tag:blogger.com,1999:blog-58366460990931538492024-03-08T14:47:13.099-08:00Counterpoint and less serious matters; Contraponto e assuntos menos solenesBaroque and pre-Baroque music: Personal thoughts and notes, some in English, other in Portuguese. Some posts can be rather technical, others are easy to grasp.
Reflexões sobre música barroca e pré-barroca.Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.comBlogger37125tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-82748103977895858412018-12-12T10:08:00.000-08:002018-12-12T10:08:23.478-08:00Ser e ter e os coletes amarelos<br />
A oposição entre ser e ter teve bastante voga, mas não pegou. As pessoas agora são o que têm e é essa a mensagem quer do mercado livre quer dos sindicatos. São ideologias materialistas que equacionam a felicidade com a obtenção dos desejos.<br />
<br />Nessa ideologia, os objectivos de uma pessoa esgotam-se no possuir. <br /><br />
Pensando fora dessa ideologia, tem de se conceder que o possuir faz sentido, na medida em que um eu precisa sempre de um suporte material que não se esgota no corpo: o eu estende-se sobre o mundo à volta dele, como na aranha a teia faz parte do mundo próprio. De modo que é sempre necessário ter o suficiente para se ser, e o necessário não são apenas a comida e o abrigo: cada pessoa tem de construir o casulo em que vai existir e através do qual se vai relacionar com o ambiente e com os outros e assim ser. <br /><br />
Mas a actual definição do eu como «tenho» parece-me anormal. Essa é a definição do conquistador de terras. Mas mesmo no conquistador, as conquistas são apenas a prova da sua capacidade de conquista, a prova do que ele é, a prova de «eu sou um conquistador e eis as minhas conquistas». Mesmo o conquistador tem para poder sentir que é. Tal como o novo rico exibe casas enormes, carros potentes e roupas e telemóveis caríssimos. Todo esse arsenal é a prova de que ele é capaz, de que conquistou, de que ele é. Essa prova funciona para ele e para os outros: para que ele saiba e para que os outros saibam que ele é. <br /><br />
E, de facto, o ser é sempre o resultado do reconhecimento de um avaliador de nós próprios. Os avaliadores podem ser eu próprio ou os outros (William James). Mas mesmo quando o avaliador de mim sou eu, os critérios com que avalio não são nunca integralmente meus, são apenas interiorizações de critérios que recolhi do mundo social em que nasci. Esses critérios de avaliação moral são sempre comparativos: há um ideal e as pessoas são avaliadas por referência a ele. <br /><br />
E por isso o ser exige que haja uma comunidade que nos avalie e aprecie, comunidade essa de que eu tenho de me sentir fazer parte e de que partilho os critérios de avaliação. Ou seja, só se é na medida em que se vive numa comunidade com a qual nos identificamos. <br /><br />
No mundo atomista, impessoal, individualista em que vivemos, vive-se anonimamente e não se é avaliado por ninguém excepto pela nossa capacidade de ter, porque é o que os outros, que não nos conhecem, podem ver e reconhecer. <br />
<br />
Nos assalariados a condição ainda é pior, porque se é avaliado apenas como peça necessária ao lucro e se é recompensado em capacidade de comprar e ter. <br /><br />
Nas comunidades antigas, pré-tecnológicas, cada pessoa era conhecida por si própria: pelo grau em que se cumpria os critérios mas também pela sua personalidade, pelas suas manias, pelos seus gostos. Era-se alguém, bom ou mau, virtuoso ou pecador, e tinha-se identidade (a Gemeinschaft de Tonies). <br /><br />
Mas o mundo é agora enorme, vivemos vidas solitárias, em que se procura a independência individual total em que o único critério de avaliação é o ter. <br /><br />
E por isso um protesto de solidão, de falta de reconhecimento da própria existência, da ausência de identidade social apenas se pode exprimir em termos de reivindicações de ter – aumentos de salário, de pensões, de coisas que permitem possuir. <br /><br />
Não sei se o que aqui digo se aplica completamente ao caso dos coletes amarelos, mas suponho que pelo menos uma parte da explicação é esta.<br />
<br />Santo Estêvão, 13 de Dezembro de 2018Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-37098422337393495172018-07-09T18:24:00.001-07:002018-07-09T19:13:51.409-07:00<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><i>Este texto escrevi-o há muito tempo. Mas ocorreu-me publicá-lo agora, pensando nos meus avós. </i></span><br />
<br />
<br />
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><i>
</i></span><br />
<h2 class="western" style="page-break-before: always;">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif; font-size: x-large;">Estátuas de
bronze, moldes de barro, originais de cera</span></h2>
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Uma
das coisas que me impressionam quando considero as pessoas que
conheci e que nasceram numa época de certezas – a honra, a palavra
dada, a dignidade, a lealdade, o casamento, a família, tudo coisas
que hoje em dia não se sabe bem o que significam – é a sua
impressionante força. </span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Tratava-se
de pessoas que, pelos seus ideais, pelos moldes em que foram criados,
pareciam de bronze. Podia-se sempre contar com padrões
éticos absolutamente justos de acordo com a cultura do tempo delas;
tinha-se a sua aprovação ou desaprovação –
absolutamente imparciais – conforme se agia de acordo com essas
regras ou não. Tratava-se de pessoas fortes, honradas,
