sábado, 6 de março de 2010

O Eu e a persona em Portugal

Já foi dito, não é novidade, que o problema do Eu e o problema geral das identidades é muito importante para os portugueses. Há pelo menos dois escritores maiores do Séc. xx que lhe dedicaram atenção (Fernando Pessoa e Vergílio Ferreira) e a questão da identidade ocupou vários dos autores mais conhecidos entre nós (António José Saraiva, Agostinho da Silva, Eduardo Lourenço e, mais recentemente, José Gil).
Por outro lado é frequente dizer­ se que os portugueses (juntamente com os outros países do sul da Europa) são «diferentes»: que não têm respeito pelas regras, que não são cumpridores nem pontuais, que são pouco produtivos, que são emocionais, enquanto que os nórdicos são disciplinados, trabalhadores, levam as regras a sério. Esta diferença jogaria toda contra nós: careceríamos de «inscrição» – convicção do que se é e do que se deve fazer –, segundo Gil.
O que vou defender é um tanto diferente embora não discorde de muito do que se disse antes. Sem negar que não nos podemos comparar, em termos de produtividade ou de disciplina, com vários dos povos do Norte da Europa (e, com maioria de razão, com alguns povos orientais), gostaria de salientar o porquê íntimo desta diferença sem entrar em considerações valorativas, ou pelo menos não dizendo que uma atitude é pior do que a outra (não por relativismo cultural, mas porque genuinamente acho defeitos e virtudes em ambas).
Claro que para o fazer simplificarei ao extremo duas atitudes, tipificadas, talvez, na Alemanha do Norte e no Portugal de Lisboa. Ainda assim, há enormes variações. Admitamos que estou a criar dois polos, entre os quais o sul tende para um e o norte para o outro.

O sentimento de ser e a personagem

Todos nós nos sentimos ser. Quando estamos quietos, sem fazer nada, sentimo­ nos existir e sabemos que que sente esse existir somos nós. Quando desejamos alguma coisa, sabemos que somos nós quem deseja essa coisa. É a isso que chamo o sentimento de ser. Esse sentimento de ser é agitado por desejos e emoções. A curiosidade, o querer ter, a vontade de mandar, a agressão, o desejo sexual (paixão), a alegria, a zanga, o desprezo, a impaciência, a vontade de compreender são experiências que todos já tivémos. Este sentimento de ser corresponde, tecnicamente, ao termo «eu­ sujeito», mas simplifiquemos e chamemos­ lhe, de forma não muito correcta mas conveniente, «eu».
Além dessa sensação de ser, todos nós pensamos que somos qualquer coisa para os outros e para nós próprios: assim, temos nome, nacionalidade, profissão, estatuto, somos bonitos, feios, inteligentes, honestos, gostamos de desporto ou de literatura. Quer dizer, temos uma imagem de nós que esperamos que os outros partilhem. Chamemos a isso a personagem ou persona, isto é, máscara ou imagem social.
Todas as pessoas do mundo têm eu e persona. O eu­ sentimento de ser não parece ser fundamentalmente diferente consoante as culturas (apesar do que já foi afirmado, com base em quase nada, por Whorf). A personagem, pelo contrário, varia bastante e cada pessoa tem mais do que uma. Por exemplo, a personagem que encenamos com a nossa família próxima é geralmente muito diferente da que usamos no nosso trabalho; e, por mais séria e monolítica que a pessoa queira ser, ninguém tem a mesma persona com o cônjuge quando faz sexo e quando conversa na sala.
Quer o eu que se sente quer a persona que se mostra dependem de maneiras de lidar com as situações que nos são transmitidas pela cultura: um pedreiro aprende a lidar com os problemas relacionados com a construção, um lenhador com os problemas do corte das árvores e um médico tem de saber o que fazer perante uma doença. Além disso, ainda que as nossas motivações e sentimentos profundos variem pouco de cultura para cultura, têm formas de expressão diferentes consoante as culturas. Todos acasalamos, comemos, dormimos e construímos abrigos, mas as regras através das quais o fazemos diferem culturalmente, embora nos pareçam «as naturais».
Um outro aspecto importante é que todos nós precisamos de nos exprimir perante os outros: gostamos que nos apreciem, e gostamos de deixar a nossa marca quer no ambiente quer nos outros. Essa expressão pode ser de dois tipos. Podemos agir sobre o ambiente e sobre os outros de maneira codificada: por exemplo, para ser apreciado tenho de cumprir as regras; neste caso temos que os outros me apreciam pela minha persona, pela confirmidade das minhas acções às regras aceites. Ou pode suceder que os outros me apreciem por compreenderem como eu penso, como eu sinto; nesse caso os outros apreciam em mim a minha mente, a minha maneira de ser própria. São estas duas atitudes que tipificam, respectivamente, o norte e o sul.

