angústias, mas geralmente os reforços sociais são suficientes para manter a pessoa bem disposta. Quando as sociedades são instáveis, produzem­ se os camaleões sociais que vão copiando modelos aceites, mesmo quando são internamente contraditórios. São pessoas que copiam, que não são autoras da sua identidade e nem sequer questionadoras: são o que a sociedade lhes propõe e se o modelo é fragmentado e sem sentido, não são elas que o vão notar. Os Mm. Massenavettes, como as actuais pessoas em semi­ crise existencial porque é bem ser­ se profundo, são equivalentes e ambas lêem o jornal com prazer: apenas os jornais do tempo dos Mm. Massenavette eram mais coerentes do que os de agora.

Em todos estes casos a posição do eu que observa existe – na verdade é responsável pela exigência de ler o jornal, qualquer que ele seja. Mas a posição não é autónoma, mas controlada pela programação que nos vem de fora, seja ela conservadora ou post­ moderna.

§

Em algumas circunstâncias –o sofrimento psicológico e subsequente dúvida sobre si próprio, por exemplo– esse eu questionador ganha autonomia. A pessoa encontra­ se mais tempo no estado de pensar nos seus próprios porquês. É nesse estado que podemos perguntar porque é que lemos o jornal, porque é que defendemos a família, porque é que somos de esquerda.

A descoberta do eu –a aparição do ser, como diria Vergílio Ferreira– é menos uma experiência existencial do que cognitiva. Como disse, a linguagem dá a todos a experiência de enunciar o eu racional (o «eu vou fazer» implica a existência desse espectador). Mas esse eu espectador não procura razões e, como nos casos anteriores, apenas se enuncia quando comenta o que o eu vital ou codificado pelos outros sente ou quer. É apenas quando aparece a capacidade de questionar (porque é que eu gosto de ler o jornal?) que surge o problema do significado, o problema da existência. No fundo a «aparição» é apenas perguntar porquê, é a passagem do eu agente ou emotivo para o eu pen­sador.

Como Vergílio Ferreira parece ter compreendido, essa experiência não é, em si, traumática a não ser que seja acompanhada da descrença num conjunto de valores – seguindo a metáfora, descrença da existência de qualquer jornal digno de se ler. Deus é a explicação natural desse conjunto de valores, mas não é a única: em vez de Deus pode ser a crença numa ordem natural, no progresso e no papel que cada um de nós representa nesse progresso ou, na verdade, qualquer outra convicção. Tem apenas de ser uma crença numa coisa maior do que o próprio eu, exterior ao sentir infantil do eu que deseja e se zanga. Voltando à metáfora, a pessoa interroga­ se se o jornal tem os critérios que deveria ter. Questionar um critério não é apenas dizer que não como as Bovarys e os oportunistas na moda. Questionar realmente significa fazer o esforço de compreender o que esse critério significa e não ficar convencido por esse significado; questionar realmente implica tentar outros critérios ou, no mínimo dos mínimos, tentar modificações ao critério. Para questionar critérios é necessário que a própria pessoa tenha ela própria critérios pessoais. Para o fazer tem de ser eu pensante, eu racional: tem de apresentar um sistema de valores autónomo. É esse sistema de valores que o sujeito cria que se torna maior do que ele e que lhe dá sentido da vida. É, pois, um substituto racional de Deus: uma entidade maior e exterior a nós próprios que determina como as coisas se devem fazer.

A verdadeira crise existencial não ocorre, pois, com a emergência do ponto de vista reflexivo e crítico do eu. A crise ocorre quando não se acredita na existência dessa entidade maior e se compreende que essa entidade é apenas uma projecção da nossa mente – mente que é, afinal, tudo o que existe. Nesse caso fica­ se apenas com o eu original, o eu da criança e do adolescente mimado que quer, que sente e que deseja. M. Massenavette parece­ nos longínquo, impossível, improvável e invejável no seu conforto assente em verdades eternas e nunca questionadas. A crise acontece quando se compreende a solidão profunda e essencial de existir: eu existo apenas na minha mente e nas minhas representações, e o resto apenas me afecta na medida em que eu reagir e me sentir atingido. As crenças dos outros podem não me atingir; mas atingir­ me­ á sempre o desejo, a dor, a fome. Sou então como a Emma Bovary? Não, porque sei que mesmo os meus desejos são irrelevantes a não ser para o meu corpo e nunca darão sentido ao desespero fundamental de não compreender o sentido de existir. Como a minha própria existência é apenas um acidente, um dia vai desaparecer o meu eu e com ele todo o mundo, porque o mundo é apenas o que eu represento. E isso não coloca nenhum problema, porque com a morte desaparecem todos os desejos; na ausência absoluta de eu é impossível sentir, de modo que a morte não pode assustar – é apenas um estado de não ser, que não se sente. A morte –o não ser– é desejável, porque se pára o ciclo infernal de compreender e não fazer sentido e compreender­ se que não faz sentido.

O eu pensante compreende, então, que se é verdade que ele próprio não tem verdades, ele é, contudo, a única verdade. E quem vive predominantemente na posição de eu pensante não tem a escolha de se dedicar apenas ao eu­ acção e emoção. Já que se vive no mundo como observadores, tentemos que o que observamos faça sentido e que tenha interesse: afinal, temos uma vida para viver. Ao compreender isto, tudo quanto nos é exterior –nomeadamente qualquer entidade maior, qualquer moralidade– deixam de existir. A razão, afinal, não tem verdades. É esta toma­da de consciência da superfluidade da razão que é a verdadeira experiência traumática, mais ainda que a negação de Deus ou de qualquer ordem: é a negação da importância do próprio ser pensante e do próprio acto de pensar. É, portanto, a constatação da completa irrelevância do ser, de se ser.