absolutamente honestas. </span></span><br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"> </span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">E,
contudo, a minha geração, ainda que admire estas pessoas, não
consegue ser como elas. Ocorre-me uma analogia. Disse acima
que estas pessoas me parecem de bronze, como as estátuas que ainda
hoje podemos ver nos bons museus da antiguidade clássica. Elas
sentiam-se de bronze, inatacáveis, fortes e seguras. Mesmo
tendo o mundo contra eles mantinham-se quem eram.</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">E
nós? Passou a 2ª Guerra mundial e a geração dos meus pais foi
perdendo a fé. Depois tivemos a propaganda revolucionária que
tentou demonstrar que a moral burguesa era hipócrita. O resultado
foi que a minha geração cresceu na dúvida completa: o que são os
valores? Durante toda a minha juventude os vi bem criticados e mal
defendidos. Na medida em que a esquerda impôs os valores de
solidariedade e justiça social (pelo menos no papel: a prática foi
sempre diferente) os valores anteriores foram substituídos. Mas
tínhamos assimilado demasiado bem a ideia de que o molde era de
barro. </span></span><br />
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Misturemos a metáfora e o seu referente: qualquer pessoa com
espírito crítico pensava que se os moldes burgueses são de barro,
quaisquer moldes são de barro. Porquê a solidariedade? Porquê a
justiça social? </span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Seguindo
a metáfora, a minha geração compreendeu que, se a estátua é de
bronze, o molde da estátua é de barro. É dentro desse barro que se
deita o bronze que vai fazer a estátua. E o barro é barro, poeira
amassada como se quer. Assim perdemos as certezas. </span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Com
a queda da esquerda, as coisas pioraram, porque o ideal da igualdade
foi destruído pelo capitalismo. E aí, com a consciência surda de
que os moldes eram todos de barro, as pessoas entregaram-se
ao mais profundo egoísmo – é esse o princípio do
neo-liberalismo até há tão pouco defendido por todos os
intelectuais da moda. </span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">O
problema é que o egoísmo não é solução porque é
fundamentalmente gerador de infelicidade. Somos pessoas sociais, o
nosso país tem uma fortíssima influência católica que nos faz ver
os outros como pessoas e não apenas como concorrentes. </span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">De
resto, para as pessoas normais, é preciso uma regra, um modelo, para
governar as nossas vidas; temos de estabelecer princípios para que
haja um mínimo de ordem intelectual e coerência naquilo que
fazemos. Mas os moldes são de barro: se os princípios não têm
justificação como nos podemos orientar por eles? </span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Deixem-me
continuar a metáfora. Como se fazem – ou pelo menos como se
fizeram durante muito tempo – os moldes de barro? Fazia-se
primeiro uma matriz, o modelo da estátua que queríamos produzir em
bronze. Esse molde era feito num material plástico, que se podia
moldar, modificar, acrescentar, reduzir: a cera. Trata-se
do método conhecido por «cera perdida»: faz-se o modelo,
cobre-se com o molde de barro, aquece-se o modelo e a
cera liquefaz-se e sai; fica-se com o modelo em barro e depois podemos introduzir nele o bronze
líquido – o tal bronze de que eram feitos os nossos avós. </span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">É
isso que nos sentimos agora: produtos de modelos de cera; não, não
podemos nem conseguimos acreditar que somos de bronze. Sabemos que,
na origem, somos apenas cera, maleável, insubstancial, plástica e
amorfa.</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Apercebemo-nos
desta situação quando perdemos, quando o nosso cônjuge com quem
pensávamos vir a envelhecer nos deixa, quando perdemos o emprego,
quando o nosso filho que adoramos se volta contra nós e parece
odiar-nos. Havendo valores estáveis era possível
recomeçar, perceber, explicar. E agora? Que regras há para
explicar? Que o mundo é cruel? Que o mundo não tem sentido? Que a
vida é dura e que depois se morre? Tudo isto será verdade, mas não
dá consolo, não ajuda, deixa-nos completamente sós num
mundo hostil. Ficamos nus e ao frio, numa paisagem desolada e sem
saber para onde ir. Estamos nus no mundo, sem defesa, sem rumo, sem
nada.</span></span><br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"> </span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Há
quem brinque com isso. O post-modernismo pode ser trágico
– quando as pessoas realmente compreenderam a tragédia que é não
ter quaisquer referenciais – ou lúdico, quando pessoas
oportunistas ou ingénuas descobrem que podem ser o que quiserem. Já
se afirmou com alegria a nulidade do ser e o triunfo do niilismo. Nos
meios intelectuais americanos, franceses ou lisboetas há quem se
ufane de que «a verdade não existe». Claro que a verdade não
existe, porque qualquer juízo humano é uma imposição de uma
ontologia (que é uma ficção) a um mundo que nem sabemos o que é. </span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Mas
existe o Eu, no mínimo, a consciência de ser. Não se pode ser sem
se impôr ordem, sem se classificar, sem se compreender. Na nossa
espécie <i>tudo tem de ter um sentido.</i></span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Agora
tomámos consciência de que esse sentido não existe. Isso é bom?