Sentimento de ser e personagem no norte e no sul

Para que uma sociedade funcione bem tem de haver personagens muito bem definidas e, sobretudo, centradas nos resultados. Assim, se uma pessoa num grupo cooperativo tiver uma falha, é todo o grupo que sofre. Se as outras pessoas perdoarem a falha e tentarem compreender as razões pelas quais essa falha ocorreu, não haverá cooperação apesar de haver as melhores vontades do mundo. Se, pelo contrário, as pessoas não quiserem compreender as razões da falha e se preocuparem apenas com o insucesso causado pela pessoa que a teve, culparão a pessoa independentemente de ela poder ter razões para ter falhado de modo que o problema não volte a acontecer. Neste caso haverá dureza, mas a cooperação é assegurada.
Estas duas atitudes –compreender as razões da falha ou centrar­ se nas consequências da falha– correspondem a duas atitudes psicológicas diferentes. Compreender a falha implica que nos colocamos no ponto de vista do outro, que estejamos mais preocupados com o que se passou na mente de quem falhou do que com o seu comportamento. Não aceitar a falha corresponde a centrar­ nos no comportamento da pessoa que falhou, não na sua mente.
Não sei as origens das duas atitudes. Mas trata­ se de uma diferença fundamental entre o norte e o sul. No norte interessa o comportamento, o resultado que cada um fornece e com o qual se pode contar. No sul interessa a mente, as razões emocionais e mentais que levaram à acção. Falando do que sei, quer em Portugal quer na Itália a humanidade, quer dizer, o interesse pelas motivações das pessoas e o enternecimento pela falha, pela incapacidade –numa palavra, a piedade– são centrais às relações entre as pessoas. No norte é, sobretudo, a eficácia que conta. Thomas Mann, referindo­ se à Alemanha, diz, em mais do que um romance, que o «espírito artístico» (o interesse pelas coisas que se não vêm, uma certa apreciação do vago e dos climas emocionais, as intuições fulgurantes, o auto­ questionamento, a expressão emocional de si próprio) é uma característica do Sul ou pelo menos não alemã; o que seria alemão é a precisão, o interesse pelo concreto, pelo tangível, a eficácia alegre e segura, a ausência de instrospecção (denunciadora de fraqueza) e a segurança na acção. Ou seja, um dos elementos mais importantes nos países que agora admiramos é a eficácia, que se traduz na valorização do comportamento em detrimento da psicologia das pessoas com quem interagimos.
Esta diferença assenta em maneiras diferentes de viver as personagens no norte e no sul. No norte, quando se trabalha, enverga­ se uma personagem que é indiferente às emoções, aos sentimentos, e mesmo à psicologia de quem trabalha connosco: interessa que quem trabalha cumpra, para que os resultados do nosso comportamento se integrem precisamente com os resultados do comportamento dos outros. Assim se fazem máquinas sociais muito precisas. Os nórdicos têm vida privada, evidentemente. Apaixonam­ se, como os mediterrânicos, sofrem, confidenciam os seus dramas aos amigos. Mas o mundo das amizades e dos sentimentos é explicitamente separado do mundo do trabalho. Trabalhar tem uma série de rituais: tal como se formos testemunhas num caso em que conhecemos o juíz o não tratamos como nosso amigo ou se formos amigos do padre não o tratamos por tu numa cerimónia religiosa, também as relações de amizade cessam quando se começa a trabalhar. É a personagem, com todas as suas especificações, que determina o comportamento e, no trabalho, apenas o comportamento conta. Há, pois, uma anulação dos desejos do eu mais profundo, porque se enverga uma personagem que quase impede que os sentimentos se exprimam: apenas tem de se cumprir o dever.
No sul é muito diferente. No trabalho, numa festa, mesmo numa situação totalmente inesperada, tentamos sempre ser nós próprios, quer dizer, não abdicamos de uma imagem de nós que seja congruente com a nossa genuinidade, com o que sentimos. De modo que é possível conversar, gracejar, enfim, ser­ se como se é fora do emprego, enquanto se trabalha. Sentimos como profundamente artificial a ideia de encenar uma personagem que não somos nós. Queremos sempre ser nós próprios, queremos exprimir a nossa identidade, as nossas pecularidades e idiossincrasias. E, contrariamente aos nórdicos, precisamos de que quem trabalha connosco nos aprecie não como comportamento mas como mente: queremos que os outros gostem de nós e queremos gostar dos outros. Repito que não digo que isto não suceda no norte: apenas que a máscara que se enverga impede a expressão desses sentimentos. Ou seja, no norte pretendem­ se resultados impessoalmente produzidos, no sul pretende­ se a expressão da pessoalidade.
Claro que a expressão da pessoalidade e a compreensão dos outros como seres que sentem, que pensam, que sofrem, não é compatível com níveis muito altos de produtividade. Nos países mediterrânicos esses níveis altos só acontecem quando se consegue, numa instituição, fazer que as pessoas gostem todas umas das outras – o que, na prática, define as empresas mediterrânicas como empresas familiares.
Esta expressão do eu, esta pessoalidade, no trabalho, tem consequências graves. Por um lado, quando as relações de trabalho são sempre vistas como pessoais, uma ordem ou uma reclamação de um direito têm de ser sempre transformadas em pedidos. Enquanto que no norte as relações são, à partida, definidas como impessoais –uma ordem é uma ordem, um direito é um direito– no sul tudo é melindroso. Além disso, como os favores se pagam, no sul as redes de cooperação são redes de troca de favores pessoais, afectivamente investidos. É este o traço que está por detrás do nepotismo e da corrupção.