Não há saída para o problema: se quisermos impor, em qualquer caso, uma ordem, saberemos sempre que ela é arbitrária e nunca seremos convictos na acção; se quisermos ser vitais, como, digamos, um touro, nunca o conseguiremos, porque nos é impossível: estaremos sempre a ver­ nos ser touro e não a sentir­ nos touro, porque a decisão de ser touro vem da razão e não do instinto de ser, do eu primário. O problema é, como o Freud o compreendeu (Neurose e Civilização), in­solúvel.

A única saída –pelo menos aparente– é o hedonismo completo, fazer aquilo que me dá menos problemas e mais prazer. Não é o que vem no jornal, mas não esqueçamos que o Playboy é também um jornal: lêem­ no os idiotas que se vergam ao deus desejo como quem se vergou a outra norma qualquer. Prazer, hedonismo, neste texto significam apenas procurar aquilo que torna a duração da nossa vida suportável. O que cada um acha que é melhor para si depende da pessoa. Mas é raro que seja apenas o deboche, porque se paga sempre por isso. Geralmente, se se for inteligente, ter­ se­ á uma vida pacata e com hobbies –mesmo que secretos e considerados condenáveis– bem escolhidos para nos manter entretidos. E, quanto aos outros, é usá­ los para o nosso prazer. Mas isso nem sequer sei se é possível a uma pessoa normal.

A Ars Vivendi está precisamente em saber atingir um equilíbrio entre dois pontos de vista do eu: os pontos de vista agente e pensante. Trata­ se, pois, de atingir a sofrosine, o equilíbrio a que os gregos aspiravam (certamente sem sucesso – basta pensar em Sócrates). Para chegar a esse equilíbrio é preciso compreender bem o nosso eu primário, mas também os preconceitos do nosso eu racional. E temos de saber, connosco, ser como um bom educador: tolerante e respeitador das especificidades e interesses do aluno, mas ao mesmo tempo suficientemente firme para conseguir impedir que o aluno –o eu primário– tome conta da nossa vida. É preciso aprender a dar­ lhe expressão, a dar­ lhe o recreio de que ele necessita mas sem excesso. Isso faz­ se identificando aquilo de que realmente ele (o aluno, o eu primário) gosta –não aquilo de que o eu pensante ou os outros queriam que ele gostasse– e dando­ lho nas quantidades necessárias para o manter tranquilo e satisfeito ao mesmo tempo que o eu professor (o eu pensante) mantém o controlo.

No fundo, a Ars Vivendi é ser um bom professor ou um bom pai de si próprio: o que decide para o aluno ou filho que jornal se deve ler e por quanto tempo.



1 Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva

 

 
 
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quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Interpretações e o que não é dito na música; e mais coisas

Coisas de Música

§ Lautenbacher e as sonatas e partitas
Consegui, finalmente, obter as Sonatas e Partitas de Bach pela Lautenbacher­. Tive­‑as – de resto penso ter mesmo sido a primeira versão das peças que tive – em disco­. Mas era uma Vox Box, e o número de «plops» e «clics» era insuportável­. Consegui, mais tarde – em Paris, na Fnac – as Sonatas do Biber por ela­. Mais recentemente comprei umas sonatas e partitas dela, mas tratava­‑se da primeira versão, mais seca e tecnicamente menos conseguida do que esta­. De há vários anos ando à procura desta versão. Encontrei­‑a na Fnac do Chiado, onde não ia há (também) vários anos.
Este disco dá uma visão muito diferene do Bach que agora se toca e se ouve­. A maior parte das pessoas dirá que é um Bach romântico, mas não me parece tal­. É mais um Bach sagrado e poderosamente expressivo do que propriamente romântico­. A não ser que «romântico» não queira dizer nada, como certamente não quer­. Os violinistas desta geração não eram particularmente românticos: afinal tocavam música contemporânea que os músicos barroqueiros nem sequer conhecem­. Desse modo, os violinistas como o Szering, que me parece a mim clássico – melhor exemplo ainda o Grummiaux – ou modernistas, como o Milstein (expressionista), seriam classificados como românticos, que é, definitivamente, o que eles não são­.
Os barroqueiros, com algumas excepções, renunciaram às emoções que, nos anos 60 e 70, passaram de moda: o heroismo, a alegria viril, a ternura e o lirismo­. Nessa altura, por influência da dureza do combate ideológico, por reacção contra os pais, por afirmação geracional, enfatizou­‑se uma contrapartida do «duro» que não existia antes: a sensualidade­. Em música, basta comparar o Walcha e o Leonhardt para se ter imediatamente a compreensão dessa diferença­. Sempre estive convencido de que o Leonhardt se tinha imposto porque os cravos que usava e a maneira como os usava, eram extremamente bonitos­. De resto, há uma sensualidade no Leonhardt que era praticamente desconhecida antes dele­.
O mundo passou a ser visto através de sentimentos corporais diferentes e mesmo a partir de conceitos diferentes­. A música «séria» nunca era música sensual­. Havia emoções sensoriais – basta ouvir a Pastoral do Beethoven – mas não me recordo de nenhuma música verdadeiramente sensual­.*1* Essas sensações eram evitadas na geração da Lautenbacher, do Kempff, do Walcha­. O «sério» opunha­‑se a muitas coisas – o frívolo, o sem significado – mas em igual porção ao sensual­. O sensual era visto como plebeu ou como desbragado­.
Com o Leonhardt, Bach passou a poder ser tocado sensualmente­. Para mim isso nunca foi uma boa solução­. Não vejo nada disso em Bach, exceptuando talvez em algumas cantatas mas mesmo assim de maneira pouco explícita em termos de música: linhas sinuosas, diatonia e tempos lentos­.
É, contudo, certo que o barroco não desconhecia a sensualidade­. Na música francesa – Couperin, por exemplo – ela é muito clara, mas nunca na música que não é de corte­. Lully não tem nada disso, Grigny muito menos­.
Havia, na primeira metade deste século e na tradição que me formou, a noção do sublime, que se perdeu completamente na música barroqueira­. Tudo isto para dizer que esta versão – o Bach da Lautenbacher – tem precisamente esse sentimento­. É a isso que os críticos musicais chamam «sostenuto»: já vi classificar assim o tipo de sonoridade da Lautenbacher­.
Ela tem tempi não rápidos, mas não lentos; um fraseado muito marcado e com gestos amplos, mas integrados num conjunto; finalmente, tem uma sonoridade impressionante: vibrante, grave, sonora, muito intensa­. É a isto que chamaríamos actualmente «romantismo», mas trata­‑se apenas da assunção do sublime, recusado agora por ridículo.

