sexta-feira, 15 de abril de 2016

Sobre a questão do género da palavra «cidadão»

Sobre a questão do género da palavra «cidadão»

Instalou­ se uma confusão em torno da palavra «cidadão» e do pretenso sexismo que há em dizer «cartão de cidadão». Para esclarecer isto é fundamental compreender duas coisas em primeiro lugar.
Primeira, que a questão da equacionação de género e sexo é uma consequência do facto de, em inglês, sexo e género corresponderem sempre («her face, his arms» apontam para cara e braços de um ser vivo de sexo feminino e masculino respectivamente). Segunda coisa, que sexo e género não coincidem sempre na maioria das línguas.
Um exemplo cómico e excelente desta discrepância entre o inglês e a maioria das outras línguas é espanto que os falantes do inglês sentem perante géneros que não correspondem a sexos: considere-se um extracto do cómico texto «The horrors of the German language», de Mark Twain:
[In German]« a tree is male, its buds are female, its leaves are neuter, horses are sexless, dogs are male, cats are female – tomcats included».
Connosco as árvores são do género feminino, mas isso não espanta ninguém: a ninguém ocorre que se há uma árvore terá de haver um árvoro. É que em português sexo (propriedade biológica de um ser vivo) e género (categoria gramatical de uma palavra) não coincidem necessariamente.

Sexo e género

Reforcemos então as diferenças:
Sexo é um atributo de um ser vivo: cão ou cadela, gato ou gata, cabra ou bode.
Género é uma propriedade das palavras, por exemplo, dos substantivos. Assim: barriga, peito, pescoço e cabeça não têm sexo, mas são do género feminino, masculino, de novo masculino e finalmente feminino. Para nós, como para qualquer falante de uma linguagem com géneros, é evidente que «pescoço» não é macho e cabeça não é fêmea – apenas são referidos em dois géneros gramaticais diferentes.
Claro que nos anglófonos que não conhecem outras línguas a confusão entre sexo e género pode ocorrer, dado que o género coincide sempre com o sexo. Assim, «his book, her face» — os pronomes têm género e esse género gramatical coincide com o sexo.
No inglês não existem palavras com género gramatical mas sem sexo. Isso ocorre, contudo, na maior parte das línguas. Daí o espanto de Mark Twain e a confusão criada em torno do conceito de «género» e, no caso presente, no «cartão de cidadão».

O Neutro Português

O alemão tem neutro. E o português? Tem sim: «alguém», «aquilo», «aqui» são neutros. Mas nos substantivos há forçosamente género masculino ou feminino. Significa isso que «árvore» é um conceito feminino? Claro que não porque «choupo», «pinheiro», «carvalho» são do género masculinos e fazem parte das árvores. Apenas significa que gramaticalmente têm género feminino, não que têm sexo feminino.
Mas há outro tipo de neutro. Imaginemos duas conversas possíveis: «Tem filhos? Sim, uma rapariga e um rapaz»; e «Plantei hoje duas árvores! Um castanheiro e uma figueira!» Compreende-se que «filhos» não se refere a sexo mas sim a género gramatical; o mesmo com árvore, como já vimos.
Para tornar a questão mais clara, consideremos dois títulos possíveis de um livro: «O cão: saúde e conduta»; e «A cadela e o cão: saúde e conduta». No primeiro caso entende-se que o livro é sobre cães, genérico que inclui machos e fêmeas. No segundo entende-se que o livro trata ou das relações entre cães e cadelas do ponto de vista da conduta e da saúde ou das diferenças entre saúde e conduta de cães e cadelas.
Há sexismo neste uso da linguagem? Mais um exemplo: «Tem cabras? Sim, 14 cabras e um bode». Ou seja. Não, não há sexismo, é o nosso neutro.
Assim, em português, o neutro pode ser do género masculino (o cão) ou feminino (a árvore).

Finalmente, o Cartão de Cidadão

«Cidadão», neste caso, trata do genérico – do neutro. Cartão de cidadão, livro do cão, cartão de eleitor, pastor de cabras.
Ou seja, pode parecer haver sexismo no inglês, em que género e sexo coincidem necessariamente, mas é evidente que não há nas línguas, como a nossa, em que isso não ocorre. O que há é apenas uso do nosso equivalente funcional do neutro que, neste caso, é expresso pelo género gramatical feminino.
Pode-se ir até um pouco mais longe. No caso de «cartão de cidadão» é gramaticalmente óbvio que o género é neutro: «cartão DE cidadão»; Se fosse «cartão DO cidadão» poderia pensar-se em sexismo. Mas DE cidadão tira qualquer dúvida porque o género é, neste caso, indicado pelo pronome, e o género é neutro, como em «cartão de eleitor».