As regras e as personagens

Sentimo­ nos ridículos a encenar uma personagem e a cumprir uma regra que nos parece arbitrária – uma regra que não compreendemos. Sentimo­ nos ridículos a encenar uma personagem porque sabemos que não somos essa personagem; sabemos que os outros sabem que não somos essa personagem; e sabemos que os outros sabem que nós sabemos que não somos essa personagem. De modo que, no sul, se, entre duas pessoas cultas, uma delas encenar uma personagem, o mais certo é que a outra se ria e que quem encena acabe por se rir também, para não passar por tolo. Ou seja, o que eu sei que sou, o que eu sei que os outros sabem que sou, tem mais importância do que a personagem de que me revisto, e é a personagem que sofre.
No norte não é assim: a vida faz­ se a passar de personagem para personagem, sabe­ se isso, e os desejos do eu exprimem­ se pela personagem, não pelo próprio eu. Ou seja, é como se no norte fôssemos continuamente a farda que envergamos, e existem várias fardas, de modo que somos sucessivamente várias personas. No sul é o contrário: somos o que pensamos que somos e «o hábito não faz o monge». Sentimo­ nos parvos a copiar uma personagem porque no sul sentimos fortemente a distância que vai do eu à persona, e sentimo­ nos ridículos no fingimento.
O mesmo se passa com a regra. Uma regra que compreendamos seguimo­ la. Mas se ela nos parecer arbitrária sentir­ nos­ emos parvos a cumpri­ la e teremos medo de que os outros nos achem parvos. Em Portugal costumamos dizer que «somos anarcas», mas não é exactamente isso. Precisamos, sim, de compreender o porquê de uma regra. Um bom exemplo disso foi o recente caso de uma criança restituída aos pais biológicos. Ninguém concordou com a medida, porque não ela não se compreendia: afinal, a filha devia estar com quem amava e a amava, não com quem não conhecia. Quase ninguém deve ter pensado: «é a lei, e a lei é para se cumprir». A razão pela qual a lei é para se cumprir é que se não se cumprir entrar­ se­ á no caos porque a lei perde o seu carácter inviolável e estruturador das sociedades. Por isso uma lei, ainda que possa ter consequências injustas, deve ser cumprida.
Dir­ se­ á que no norte esta noção da importância do cumprimento da lei se compreendeu melhor do que no sul porque no norte se é mais culto. Não sei se isso é verdade. A maior parte das pessoas, independentemente da cultura de origem, não tem uma compreensão da fundamentação das leis e mesmo das regras de moral (Kohlberg): as pessoas não são todas filósofas ou juristas. Há, sim, personae diferentes: a persona nórdica é cumpridora, porque o que vai dela ser avaliado é o comportamento; enquanto que a persona do sul vai ser avaliada psicologicamente, isto é, vai­ lhe ser perguntado se não vê que a lei é tola. Assim, no norte, uma pessoa é bem vista quando o seu comportamento cumpre a lei; no sul, a pessoa é bem vista quando mostra ser inteligente e ter compreendido a situação.
Ou seja, como já disse, os critérios de avaliação são diferentes: no norte é o comportamento, no sul é a própria mente das pessoas. No norte é «pecado» parecer desobediente, no sul é «pecado» parecer parvo. Por isso no norte se cumprem leis e no sul e questionam. Com leis que a maior parte das pessoas não compreende exactamente, é óbvia a vantagem das culturas do norte.