§ O Pop e o modernismo
A cultura pop é, em grande parte, responsável pelo sucesso dos barroqueiros­.­ Foram as pessoas educadas no rock e no pop – as gerações contestatárias meio instruídas – que passaram a consumir «barroco» em vez de «clássico», presumo que por oposição aos pais e ao passado­.­
O barroco era mais fácil do que o clássico porque o fraseado era mais curto, porque os ritmos eram mais claros e porque a música é, pelo menos no Bach mais fácil de ouvir, diatónica e modula pouco, como na música pop­.­ Era, portanto, fácil passar para o barroco­.­ A passagem foi facilitada porque o Harnoncourt deu voz às pessoas revoltadas: em vez de Beethoven, Brahms, Debussy, ouviam Bach­.­ Não podiam ser acusadas de serem brutais: afinal Bach é dito o maior compositor de todos, e isso dava­‑lhes a sensação de serem cultos­.­ Mas o que lhes trouxe realmente conforto foram as acusações do Harnoncourt relativamene ao passado: apresentou­‑se como um revolucionário anti­‑burguês e anti­‑convencional­.­ «Denunciava» vociferamente os «erros» dos seus colegas, chamando­‑lhes ignorantes – «uma mistura de genialidade e de ignorância»­.­ Quando, numa área nova, se chama ignorante a alguém e se sugere saber­‑se mais, é muito raro que alguém responda à altura­.­ Quase ninguém o fez além de se responder à letra: «baroqueux», «barroqueiros» é um termo do Karajan­.­ Houve musicólogos que, desde o início, se indignaram: não havia nenhum fundamento nas pretenções do Harnoncourt e companhia­.­ E houve quem não se fascinasse com o som dos cravos do Leonhardt porque percebia que a música tinha muito mais­.­ Foi sem dúvida em parte por isso que a música de órgão resistiu: estava em boas mãos e os órgãos eram sempre os mesmos: não se podia inventar um Schnitger novo porque o Walcha já os usava havia décadas­.­
Mas o mais relevante é que o Harnoncourt propunha, em termos musicias, uma visão de que as emoções de antigamente estavam completamente excluídas­.­ As versões do Harnoncourt eram, quase sempre, abruptas, duras, quase marteladas: incisivas, fortes, agressivas, quase, não tinham nenhuma ternura ou lirismo (daí a sua incapacidade total de dar um Vivaldi que convencesse alguém)­.­ Era uma visão completamente profana da música, uma visão por vezes convincente mas geralmente redutora porque retirava a música do seu contexto religioso­.­*2*
Podemos então juntar três elementos diferentes na mensagem que fez os barroqueiros triunfar: uma visão revolucionária contra o passado (embora em nome do passado mais antigo); uma simplificação das emoções, que eram mais congruentes com a brutalidade da mensagem revolucionária e, ao mesmo tempo, introduziam na música uma sensualidade desconhecida até então; ênfase num tipo de música aparentemente mais simples e mais próximo da música pop que até então se ouvia.
De modo que os barroqueiros venceram pela simplicidade e pela sua adesão a emoções que na altura eram importantes para a maioria dos universitários: ruptura com o passado, energia na enunciação, sensualidade em vez de lirismo­ e simplicidade da música que defendiam (os Brandeburgueses parecem fáceis, as Cantatas também).*3*
Este exemplo é interessante, porque mostra que as interpretações «históricas» são, paradoxalmente, dependentes da corrente da cultura dos anos 60 e 70: as ideias de libertação, de contestação, a criação de um mundo novo mas culto são todas comuns ao Harnoncourt – não sei nada do Leonhardt, que nunca se exprimiu muito – e à geração que tinha 20 anos quando dos anos 70­.­ Nesse sentido, o movimento «musicológico» não o foi: foi apenas mais um reflexo dos tempos, usando instrumentos antigos como concreção da revolução­.­ Foi apenas uma outra forma de negar as gerações anteriores, exactamente como os modernistas tinham feito, mas com outro espírito­.

§ O Tema da Rejeição do Passado
Dir­‑se­‑ia que não pode haver maior diferença entre o modernismo e os barroqueiros: entre o Walcha, que pode ser considerado um modernista na música, e o Harnoncourt ou o Leonhardt, vai uma diferença colossal: do abstracto ao concrecto­.­ Contudo há semelhança entre os dois movimentos­.­ Para me explicar tenho de me esquecer momentaneamente do Walcha e, em boa verdade, dos músicos anteriores aos barroqueiros­.