Não, é uma profunda tragédia, ou pelo menos é assim que a maior
parte das pessoas, quando em crise, toma disso consciência.</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div align="CENTER" class="western">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">§</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">A
verdade é que, como eu já escrevi, a moral – o molde – é uma
invenção humana pura e simples. Sim, podemos estar biologicamente
preparados para a aceitar, como certos dados indicam. Mas nem por
isso, aos olhos crus e secos do racionalismo, deixa de ser uma
fantasia. Sim, beneficiamos todos em seguir as regras e em acreditar
nelas. </span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Mas
o problema é este: o mundo é uma coisa que se transforma no tempo,
sem direcção e sem sentido. Obedece à sua própria estrutura, que
é apenas a estrutura de si próprio. Não há aí lugar para qualquer
intenção, para qualquer significado, para qualquer teleologia. </span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Peço
a atenção dos meus leitores para este ponto: é simples mas é
contra intuitivo. Se, em vez de <i>antecedente</i>,
falarmos de causa, de dever ou de culpa; e se, em vez de <i>consequente</i>,
falarmos em bem e mal, estamos a impor um <i>postulado ontológico
sobre o mundo</i>. O mundo não é moral nem deixa de o ser, não tem
causas nem consequências: é uma mera sequência de efeitos
físico-químicos. </span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><i>São
os nossos cérebros e as nossas mentes</i>, condicionados pelos
nossos genes e pelos traços da cultura que fomos geneticamente
programados a aceitar acriticamente, que vêm o mundo como ético ou
como tendo de ter sentido.</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">O
grande problema vem de se compreender isso. Aí compreendemos que
somos de cera. E, por mais princípios que procuremos, não temos
saída: são aqueles que nós quisermos e mesmo esses não têm
nenhum valor.</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">É
então que nos sentimos nus e sozinhos perante um mundo sem sentido e
indiferente ao nosso sofrimento e angústia. Não há nada a que nos
possamos agarrar de maior do que nós: somos <i>apenas
nós</i>,
solitários e nus na nossa angústia. </span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div align="CENTER" class="western">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">§</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Há
pelo menos quatro saídas para quem se confronta com o que eu disse.
A primeira é desistir. A segunda é inventar um sentido sabendo-se
que é falso. A terceira é fingir que não se compreendeu. A quarta
é cultivar o hedonismo. </span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">— Quanto
à primeira solução, há a dizer apenas isto: há pessoas que
gostam de viver e outras que não gostam. Algumas dessas têm a
coragem de desistir. Feliz ou infelizmente quase todos nós, mesmo
nos momentos de mais negro desespero, estamos demasiado agarrados à
vida e temos demasiado medo da irreversibilidade da morte.</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">— Tentar
ignorar. Diz-se que Sócrates terá declarado preferir ser
um Sócrates – entenda-se, um homem inteligente mas
infeliz – do que um cão feliz – entenda-se, um homem
inconsciente das razões porque faz as coisas.</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Se
esta frase é de facto de Sócrates, ele mostra-se aqui bem
mais próximo do cão do que do filósofo inteligente. É que, <i>uma
vez descoberto o jogo, não há saída possível</i>. Sócrates teria dito
«preferir». Mas o problema é que, quando se descobre o mecanismo,
<i>já não se tem escolha nem qualquer possibilidade de «preferir»
seja o que for</i>. Está-se condenado à danação eterna
da falta de significado e da ausência de princípios que dêm norte à nossa vida.</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">— Inventar
um sentido que se sabe ser falso é, igualmente, impossível. As
coisas que sabemos serem falsas não têm o poder de nos influenciar
ou de nos motivar. Esta afirmação foi demonstrada no quadro dos
estudos de atitudes (não se consegue modificar a auto-estima
física de uma pessoa que ouve uma descrição física dela em que
ela não acredita; mas se essa descrição parecer real dá-se
a modificação na auto-estima). De modo que o mito
post-moderno de que «se inventam significados» pura e
simplesmente não funciona. </span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">—
O Hedonismo. A não ser que sejamos psicopatas ou seres
egocentricamente primários, todos já sentimos culpa ao seguirmos
estratégias egoístas. É verdade que a sociedade capitalista,
ferozmente competitiva, tenta incutir-nos a ideia – o tal
molde de barro – de que temos de nos preocupar primeiro e quase só
connosco. Há pessoas que são tão plásticas que o aceitam sem
problemas de consciência. Mas fazer mal ao nosso semelhante, apesar
de tudo, vai contra a matriz judaico-cristã da nossa
civilização; e fazer mal a um amigo parece ser intrinsecamente
culpabilizante: pode ser uma instrução inata. Não são todas as
pessoas que se conseguem tornar no modelo do calculista frio que usa
os outros. Para nosso bem ou nosso mal, todos queremos gostar de
alguém e que as pessoas de quem gostamos gostem de nós.</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">O
hedonismo só grosseiramente se pode equacionar com praticar sexo,
tomar drogas e comer muito. Tudo isso corresponde apenas a papéis, a
caricaturas que a cultura nos apresenta como exemplos a não seguir.