A segurança de si

Ter leis e regras claras e instruções de comportamento não ambíguas e não questionadas ajuda a pessoa a sentir­ se segura: sabe o que pode fazer, o que não pode, o que ela e os outros devem fazer. Nesta situação, uma pessoa é como que educada para uma função. Isto ocorre precisamente nos países do norte, especialmente talvez na Alemanha. Esta ênfase no não ambíguo traduz­ se em termos de comportamentos. Como vimos, no norte, pretende­ se que o comportamento seja previsível de modo a que a acção de várias pessoas se coordene. É mais um traço da ênfase no comportamento de que falei antes.
No sul não se passa o mesmo. Como o domínio das relações humanas é dominado não tanto pelo comportamento quanto pelo que os outros pensam de nós (a intenção), especificamos mais facilmente princípios do que regras de comportamento. Em parte isso tem que ver com a paixão latina pela palavra e pelo significado: em vez de se definir um comportamento define­ se uma razão para a acção. Essa razão é explicada e comentada. Por isso somos verbosos e por isso os nórdicos levam o que se diz à letra (uma excepção notável a isto ocorre no Reino Unido).
Contudo, ter explicações para os comportamentos não substitui ter instruções precisas sobre o que fazer. Mais uma vez a ênfase no comportamento tem vantagens na cooperação: sabendo­ se o que se deve fazer e o que os outros farão, a cooperação é fácil. Conhecendo­ se apenas o que uma pessoa pensa sobre um assunto, em termos mais vagos multiplicam­ se os mal­ entendidos.
Tudo isso leva a uma muito maior insegurança social: nunca sabemos exactamente o que está em jogo, temos de tentar inferir, da expressão com que são não­ ditas as coisas, o que realmente está em causa e o que se pretende. Embora isto nos treine ainda mais na «leitura» de mentes alheias (intenções, sobretudo) fazendo­ nos potencialmente bons psicólogos, nunca se está completamente certo da própria posição: é a ambiguidade geral das situações sociais que impede que se saiba exactamente onde estão os limites e que dá uma grande falta de confiança às pessoas do sul; no sul, só quem faz as regras tem completa confiança porque não será atacado.
Por contraste, nas culturas no norte, em que é tudo explícito, não há lugar para zonas nebulosas em que é preciso adivinhar. Isto dá uma muito maior segurança: sabe­ se o que se pode e o que se tem de fazer. Se cumprirmos tudo, não teremos problemas. Daqui vem a grande eficácia, a ausência de necessidade de interpretar regulamentos e vontades de pessoas que se exprimem por formas oblíquas: é o comportamento que é regulamentado, não as mentes.