Modernismo — Os modernismos*4* parecem­‑me um movimento de reacção contra o passado­. Essa reacção tem, como todas as reacções, raízes sociais que são a existência de muita gente instruída que não conseguiu encontrar público e identidade pública satisfatória­. Por isso, essas pessoas tentaram afirmar­‑se reagindo contra o que os não reconhecia­. Além disso, houve consciência da necessidade de sair dos impasses do ­Séc­. xix­. Na música isso é perfeitamente claro com a transição de Wagner para Mahler e Schoenberg­. Se se modulava constantemente, se se podiam fazer harmonias com todos os graus da escala, se não havia intervalos bons e maus, a solução só podia ser racional e arbitrária­. Nas artes plásticas defendeu­‑se mais ou menos o mesmo, mas com base em outras considerações: a ideia de que a pureza era desfeada pelo ornamento e, mais tarde, a arbitrariedade do que se faz (convencionalismo, tal como em Schoenberg): se tudo é arbitrário, deixa de haver razão para aceitar códigos que se reconhece serem arbitrários e que são, em qualquer caso, limitativos. Isso leva, numa expressão simplista e tola, ao dadaísmo­ e, em expressões mais complexas, a certas formas de modernismo­ (conceptualismo ou formalismo, por exemplo). A procura de formas puras é uma formulação da consciência da arbitrariedade: algures deve haver uma forma pura, um sentido para as coisas (Mondriaan)­. No oposto da procura da pureza penso que se situa o cinismo do Picasso: a deformação como possibilidade estética­. O acto gratuito foi mais difícil de realizar nas artes aplicadas: ainda hoje se procura (Frank Gerry – é assim que se escreve o nome dele?) sem se atingir, porque não é possível gratuitidade do gesto numa arte funcional.
Todos estes casos, misturados e confundidos, são sempre revelação da recusa da tradição, tomada como impura, gasta, ou convencional­. É isso, no fundo, que unifica todos os modernismos­.*5* Entre um Jackson Pollock ou um Picasso não há nada de comum excepto a recusa da tradição.

A cultura pop — Curiosamente, todas as formas de arte foram, no ­Séc­. xx, substituídas na prática pela cultura pop­.*6* A cultura pop e o modernismo são diferentes nas suas origens­. Parece­‑me que o modernismo poderá conter a cultura pop, mas que o contrário seria sempre impossível­. O modernismo teve sempre em si a rejeição da dicotomia entre alta e baixa cultura, de modo que é potencialmente compatível com a cultura pop­. Mas a cultura pop é um fenómeno ateórico, aparentemente espontâneo, um produto directo do mercado­. Dado que o modernismo está associado, na maior parte das suas formas, a um discurso de esquerda, parece potencialmente incompatível com a cultura pop, fenómeno decorrente do capitalismo. Não foi isso que ocorreu em muitos casos – Jack Lang, ministro da cultura em França de um governo de esquerda, defendeu a importância das culturas urbanas e, especificamente, da cultura pop. Provavelmente foi a noção de que tanto o modernismo quanto a cultura pop negavam a distinção entre alta e baixa cultura que levou à assimilação da cultura pop pelo modernismo.
A cultura pop explica­‑se por haver, nas cidades, grande quantidade de pessoas sem qualquer cultura – nem alta nem baixa – mas com poder de compra­. Trata­‑se dos adolescentes do pós­‑guerra, que, num período de expansão económica e individualismo materialista e hedonista, procuravam, como qualquer outro grupo, forma de ver expressa na arte as suas preocupações­. Não existem grupos humanos sem cultura, de modo que apareceu uma cultura popular dos meios urbanos e que exprimia as preocupações das pessoas desses meios. As pessoas que podiam pagar por essa cultura eram, principalmente, os jovens, dada a fase de crescimento económico dos post­‑guerra. A cultura pop funciona então como uma espécie de projecção da não ideologia dos adolescentes desaculturados­. Reflecte, por isso, preocupações adolescentes: a imagem, sentimentos simples mas intensos – o mais das vezes amorosos –, a distinção entre o mal e o bem (sendo o bem a gratificação individual mais ou menos imediata e o mal o impedimento dessa gratificação)­.
Criou­‑se assim uma cultura muito simples­. A música dá uma ideia clara disso, mas também se encontram exemplos nos movimentos mais ou menos modernistas como o Roy Liechtenstein ou o Andy Wharrol, que exploraram a cultura infantil da imagem (bandas desenhadas, estrelas de cinema) então existente nos Estados Unidos­. O modernismo viu esses movimentos sempre como vanguardistas porque eram contra as regras dos adultos que faziam lei­. Citar uma imagem de uma banda desenhada é nulo como forma de arte (Wham, do Liechtenstein) mas significativo culturalmente porque se afirma que tem tanto mérito quanto uma obra de arte consagrada pelos poderes estabelecidos; as manchas do Jackson Pollock dizem precisamente o mesmo e, no limite, as figuras distorcidas do Picasso também­. É sempre a afirmação do alternativo, do diferente­, a negação dos cânones do passado.*7*

§ Modernismo, pop e Capitalismo
Neste sentido, o modernismo e a cultura pop podem, potencialmente, integrar­‑se no sistema capitalista moderno: ambas transmitem mensagens simples ou que podem ser explicadas em poucas palavras e que não requerem nem cultura nem grande diferenciação estética. Têm ambos um mercado quase imediato nas culturas urbanas órfãs de cultura e de história. Ambas funcionam como mensagem simplificada para uma camada de compradores psicológicamente simplificada.