O estereótipo do homem que, enganado pela mulher, se entrega a uma
vida de deboche é exactamente isso: um estereótipo e um modelo
social. Não é seguindo modelos sociais que ultrapassaremos crises.
</span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Cultivar
o prazer significa apenas gostar de viver. Para gostarmos de viver,
temos de saber o que queremos (por oposição àquilo que a sociedade
pensou por nós). Para isso temos de nos conhecer, temos de nos
emancipar dos papeis que a sociedade nos propõe. Temos de saber
auscultar o nosso sentir e de perceber que consequências têm para
nós as coisas. E, racionalmente, cultivar o que nos interessa e nos
agrada. </span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">É
esta aprendizagem da individualidade, de uma solidão entre os
outros, de estarmos nus connosco próprios, que é a chave para
vencer crises. </span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div align="CENTER" class="western">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">§</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Resta
saber se preparamos psicólogos e psiquiatras capazes de ajudar as
pessoas a aprender a sua individualidade e a auscultar-se e
definir-se. Mas esse é outro problema, para outra
comunicação. </span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div align="CENTER" class="western">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">§</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">O
que aqui disse não é optimismo nem pessimismo. Penso que é
realismo. </span></span></div>
<div class="western">
<br />
<br /></div>
<div class="western">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;"><i>Segundo texto, que dá resposta a este, e já aqui publicado</i></span></span></div>
<div class="western">
<br /></div>
<div class="western">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: x-small;"><i>
</i></span></span></div>
<h1 class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><i>Ars Vivendi</i>: Ler o Jornal<sup><a class="sdfootnoteanc" href="https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=5836646099093153849#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc"><sup>1</sup></a></sup></span></h1>
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span>
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: small;"><br /></span></span>
</div>
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: small;">
</span></span>
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-weight: normal;">Um
fragmento</span><span style="font-weight: normal;"> </span>de
Pierre Daninos (sobre a nostalgia da inocência de uma vida toda
programada: Monsieur Massenavette), a <i>Aparição</i><span style="font-style: normal;">
do sentir o eu, de Vergílio Ferreira e a </span><i>Madame Bovary</i><span style="font-style: normal;">,
de Flaubert, são os três inspiradores deste texto (incongruentes?
Mas um trágico é sempre um cómico e vice versa; e creio
que Flaubert se riu e enterneceu ao mesmo tempo com as Bovarys que
conheceu). M. Massenavette é um pasteleiro de uma cidade de
província e Daninos inveja a vida dele por um segundo: uma vida
calma, assente em princípios que não são postos em causa e todo
entregue à sua profissão. Na </span><i>Aparição</i><span style="font-style: normal;">
discute se a descoberta do eu, o milagre do ser contra o
não ser. Na </span><i>Bovary</i><span style="font-style: normal;">
trata se da necessidade de sentir e de viver intensamente.</span></span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div align="CENTER" class="western" lang="pt-PT" style="font-style: normal; widows: 4;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
§</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-style: normal;">Quando
eu era pequeno tinha a ideia de que os crescidos se levavam a sério
e habitavam totalmente a personagem que eu via. O protótipo disto
era a leitura do jornal: via os ler o jornal, muito
seriamente, mas não entendia como era possível uma pessoa
interessar se por coisas tão desinteressantes (porque
separadas do desejo auto centrado) como a política ou os
</span><i>faits divers.</i><span style="font-style: normal;">
</span></span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT" style="font-style: normal;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">De tanto
ver as personagens, em pequenos, acabamos por acreditar nelas. É
mais tarde, quando tentamos nós próprios entrar para as personagens
(usando o exemplo, quando tentamos achar o jornal interessante) que
as coisas se alteram, porque sentimos a incapacidade de sair do nosso
eu simples e auto centrado que só se interessa pelos seus
próprios caprichos e vontades. No jornal lê se sobre
coisas que não somos nós, pelo menos no sentido de não serem
coisas que nos afectam directamente. É preciso uma pessoa sentir se
parte de uma sociedade, de um conjunto de normas, para compreender em
que é que as notícias políticas ou económicas a afectam. Uma
criança nunca será capaz disso, porque vive integralmente no plano
dos desejos primários: aquilo a que o Freud chamaria o princípio do
prazer.
</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-style: normal;">A
pessoa que lê o jornal com prazer sente se, como M.