Falhas no sistema do sul

Tratarei aqui apenas dos problemas do sistema do sul. O do norte não nos interessa directamente e basta referir que o cumprir regras nem sempre é bom – pense­ se na História da Alemanha – e que há potencialmente menos compreensão psicológica profunda e piedade nas relações entre as pessoas.
Comparando o nosso sistema directamente com o alemão, verifica­ se que somos mais ricos no plano da expressão e compreensão de emoções, é­ nos mais fácil colocar­ nos do ponto de vista do outro e as relações humanas no geral são mais agradáveis (não é por acaso que vários livros europeus sobre Portugal afirmam que os portugueses são inabitualmente simpáticos e cordiais). Mas o sistema é vulnerável aos batoteiros. Havendo indefinição do que há a fazer e tolerância pelas falhas, é muito fácil que uma pessoa falhe, suscite a piedade dos outros, e «se safe» dessa maneira. Por outro lado, os manipuladores intelectuais têm a tarefa facilitada entre nós: desde que se cause a impressão de boa vontade, tudo lhes será facilitado – contornando as regras, porque é «para um amigo» – , ainda que os motivos dessa aparência de boa vontade sejam completamente calculistas. E claro, quando as pessoas se vêm em termos de mentes e de afectos, os nossos amigos são privilegiados (sentimos que temos obrigação moral e afectiva de os ajudar) e os nossos inimigos severamente punidos ou desfavorecidos. Cria­ se assim o famoso fulanismo e as consequentes redes de corrupção.
Por outro lado, a ênfase na expressão do eu tem o problema de criar potenciais tiranetes cheios de si, sobretudo porque não há regras que permitam dizer, fora da boa vontade, que certa pessoa está a ultrapassar os limites: quando essa pessoa tem poder não há muito a fazer contra ela, sobretudo se ela se rodear de pessoas que dependem dela. Governará o seu domínio em termos de favores concedidos e de ódios de estimação, causando um mal­ estar insuportável nas organizações. É este, talvez, o aspecto mais repelente da sociabilidade do sul, mas é preciso não esquecer que vem da afectividade: há também pessoas que chegam a lugares de poder e que governam pela boa­ vontade, formando assim grupos muito coesos e eficazes.
Por isso, o nosso sistema não é bom nem mau: é específico de alguns países do sul da Europa. Portugal, a Itália, em grande parte a Espanha, vivem em variantes deste registo. No norte vive­ se num registo mais áspero, mais simples, com regras definidas a preto e branco e com muito pouco implícito porque não se pretende que se interprete a mente dos outros mas que se execute uma função correctamente.
Não haveria nenhum problema com esta diferença se não vivêssemos numa sociedade moldada pelos valores mercantis e de competição: viveríamos mais pobremente, mas talvez com mais felicidade e provavelmente com maior riqueza nas relações quotidianas. Mas Portugal decidiu ser moderno –no sentido de ser como os nórdicos– e por isso os nossos sistemas de relacionamento são muito mais um problema do que uma virtude. Não somos eficientes, a cooperação é difícil, não produzimos. Mas queremos gastar como no norte. Há alguma solução?

Soluções?

A solução habitual é a «teoria da mão de ferro»: os portugueses (italianos, gregos, espanhóis) só funcionam com uma ditadura. Claro que isso pressupõe que há um ditador que sabe o que é melhor para o país, o que não é evidente que aconteça. Ainda assim, apesar de toda a eventual tendência para questionar tudo e para achar ridículas as pessoas que se identificam com a máscara, toda a gente obecede. É tudo baseado no medo –Salazar dizia que preferia que as pessoas o temessem a que o amassem, porque obedeciam melhor no primeiro caso– mas a sociedade é inquestionavelmente mais eficaz.
Mas a espíritos questionantes e que procuram saber o porquê das leis, é necessário ensinar mais (e não menos, como se fez durante demasiado tempo) do que a espíritos que procuram sobretudo obedecer.
As soluções são, a meu ver, as seguintes. A primeira é tornar as situações mais explícitas, fazer que as normas sejam cumpridas. Isso, como vimos, é muito difícil porque as pessoas do sul têm de compreender as normas para as cumprir. Portanto, segunda e terceira soluções, aumentar a formação de cidadania, que entre nós não é um dado óbvio, e fazer que as leis sejam cumpridas. A formação da cidadania consiste precisamente em explicar o porquê das leis, a necessidade de as cumprir para o bem comum e a necessidade que a sociedade tem de impôr, coercivamente, punições para quem não as cumpre. E implica também explicar o porquê de certas personagens, ainda que se saiba que nós não somos a personagem.
Esse esforço de educação implica que se esclareçam as pessoas sobre a diferença fundamental entre a lei e a piedade. A piedade tem lugar, evidentemente – é uma das riquezas da nossa cultura. Mas tem de se fazer compreender que a piedade, mesmo que exista, não pode impedir a justiça de punir quem fez um crime, ainda que tenhamos pena do criminoso. Este aspecto, que é muito antigo (já a Duquesa de Abrantes se lhe referia), levará imenso tempo a modificar. Implicará esforços de educação grandes.
Além disso, quarta solução, será necessário que a educação se faça sobre as competências específicas que permitam a uma pessoa ter eficácia sobre o seu meio. É a melhor maneira de conseguir que as pessoas tenham confiança em si próprias, e que possam exigir os mesmo das outras (trata­ se da questão da «inscrição» de José Gil).
Todo este grande esforço de educação demora muito tempo: implica educar as mentalidades para a passagem de uma sociedade baseada nos afectos e na expressão do eu para uma sociedade governada por leis impessoais. Corre­ se o risco de diminuir a riqueza psicológica e afectiva das sociedades do sul. Mas dado que queremos competir com os países das regras claras, não temos outra solução.

Lisboa, 25­ 27 de Fevereiro de 2010

Rodrigo de Sá­ Nogueira Saraiva