§ Conclusão
A conclusão tem de ser sobre música, porque foi assim que iniciei este texto. Voltemos, pois, à Lautenbacher e às suas sonatas e partitas para violino solo.
Para compreender a sua mensagem não é possível aceitar apenas o som ou a voluptuosidade. O som é magnífico, o fraseado bastante claro e explícito. Mas está tudo ao serviço de uma emoção que está totalmente fora de moda: o sublime. Esse conceito é realmente romântico, no sentido de que o romantismo o reconheceu. Mas é igualmente clássico, barroco, medieval e, na verdade, existiu em todos os tempos, mesmo nas culturas primitivas em que se diz de uma coisa poderosa e que assusta que tem mana. Sempre ouve, em todas as culturas, momentos em que nos extasiamos perante uma coisa que nos transcende. Essa é a essência da emoção religiosa: sermos pequenos e insignificantes perante o sublimemente grande que nos ultrapassa.
É talvez essa a principal dificuldade que esta versão tem para as pessoas educadas nas culturas do pós­‑guerra e do hedonismo egocêntrico: a impossibilidade de, nessas pessoas, se poder considerar que há algo que, em importância e em sacralidade, as transcende. Nesse aspecto, a versão da Lautenbacher está datada: já poucas pessoas aceitarão que haja algo que as transcende. Agora as pessoas procuram a expressão dos seus problemas, e não a demonstração de que há, fora delas, uma transcendência. Não é necessário ser­‑se religioso para aceitar isto: é apenas necessário ter­‑se sido educado com a sensação de que não somos o centro do mundo e de que a vida não serve apenas para a satisfação das nossas vontades.
Esta é, pois, uma interpretação anterior à morte de Deus e à sua substituição pelo prazer do eu. É isso que a torna, talvez, tão difícil de entender para a maior parte das pessoas, que lhe preferem naturalmente o Milstein, que exprime directamente a angústia do ser e os problemas da expressão do eu.
É, pois, um caso interessante e que revela as diferenças abissais entre o sentir de hoje e o de há 40 anos. O que dizer, neste contexto, da tentativa de interpretar «correctamente» a música antiga? Mas esse é outro problema, e não o tratarei agora.

Rodrigo de Bettencourt Saraiva de Sá

Lisboa, 2­‑3 de Julho de 2008
*1*O fado, esse sim, era sexuado, sensual, húmido de alcova, mas era precisamente desprezado por ser isso­.
*2* O Leonhardt não procedeu da mesma maneira: como sensual que é, é também místico, como o veio a revelar nos seus discos mais tardios e mesmo, sem ser em Bach, em reportório organístico do ­Séc­. xvii que tocava no final dos anos 70 (há uma ou duas cantatas gravadas pelo Leonhardt por essa altura que são convincentes nesse aspecto, também, embora eu o ache mau maestro)­. Mas não é negável que o Leonhardt dos primeiros discos é extremamente inferior àquilo que veio a ser e àquilo que na altura o Walcha ou o Anton Heiller faziam­. Em qualquer caso, o Leonhardt aparecia sempre ligado ao Harnoncourt, que era quem escrevia os textos de apresentação.
*3*Não referi aqui o Reinhardt Goebel: é o típico rocker que passou para um reportório sério e que, diria eu, nem sequer compreende bem: tudo é tocado a partir da voz de cima, sem qualquer atenção ao contraponto e com tempi de rock’n roll. É significativo que seja um dos intérpretes mais venerados pelo público entusiasmado pelos «barroqueiros». O mesmo para Andreas Staier, cravista abrupto e rápido.
*4*Não há um modernismo­. Há vários movimentos independentes que apenas partilham a rejeição do passado­. Por isso há tantas posições diferentes­. Tomarei aqui apenas a noção de rejeição de passado e será esse o significado do termo que usarei­. Interessante ver os Concepts of Modern Art, apesar da baboseira­.
*5*Na música, Harnoncourt, mais do que qualquer outro dos barroqueiros históricos, seria classificado como modernista e, mais especificamente, como expressionista, utilizando as formas antigas para exprimir os conflitos do nosso tempo­. Reinhardt Goebell, menos musical, ou pelo menos menos culto ou menos inteligente, acentuou ainda mais essa tendência.
*6*Incluo no termo «cultura pop» o rock’n roll. Independentemente de muita gente ficar chocada com a assimilação do rock ao pop, o facto é que pertencem à mesma família e que o pop inclui o rock.
*7*É exactamente no mesmo espírito que se deve compreender o entusiasmo do Séc xx pelo étnico­. Antes do modernismo, o étnico era, principalmente, o pitoresco: tinha­‑se coisas étnicas como exemplos, em vitrinas, em colecções, tal como se tinham animais empalhados ou quadros de borboletas­. Actualmente o étnico ganhou autonomia: pode­‑se mobilar uma casa em estilo étnico tal como se pôde procurar inspiração artística em estilos que não são ocidentais­. Trata­‑se, mais uma vez, de negar a herança especificamente europeia e enfatizar outros modelos­. O processo é circular em termos filosóficos: afinal não há ênfase na criação original, apenas se procura um outro modelo­. Mas funciona em termos sociológicos e de produção de arte porque se consegue cumprir o único princípio que realmente está em causa: a rejeição do recebido, a recusa da tradição­.

sábado, 25 de junho de 2016

EUREXIT

A ideia da Europa foi, sempre, uma ideia de intelectuais (pode-se ler Denis de Rougemont – 28 siècles d'Europe – sobre este tema).