Massenavette, parte de uma comunidade, conhece o seu papel, toma
partido e assume o papel que a comunidade lhe deu. No limite, vive no
papel, sem nunca sonhar com problemas existenciais ou sequer
psicológicos. Os Mm. Massenavettes são a matéria prima
de que se fazem as sociedades estáveis: são a carne e o espírito
que dão corpo às estruturas sociais. Cumprem, fazem cumprir e não
existem como seres questionadores. Não compreendem a </span><i>Aparição</i><span style="font-style: normal;">
e nunca cederiam às tentações de Emma Bovary: a sua personagem
social nunca o permitiria. A Bovary, pelo contrário, não tolera a
obediência às normas do seu estatuto. Em parte porque é ambiciosa,
em parte porque não as compreende mas as despreza, em parte –e
talvez sobretudo– porque precisa de sentir. E como sentir para um
espírito simples é apenas sentir os prazeres primários, procura o
sexo. Mas, como a criança de Freud, vive no princípio do prazer. De
resto, é um M. Massenavette que a Bovary rejeita: o seu marido,
contente com a sua sorte. </span></span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-style: normal;">Emma
Bovary tipifica aquilo a que chamo não acreditar na personagem </span><i>por
baixo</i><span style="font-style: normal;">. Não conseguimos
compreender os atractivos da personagem –não conseguimos chegar a
ler o jornal, e apenas podemos fingir que o fazemos– porque o que
realmente tem significado para nós são os nossos desejos imediatos,
aquilo que nos cerca: não conseguimos interessar nos pela
discussão de uma lei que não nos diga respeito, não conseguimos
interessar nos pela ideia de «país». Somos todos no
nosso querer e desejar e não no que se passa fora de nós e sem
relação directa connosco. </span></span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-style: normal;">Mesmo
quando finalmente conseguimos interessar nos pelo que se
passa longe de nós –quando finalmente temos interesse na leitura
do jornal– há sempre grandes tentações de cair no egocentrismo
infantil. Se pudermos conseguir ser o centro do mundo e ter o que
desejamos sentimo nos de novo como crianças e sentimos o
prazer inteiro do desejo gratificado. Daí que, na adolescência e,
para muita gente, durante toda a vida, consideremos os que jogam
realmente as regras e que se interessam principalmente pelo que vem
no jornal uns tansos, uns ingénuos. Afinal, a regra que aplaudimos
quando lemos o jornal pode ser a honestidade, mas eu vou lá resistir
a ficar com o dinheiro todo ou a ir para a cama com a bela mulher de
um amigo! Há, portanto, muitas pessoas que já lêem o jornal, mas
sobretudo sobre o seu clube, sobre o seu carro, o seu computador, e
têm sempre um olho para o que podem arranjar como gratificação
primária. Digamos que lêem o jornal porque fica mal ler (ver?) o
</span><i>Playboy. </i><span style="font-style: normal;">E por isso há
tantas «Revistas do Automóvel», «A Bola» e «Maria». </span></span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-style: normal;">Há
uma forma particular de mascarar o rejeitar </span><i>por baixo </i><span style="font-style: normal;">em
rejeitar </span><i>por cima</i><span style="font-style: normal;"> que
é muito frequente. Isto é, conhece se a personagem mas
não se gosta dela. As razões são superficiais: rejeita se
apenas por achar que viver «daquela maneira» é </span><i>vieux
jeux</i><span style="font-style: normal;"> ou «foleiro», sem
realmente compreender o que se rejeita. Finge se então um
desdém «superior» pela posição que não se compreende porque se
é primário e auto centrado. Na minha memória estão
todos os pedantes de todos os círculos «bem pensantes» e
muitas raparigas bonitas que se recusavam ao banal – como a Bovary.
A recusa era puramente infantil: queriam apenas a gratificação
imediata, mas, imitando quem realmente se pergunta porquê ler o
jornal, diziam que o não liam porque o desprezavam. E dizendo se
acima das regras tentavam (e conseguiam e conseguem, pelo menos
durante algum tempo) que as outras pessoas os deixem seguir
apenas a necessidade primária de prazer imediato, em nome de um
«ideal» mais profundo. Ou seja, dizendo se acima das
regras, essas pessoas conseguem viver por baixo delas com o
consentimento dos outros. </span></span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-style: normal;">Claro
que uma rejeição profunda da personagem é muito diferente e mais
rara – na verdade é raríssima e provavelmente nunca é integral.
Estar realmente </span><i>acima</i><span style="font-style: normal;">
da personagem implica compreendê la, compreender o eu e
compreender que, qualquer que seja a personagem, o eu é mais do que
ela. Isto significa compreender que </span><i>o que eu faço ou sinto
não é tudo aquilo que sou, </i><span style="font-style: normal;">e
que</span><i> o eu mais verdadeiramente Eu é o que observa o que
faço e sinto</i><span style="font-style: normal;">. Nesse sentido, o
eu é a tal aparição de que Vergílio Ferreira fala, o milagre de
ser um eu. O eu desejo, sensação de ser e prazer de fazer
não é afinal eu próprio; eu sou quem pensa esse eu, quem o vê e
quem o comenta. É, afinal, o aparecimento do eu racional, do eu
cartesiano, que pode tentar compreender o outro eu, o dos impulsos,
entusiasmos e deveres. </span></span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT" style="font-style: normal;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Não se
trata de dois eus diferentes, mas apenas de duas localizações
diferentes da nossa atenção: a primeira é mais emocional e
directa; a segunda existe num plano mais neutro, de não acção e de
observação das possibilidades e das razões da acção.