Feminismo e sua importância

O feminismo é um movimento definidor da modernidade. Foi e é importante ao reclamar direitos iguais para os dois sexos. Mas o feminismo só é uma questão linguística em inglês, língua em que sexo e género coincidem sempre. Não em português, em que isso não ocorre.
Importar guerras linguísticas de uma língua que funciona de maneira tão diferente da nossa é, admitamos, uma perda de tempo.

sábado, 9 de abril de 2016

Radicalizações


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A propósito do livro de Ha-Joon Chang (23 things they don't tell you about capitalism, Penguin, 2010), que desmistifica completamente a ideia de que o liberalismo funciona –serve apenas para enriquecer quem é mais rico— alguns comentários sobre a situação absurda da direita portuguesa.

A direita portuguesa, era a classe média – profissões liberais, quadros superiores do Estado. Era «direita» apenas no sentido de que não era «esquerda revolucionária» e que era mais ou menos conservadora (em termos estéticos e éticos). Posta assim, a «direita» portuguesa inclui a maior parte das famílias que conheci.

Ora a direita, agora, reclama­ se neo-liberal, isto é, promotora do mercado livre; o que é uma maneira de permitir a quem já tem muitas posses poder investir e ganhar; não é uma maneira de defender as classes das profissões liberais e dos quadros superiores do Estado. Naturalmente, essa «direita» não seria liberal – estaria, nesse caso, a ser suicida.

Mas, na medida em que essa «direita» nada se revê nas «causas fracturantes da esquerda» (casamento homossexual, liberdade total de emigração, vergonha história do nosso passado, etc.) vai­ se identificando com o que está contra essas causas fracturantes. Ora o que está contra essas causas fracturantes é uma direita que, na ausência de programa económico específico, acabou por abraçar o neo-liberalismo. Ser «conservador» passou, assim, de repente, a ser semelhante a «ser neo­ liberal». A situação é absurda, porque o neo­ liberalismo não é conservador no sentido da direita europeia continental e, especificamente, de Portugal.

Muitas das pessoas que andam a namorar o neo-liberalismo fazem-no apenas por não haver, em Portugal, um representante claro do conservadorismo tranquilo, centrista, português. E o mesmo se passa na restante Europa continental.

Que valores representa esse «conservadorismo»? Valores cristãos, sobretudo: igualdade, certamente, mas elitismo ao mesmo tempo; liberdade, mas não licenciosidade e libertinismo ou liberalismo; o domínio da lei, igual para todos; acabar com o povo, no sentido de tornar toda a gente de classe média – de todos serem civilizados e cultos, na tradição cultural ocidental. É uma aurea mediocritas, um domínio de uma classe média remediada e culta (a ideia, em si, é romana, de Virgílio).

A aurea mediocritas é exactamente o contrário do que o liberalismo defende —o mundo é de quem o conquistar, independentemente de quaisquer valores— e do que a verdadeira esquerda defende —redução do indivíduo a uma estatística, indiferienciação dos sexos, que passam a «géneros», corte radical com as culturas do passado, arbitrariedade de todos os valores.
É possível, hoje, essa via do meio? Sim e não.

Vamos ao Sim.

Sim na medida em que há países que a seguem com sucesso – na Escandinávia, embora com alguns problemas, têm-no conseguido, embora com um radicalismo ideológico que parece ir deitar tudo a perder.

Sim na medida em que os países que seguiram políticas de mercado livre reais tiveram crescimentos enormes em pouco tempo mas que levaram directamente a uma crise quase sem precedentes. Portanto, se o liberalismo é inviável há lugar para essa via do meio.

Sim na medida em que na ausência de políticas de centro, redistribuidoras, há desigualdades brutais que levam a rupturas sociais. Segue-se que tem de haver essa via do meio ou que haverá caos.

Agora vamos ao Não.

Não porque os poderosos são os ricos e, como em todos os tempos, os poderosos pagam a escravos para que lhes escrevam literatura justificatória – agora são os tratados de economia neo-liberal, com aldrabices e tudo; no passado foram teólogos que defendiam a monarquia como determinada por Deus.

Não porque os sistemas do meio são, por natureza, instáveis porque em democracia não há maneira de conseguir que os governos, na esperança de serem reeleitos, não gastem demais com a segurança social, determinando depois cortes brutais (como recentemente sucedeu entre nós). Ou seja, um governo de centro tende, ele próprio, a gastar demais e comprometer o equilíbrio.

Não, finalmente, porque a opinião pública está radicalizada: há extrema-esquerda e neo-liberais. No meio já quase ninguém fala, e quem fala deixou de ser ouvido porque só se ouve agora quem fala grosso e demagógico.

Escrevo tudo isto porque noto, nos eleitores tradicionalmente do centro, quer PS quer PSD, tendências para radicalização. Seguindo o que a psicologia social econtrou, cada grupo se radicaliza ordeiramente onde «deve», à esquerda no caso PS à direita no caso PSD. Ninguém parece saber bem em que acreditava inicialmente: apenas sabiam o grupo de pertença. Isto é: «sou de esquerda? então agora radicalizo-me à esquerda! Sou conservador? Então passo a neo-liberal!».

E finalmente escrevo isto para não desistir. Para lutar contra o enfileiramento das pessoas em grupos ululantes que defendem aquilo de que nem sabem sequer os perigos que representa para elas próprias.