Isso porque «a Europa» implica uma visão distanciada da cultura europeia no seu conjunto e das necessidades geo-estratégicas de uma zona, finalmente muito pequena, do mundo (a Europa é uma península da Ásia). Essa visão distanciada apenas uma pessoa culta a pode ter.

O povo acredita no que vê e conhece. E, por isso foi, sempre, insensível à ideia da Europa: é regionalista, nacionalista, racista e tem desconfiança e medo pelo que é diferente de si.

Esse regionalismo, associado a uma aberração intelectual da supremacia racial e cultural da Alemanha, levou às duas guerras do Sec xx. E tornou, no espírito de toda a gente que conheceu essa guerra, horror profundo por nacionalismos.

Assim, apesar de sempre ter havido sentimentos espontâneos de nacionalismo e regionalismo, nunca foram expressos por partidos políticos (até Le Pen) porque havia vergonha de se ser associado com o as ideias alarves que levaram ao nazismo. Essa vergonha era mantida por uma censura intelectual baseada na afirmação de que qualquer forma de nacionalismo era vizinha do nazismo.

Agora esse argumento deixou de pegar. Os velhos que viveram o tempo da guerra morreram; os velhos de agora são os nacionalistas que foram censurados durante a segunda metade do Séc xx. Os ideólogos da união também morreram ou estão a morrer e perderam influência.

Sem a memória da guerra e sem os próprios ideólogos da união post-guerra, deixou de haver vergonha de se ser nacionalista.

Rapidamente apareceram os demagogos que se aproveitaram do espírito bairrista, regionalista, nacionalista e do medo da diferença.

O Reino Unido é o primeiro caso. A França será, talvez o segundo, segue-se a Holanda.

Pode ser o fim da Europa unida.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Carta a uma rapariga que perdeu um grande amor


CARTA A UMA RAPARIGA QUE PERDEU UM GRANDE AMOR

Sei como te sentes. É toda a vida que parece que se foi, é o próprio chão vivencial que parece que nos foge. Não há rumo, nem sentido. Não há futuro nem passado, apenas o presente e a pavorosa angústia que o preenche. O passado, e com ele o sentido, foram­ te retirados. Tudo o que era teu, teu e d’Ele, não é, de momento, de ninguém. Foi tudo como que amputado, como que decepado e sangra. Tudo dói. Os únicos momentos suportáveis são quando dormes, quando não te sentes. Queres morrer, mas falta­ te a coragem. O não ser parece­ te um sono de que não se acorda e de que avidamente não queres acordar. 

Tudo quanto tinhas era teu, mas não apenas teu. Era vosso, de ti por Ele e d’Ele por ti. E é isso que agora vês em toda a tua vida: tudo o que tens existiu entre ti e Ele. Tudo é um sinal dilacerante do que perdeste, tudo te diz que o que parecia ser nunca foi.

Sei como gostavas do musgo nas paredes de pedra, dos fetos debaixo das árvores. Sei como aprendeste a perder­ te n’Ele como te perdias na profundidade do verde do musgo. E sei que por isso já não consegues perder­ te em nada, porque perder­ te em alguma coisa te recorda que já te não podes perder n’Ele. Estás sozinha, sabes que ninguém te pode ajudar. Estás sozinha porque a beleza que sentes não a podes dar a ninguém e que, para ti, dói mais senti­ la do que negá­ la. E é assim que vai ser sempre, até encontrares a quem dar se ainda o conseguires fazer: a beleza, que dantes era esperança, sinal de amor, é agora recordação amarga. O musgo vai deixar de ser um poço em que entravas, uma esperança mágica, para ser apenas um bonito tom de verde. O vento nas folhas dos choupos, que antes te dava paz e te centrava a nostalgia do ser no amor que sentias e no conforto da companhia é agora apenas o ruído indiferente do vento a passar por entre folhas. É um ruído belo, mas é um ruído que te mostra apenas que a beleza se desinteressa de ti. Tudo deveria calar­ se, tudo deveria dizer­ te que a beleza já lá não está porque tu estás de luto, porque a beleza em ti já não existe. Mas ela está lá, indiferente ao teu sofrimento. E a beleza passa a doer, a mostrar­ te que estás sozinha. Já não celebra o teu amor e o teu ser, mas apenas te lembra de que tu és só, que mesmo a beleza se desinteressou de ti.

É nessa beleza que reside a tua salvação, mas também a tua condenação. Hás­ de conseguir compreender que essa beleza existe porque tu a vês, não porque a vês para Ele. A beleza é tua, não vossa. E vais, pouco a pouco, conseguir vê­ la. Mas nesse momento mudarás: compreenderás que és tu e o teu mundo, tu no singular, sem complemento. Nesse momento que perceberás que estás sozinha e que vais continuar sozinha para sempre, porque o que sentes será sempre apenas teu. Se conseguires voltar a encontrar a quem dar a profundidade do musgo que voltaste a sentir, renascerás. Mas se não encontrares ou tiveres medo de a voltar a mostrar ficarás em ti para sempre.

Não será fácil viver em ti. A beleza é algo que se dá. Só faz sentido achar belo o que se pode mostrar. Tu mostraste­ o apenas a uma pessoa. A partir de agora vais conseguir vê­ lo só para ti? Ou vais tentar mostrá­ lo a quem te comover, quase sem selecção? Se for esse o caso, viverás apenas em ti, e os outros a quem mostras serão apenas um suporte de ti próprio, uma espécie de montra dos teus sentimentos. «Vejam como é lindo». Ao compreender que o acto de mostrar é apenas equivalente ao acto de sentir, compreenderás que estás ainda mais sozinha, que mesmo os outros são apenas objectos, interlocutores sem significado, uma plateia que te serve de apoio concreto. Os outros serão apenas projecções de ti, apoios à tua própria emoção. Estás sozinha, tu e o que sentes.