</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT" style="font-style: normal;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Ainda que
quase ninguém enuncie esta diferença entre eu acção/
emoção e eu observação dos meus sentimentos e
acções, as pessoas têm potencialmente consciência da diferença
porque essa consciência está implícita na linguagem: «eu
sinto me alegre», «eu fiz uma asneira». Nestes casos a
linguagem afirma os dois eus: o que observa é o que fala e
refere se ao eu que sente e fez. Na maior parte das pessoas
este eu «comentador» limita se a observar o que o eu
acção faz. Nesse sentido pode criticar se: «mas que
estupidez», diz o eu comentador, «o que eu fiz!», sendo este
segundo eu o eu agente. Mas essa crítica segue critérios que foram
importados de outras pessoas, do que se ouviu: ou, retomando a
metáfora, critérios aprendidos no jornal. Não são critérios que
tenham sido realmente pensados pela pessoa.
</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT" style="font-style: normal;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Em
parêntesis, é interessante notar que tanto M. Massenavette como
Emma Bovary nunca desenvolvem realmente a capacidade de se questionar
autonomamente. É certo que M. Massenavette se vê como membro da
sociedade, visto e questionado por ela, enquanto que Emma Bovary se
centra sobretudo no seu prazer de mulher. Mas nenhum deles consegue
criar novas regras ou justificar realmente o seu comportamento:
«porque os outros fazem assim» e «porque eu quero» são as únicas
explicações que eles poderiam dar de fazerem o que fazem. E fecho o
parêntesis.</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT" style="font-style: normal;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Quando as
sociedades são estáveis, produzem se os Mm.
Massenavettes, que se entregam de alma e coração à sua personagem
e tiram dela verdadeiro prazer: afinal vêm se fazer o
único papel que aprenderam. Podem subsistir angústias, mas
geralmente os reforços sociais são suficientes para manter a pessoa
bem disposta. Quando as sociedades são instáveis, produzem se
os camaleões sociais que vão copiando modelos aceites, mesmo quando
são internamente contraditórios. São pessoas que copiam, que não
são autoras da sua identidade e nem sequer questionadoras: são o
que a sociedade lhes propõe e se o modelo é fragmentado e sem
sentido, não são elas que o vão notar. Os Mm. Massenavettes, como
as actuais pessoas em semi crise existencial porque é bem
ser se profundo, são equivalentes e ambas lêem o jornal
com prazer: apenas os jornais do tempo dos Mm. Massenavette eram mais
coerentes do que os de agora.
</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT" style="font-style: normal;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Em todos
estes casos a posição do eu que observa existe – na verdade é
responsável pela exigência de ler o jornal, qualquer que ele seja.
Mas a posição não é autónoma, mas controlada pela programação
que nos vem de fora, seja ela conservadora ou post moderna.
</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div align="CENTER" class="western" lang="pt-PT" style="font-style: normal; widows: 4;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
§</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT" style="font-style: normal;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Em algumas
circunstâncias –o sofrimento psicológico e subsequente dúvida
sobre si próprio, por exemplo– esse eu questionador ganha
autonomia. A pessoa encontra se mais tempo no estado de
pensar nos seus próprios porquês. É nesse estado que podemos
perguntar porque é que lemos o jornal, porque é que defendemos a
família, porque é que somos de esquerda.</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT" style="font-style: normal;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">A
descoberta do eu –a aparição do ser, como diria Vergílio
Ferreira– é menos uma experiência existencial do que cognitiva.
Como disse, a linguagem dá a todos a experiência de enunciar o eu
racional (o «eu vou fazer» implica a existência desse espectador).
Mas esse eu espectador não procura razões e, como nos casos
anteriores, apenas se enuncia quando comenta o que o eu vital ou
codificado pelos outros sente ou quer. É apenas quando aparece a
capacidade de questionar (porque é que eu gosto de ler o jornal?)
que surge o problema do significado, o problema da existência. No
fundo a «aparição» é apenas perguntar porquê, é a passagem do
eu agente ou emotivo para o eu pensador.
</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-style: normal;">Como
Vergílio Ferreira parece ter compreendido, essa experiência não é,
em si, traumática a não ser que seja acompanhada da descrença num
conjunto de valores – seguindo a metáfora, descrença da
existência de qualquer jornal digno de se ler. Deus é a explicação
natural desse conjunto de valores, mas não é a única: em vez de
Deus pode ser a crença numa ordem natural, no progresso e no papel
que cada um de nós representa nesse progresso ou, na verdade,
qualquer outra convicção. Tem apenas de ser uma </span><i>crença
numa coisa maior do que o próprio eu</i><span style="font-style: normal;">,
exterior ao sentir infantil do eu que deseja e se zanga. Voltando à
metáfora, a pessoa interroga se se o jornal tem os
critérios que deveria ter. Questionar um critério não é apenas
dizer que não como as Bovarys e os oportunistas na moda. Questionar
realmente significa fazer o esforço de compreender o que esse
critério significa e não ficar convencido por esse significado;
questionar realmente implica tentar outros critérios ou, no mínimo
dos mínimos, tentar modificações ao critério. Para questionar
critérios é necessário que a própria pessoa tenha ela própria
critérios pessoais. Para o fazer tem de ser eu pensante, eu
racional: tem de apresentar um sistema de valores autónomo. É esse
sistema de valores que o sujeito cria que se torna maior do que ele e
que lhe dá sentido da vida. É, pois, um substituto racional de
Deus: uma entidade maior e exterior a nós próprios que determina
como as coisas se devem fazer. </span></span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT" style="font-style: normal;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">A
verdadeira crise existencial não ocorre, pois, com a emergência do
ponto de vista reflexivo e crítico do eu. A crise ocorre quando não
se acredita na existência dessa entidade maior e se compreende que
essa entidade é apenas uma projecção da nossa mente – mente que
é, afinal, tudo o que existe. Nesse caso fica se apenas
com o eu original, o eu da criança e do adolescente mimado que quer,
que sente e que deseja. M. Massenavette parece nos
longínquo, impossível, improvável e invejável no seu conforto
assente em verdades eternas e nunca questionadas. A crise acontece
quando se compreende a solidão profunda e essencial de existir: eu
existo apenas na minha mente e nas minhas representações, e o resto
apenas me afecta na medida em que eu reagir e me sentir atingido. As
crenças dos outros podem não me atingir; mas atingir me á
sempre o desejo, a dor, a fome. Sou então como a Emma Bovary? Não,
porque sei que mesmo os meus desejos são irrelevantes a não ser
para o meu corpo e nunca darão sentido ao desespero fundamental de
não compreender o sentido de existir. Como a minha própria
existência é apenas um acidente, um dia vai desaparecer o meu eu e
com ele todo o mundo, porque o mundo é apenas o que eu represento. E
isso não coloca nenhum problema, porque com a morte desaparecem
todos os desejos; na ausência absoluta de eu é impossível sentir,
de modo que a morte não pode assustar – é apenas um estado de não
ser, que não se sente. A morte –o não ser– é desejável,
porque se pára o ciclo infernal de compreender e não fazer sentido
e compreender se que não faz sentido.</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-style: normal;">O eu
pensante compreende, então, que se é verdade que ele próprio não
tem verdades, ele é, contudo, a única verdade. E quem vive
predominantemente na posição de eu pensante não tem a escolha de
se dedicar apenas ao eu acção e emoção. Já que se vive
no mundo como observadores, tentemos que o que observamos faça
sentido e que tenha interesse: afinal, temos uma vida para viver. Ao
compreender isto, tudo quanto nos é exterior –nomeadamente
qualquer entidade maior, qualquer moralidade– deixam de existir. A
razão, afinal, não tem verdades. É esta tomada de consciência
da superfluidade da razão que é a verdadeira experiência
traumática, mais ainda que a negação de Deus ou de qualquer ordem:
é a negação da importância do próprio ser pensante e do próprio
acto de pensar. É, portanto, a constatação da completa
irrelevância do ser, de se ser. </span></span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-style: normal;">Não
há saída para o problema: se quisermos impor, em qualquer caso, uma
ordem, saberemos sempre que ela é arbitrária e nunca seremos
convictos na acção; se quisermos ser vitais, como, digamos, um
touro, nunca o conseguiremos, porque nos é impossível: estaremos
sempre a ver nos ser touro e não a sentir nos
touro, porque a decisão de ser touro vem da razão e não do
instinto de ser, do eu primário. O problema é, como o Freud o
compreendeu (</span><i>Neurose e Civilização</i><span style="font-style: normal;">),
insolúvel. </span></span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-style: normal;">A
única saída –pelo menos aparente– é o hedonismo completo,
fazer aquilo que me dá menos problemas e mais prazer. Não é o que
vem no jornal, mas não esqueçamos que o </span><i>Playboy</i><span style="font-style: normal;">
é também um jornal: lêem no os idiotas que se vergam ao
deus desejo como quem se vergou a outra norma qualquer. Prazer,
hedonismo, neste texto significam apenas procurar aquilo que torna a
duração da nossa vida suportável. O que cada um acha que é melhor
para si depende da pessoa. Mas é raro que seja apenas o deboche,
porque se paga sempre por isso. Geralmente, se se for inteligente,
ter se á uma vida pacata e com </span><i>hobbies</i><span style="font-style: normal;">
–mesmo que secretos e considerados condenáveis– bem escolhidos