Tu não és uma diletante do amor ou da beleza –­ duas palavras para a mesma coisa. Ao tratar essa coisa como algo que se mostra a qualquer pessoa sentes­ te a trair­ te até ao âmago. Podes tentar fazer do mostrar uma missão, podes ensinar. É um acto de ternura mas ao mesmo tempo de renúncia.

Tens de encontrar a quem dar que compreenda. Pode ser a crianças. Pode mesmo ser no abstracto: podes escrever, fazer música, criar a partir de ti. Os outros, se quiserem, que encontrem lá o que lhes aprouver. Estás sozinha, mas na medida em que conseguires objectivar a beleza que sentes num suporte que não sejam outras pessoas terás conseguido voltar a viver.

Podes ter a sorte de encontrar quem aches que mereça receber o que tens para dar e podes mesmo conseguir receber de novo. Se isso não acontecer, a solução é apenas dar sentido à tua própria beleza objectivando­ a para ti.

Viver quando se sente é difícil. Vive para ti e faz beleza ainda que não encontres a quem a dar.


sexta-feira, 15 de abril de 2016

Sobre a questão do género da palavra «cidadão»

Sobre a questão do género da palavra «cidadão»

Instalou­ se uma confusão em torno da palavra «cidadão» e do pretenso sexismo que há em dizer «cartão de cidadão». Para esclarecer isto é fundamental compreender duas coisas em primeiro lugar.
Primeira, que a questão da equacionação de género e sexo é uma consequência do facto de, em inglês, sexo e género corresponderem sempre («her face, his arms» apontam para cara e braços de um ser vivo de sexo feminino e masculino respectivamente). Segunda coisa, que sexo e género não coincidem sempre na maioria das línguas.
Um exemplo cómico e excelente desta discrepância entre o inglês e a maioria das outras línguas é espanto que os falantes do inglês sentem perante géneros que não correspondem a sexos: considere-se um extracto do cómico texto «The horrors of the German language», de Mark Twain:
[In German]« a tree is male, its buds are female, its leaves are neuter, horses are sexless, dogs are male, cats are female – tomcats included».
Connosco as árvores são do género feminino, mas isso não espanta ninguém: a ninguém ocorre que se há uma árvore terá de haver um árvoro. É que em português sexo (propriedade biológica de um ser vivo) e género (categoria gramatical de uma palavra) não coincidem necessariamente.

Sexo e género

Reforcemos então as diferenças:
Sexo é um atributo de um ser vivo: cão ou cadela, gato ou gata, cabra ou bode.
Género é uma propriedade das palavras, por exemplo, dos substantivos. Assim: barriga, peito, pescoço e cabeça não têm sexo, mas são do género feminino, masculino, de novo masculino e finalmente feminino. Para nós, como para qualquer falante de uma linguagem com géneros, é evidente que «pescoço» não é macho e cabeça não é fêmea – apenas são referidos em dois géneros gramaticais diferentes.
Claro que nos anglófonos que não conhecem outras línguas a confusão entre sexo e género pode ocorrer, dado que o género coincide sempre com o sexo. Assim, «his book, her face» — os pronomes têm género e esse género gramatical coincide com o sexo.
No inglês não existem palavras com género gramatical mas sem sexo. Isso ocorre, contudo, na maior parte das línguas. Daí o espanto de Mark Twain e a confusão criada em torno do conceito de «género» e, no caso presente, no «cartão de cidadão».

O Neutro Português

O alemão tem neutro. E o português? Tem sim: «alguém», «aquilo», «aqui» são neutros. Mas nos substantivos há forçosamente género masculino ou feminino. Significa isso que «árvore» é um conceito feminino? Claro que não porque «choupo», «pinheiro», «carvalho» são do género masculinos e fazem parte das árvores. Apenas significa que gramaticalmente têm género feminino, não que têm sexo feminino.
Mas há outro tipo de neutro. Imaginemos duas conversas possíveis: «Tem filhos? Sim, uma rapariga e um rapaz»; e «Plantei hoje duas árvores! Um castanheiro e uma figueira!» Compreende-se que «filhos» não se refere a sexo mas sim a género gramatical; o mesmo com árvore, como já vimos.
Para tornar a questão mais clara, consideremos dois títulos possíveis de um livro: «O cão: saúde e conduta»; e «A cadela e o cão: saúde e conduta». No primeiro caso entende-se que o livro é sobre cães, genérico que inclui machos e fêmeas. No segundo entende-se que o livro trata ou das relações entre cães e cadelas do ponto de vista da conduta e da saúde ou das diferenças entre saúde e conduta de cães e cadelas.
Há sexismo neste uso da linguagem? Mais um exemplo: «Tem cabras? Sim, 14 cabras e um bode». Ou seja. Não, não há sexismo, é o nosso neutro.
Assim, em português, o neutro pode ser do género masculino (o cão) ou feminino (a árvore).

Finalmente, o Cartão de Cidadão

«Cidadão», neste caso, trata do genérico – do neutro. Cartão de cidadão, livro do cão, cartão de eleitor, pastor de cabras.
Ou seja, pode parecer haver sexismo no inglês, em que género e sexo coincidem necessariamente, mas é evidente que não há nas línguas, como a nossa, em que isso não ocorre. O que há é apenas uso do nosso equivalente funcional do neutro que, neste caso, é expresso pelo género gramatical feminino.
Pode-se ir até um pouco mais longe. No caso de «cartão de cidadão» é gramaticalmente óbvio que o género é neutro: «cartão DE cidadão»; Se fosse «cartão DO cidadão» poderia pensar-se em sexismo. Mas DE cidadão tira qualquer dúvida porque o género é, neste caso, indicado pelo pronome, e o género é neutro, como em «cartão de eleitor».

Feminismo e sua importância

O feminismo é um movimento definidor da modernidade. Foi e é importante ao reclamar direitos iguais para os dois sexos. Mas o feminismo só é uma questão linguística em inglês, língua em que sexo e género coincidem sempre. Não em português, em que isso não ocorre.
Importar guerras linguísticas de uma língua que funciona de maneira tão diferente da nossa é, admitamos, uma perda de tempo.

sábado, 9 de abril de 2016

Radicalizações


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A propósito do livro de Ha-Joon Chang (23 things they don't tell you about capitalism, Penguin, 2010), que desmistifica completamente a ideia de que o liberalismo funciona –serve apenas para enriquecer quem é mais rico— alguns comentários sobre a situação absurda da direita portuguesa.

A direita portuguesa, era a classe média – profissões liberais, quadros superiores do Estado. Era «direita» apenas no sentido de que não era «esquerda revolucionária» e que era mais ou menos conservadora (em termos estéticos e éticos). Posta assim, a «direita» portuguesa inclui a maior parte das famílias que conheci.

Ora a direita, agora, reclama­ se neo-liberal, isto é, promotora do mercado livre; o que é uma maneira de permitir a quem já tem muitas posses poder investir e ganhar; não é uma maneira de defender as classes das profissões liberais e dos quadros superiores do Estado. Naturalmente, essa «direita» não seria liberal – estaria, nesse caso, a ser suicida.

Mas, na medida em que essa «direita» nada se revê nas «causas fracturantes da esquerda» (casamento homossexual, liberdade total de emigração, vergonha história do nosso passado, etc.) vai­ se identificando com o que está contra essas causas fracturantes. Ora o que está contra essas causas fracturantes é uma direita que, na ausência de programa económico específico, acabou por abraçar o neo-liberalismo. Ser «conservador» passou, assim, de repente, a ser semelhante a «ser neo­ liberal». A situação é absurda, porque o neo­ liberalismo não é conservador no sentido da direita europeia continental e, especificamente, de Portugal.

Muitas das pessoas que andam a namorar o neo-liberalismo fazem-no apenas por não haver, em Portugal, um representante claro do conservadorismo tranquilo, centrista, português. E o mesmo se passa na restante Europa continental.

Que valores representa esse «conservadorismo»? Valores cristãos, sobretudo: igualdade, certamente, mas elitismo ao mesmo tempo; liberdade, mas não licenciosidade e libertinismo ou liberalismo; o domínio da lei, igual para todos; acabar com o povo, no sentido de tornar toda a gente de classe média – de todos serem civilizados e cultos, na tradição cultural ocidental. É uma aurea mediocritas, um domínio de uma classe média remediada e culta (a ideia, em si, é romana, de Virgílio).

A aurea mediocritas é exactamente o contrário do que o liberalismo defende —o mundo é de quem o conquistar, independentemente de quaisquer valores— e do que a verdadeira esquerda defende —redução do indivíduo a uma estatística, indiferienciação dos sexos, que passam a «géneros», corte radical com as culturas do passado, arbitrariedade de todos os valores.
É possível, hoje, essa via do meio? Sim e não.

Vamos ao Sim.

Sim na medida em que há países que a seguem com sucesso – na Escandinávia, embora com alguns problemas, têm-no conseguido, embora com um radicalismo ideológico que parece ir deitar tudo a perder.

Sim na medida em que os países que seguiram políticas de mercado livre reais tiveram crescimentos enormes em pouco tempo mas que levaram directamente a uma crise quase sem precedentes. Portanto, se o liberalismo é inviável há lugar para essa via do meio.

Sim na medida em que na ausência de políticas de centro, redistribuidoras, há desigualdades brutais que levam a rupturas sociais. Segue-se que tem de haver essa via do meio ou que haverá caos.

Agora vamos ao Não.

Não porque os poderosos são os ricos e, como em todos os tempos, os poderosos pagam a escravos para que lhes escrevam literatura justificatória – agora são os tratados de economia neo-liberal, com aldrabices e tudo; no passado foram teólogos que defendiam a monarquia como determinada por Deus.

Não porque os sistemas do meio são, por natureza, instáveis porque em democracia não há maneira de conseguir que os governos, na esperança de serem reeleitos, não gastem demais com a segurança social, determinando depois cortes brutais (como recentemente sucedeu entre nós). Ou seja, um governo de centro tende, ele próprio, a gastar demais e comprometer o equilíbrio.

Não, finalmente, porque a opinião pública está radicalizada: há extrema-esquerda e neo-liberais. No meio já quase ninguém fala, e quem fala deixou de ser ouvido porque só se ouve agora quem fala grosso e demagógico.

Escrevo tudo isto porque noto, nos eleitores tradicionalmente do centro, quer PS quer PSD, tendências para radicalização. Seguindo o que a psicologia social econtrou, cada grupo se radicaliza ordeiramente onde «deve», à esquerda no caso PS à direita no caso PSD. Ninguém parece saber bem em que acreditava inicialmente: apenas sabiam o grupo de pertença. Isto é: «sou de esquerda? então agora radicalizo-me à esquerda! Sou conservador? Então passo a neo-liberal!».

E finalmente escrevo isto para não desistir. Para lutar contra o enfileiramento das pessoas em grupos ululantes que defendem aquilo de que nem sabem sequer os perigos que representa para elas próprias.