para nos manter entretidos. E, quanto aos outros, é usá los
para o nosso prazer. Mas isso nem sequer sei se é possível a uma
pessoa normal. </span></span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-style: normal;">A
</span><i>Ars Vivendi</i><span style="font-style: normal;"> está
precisamente em saber atingir um equilíbrio entre dois pontos de
vista do eu: os pontos de vista agente e pensante. Trata se,
pois, de atingir a </span><i>sofrosine, </i><span style="font-style: normal;">o
equilíbrio a que os gregos aspiravam (certamente sem sucesso –
basta pensar em Sócrates). Para chegar a esse equilíbrio é preciso
compreender bem o nosso eu primário, mas também os preconceitos do
nosso eu racional. E temos de saber, connosco, ser como um bom
educador: tolerante e respeitador das especificidades e interesses do
aluno, mas ao mesmo tempo suficientemente firme para conseguir
impedir que o aluno –o eu primário– tome conta da nossa vida. É
preciso aprender a dar lhe expressão, a dar lhe
o recreio de que ele necessita mas sem excesso. Isso faz se
identificando aquilo de que realmente ele (o aluno, o eu primário)
gosta –não aquilo de que o eu pensante ou os outros queriam que
ele gostasse– e dando lho nas quantidades necessárias
para o manter tranquilo e satisfeito ao mesmo tempo que o eu
professor (o eu pensante) mantém o controlo. </span></span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-style: normal;">No
fundo, a </span><i>Ars Vivendi</i><span style="font-style: normal;"> é
ser um bom professor ou um bom pai de si próprio: o que decide para
o aluno ou filho que jornal se deve ler e por quanto tempo. </span></span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span>
<br />
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></span>
</div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">
</span></span><span style="font-size: large;">
</span><br />
<div id="sdfootnote1">
<div class="sdfootnote">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><a class="sdfootnotesym" href="https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=5836646099093153849#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a>
Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva</span></span></div>
</div>
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: small;">
</span></span><br />
<div class="western">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: small;"><i><style type="text/css">P { color: rgb(0, 0, 0); page-break-inside: avoid; page-break-before: auto; page-break-after: auto; }P.western { font-family: "EB Garamond 12"; font-size: 11pt; font-weight: normal; }P.cjk { font-family: "Tahoma"; font-size: 11pt; font-weight: normal; }P.ctl { font-family: "Tahoma"; font-size: 12pt; }H1 { color: rgb(0, 0, 0); page-break-inside: avoid; page-break-before: always; }H1.western { font-family: "Adobe Garamond Pro", sans-serif; font-size: 16pt; }H1.cjk { font-family: "MS Mincho"; font-size: 16pt; }H1.ctl { font-family: "Adobe Garamond Pro", sans-serif; font-size: 16pt; }P.sdfootnote { color: rgb(0, 0, 0); font-size: 10pt; page-break-inside: avoid; page-break-before: auto; page-break-after: auto; }A.sdfootnoteanc { font-size: 57%; }</style> </i></span></span></div>
<div class="western">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: small;"><i> </i> </span></span></div>
<div class="western">
<br /></div>
<div class="western">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: small;"> </span><span style="font-size: small;">
</span></span></div>
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: small;">
</span></span><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><i><style type="text/css"><font size="3">
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--><span style="font-size: small;"></span>Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-18813827404013397522016-12-14T09:00:00.000-08:002018-12-12T10:08:49.947-08:00Interpretações e o que não é dito na música; e mais coisasCoisas de Música<br />
<br />
§ Lautenbacher e as sonatas e partitas<br />
Consegui, finalmente, obter as Sonatas e Partitas de Bach pela Lautenbacher. Tive‑as – de resto penso ter mesmo sido a primeira versão das peças que tive – em disco. Mas era uma Vox Box, e o número de «plops» e «clics» era insuportável. Consegui, mais tarde – em Paris, na Fnac – as Sonatas do Biber por ela. Mais recentemente comprei umas sonatas e partitas dela, mas tratava‑se da primeira versão, mais seca e tecnicamente menos conseguida do que esta. De há vários anos ando à procura desta versão. Encontrei‑a na Fnac do Chiado, onde não ia há (também) vários anos.<br />
Este disco dá uma visão muito diferene do Bach que agora se toca e se ouve. A maior parte das pessoas dirá que é um Bach romântico, mas não me parece tal. É mais um Bach sagrado e poderosamente expressivo do que propriamente romântico. A não ser que «romântico» não queira dizer nada, como certamente não quer. Os violinistas desta geração não eram particularmente românticos: afinal tocavam música contemporânea que os músicos barroqueiros nem sequer conhecem. Desse modo, os violinistas como o Szering, que me parece a mim clássico – melhor exemplo ainda o Grummiaux – ou modernistas, como o Milstein (expressionista), seriam classificados como românticos, que é, definitivamente, o que eles não são. <br />
Os barroqueiros, com algumas excepções, renunciaram às emoções que, nos anos 60 e 70, passaram de moda: o heroismo, a alegria viril, a ternura e o lirismo. Nessa altura, por influência da dureza do combate ideológico, por reacção contra os pais, por afirmação geracional, enfatizou‑se uma contrapartida do «duro» que não existia antes: a sensualidade. Em música, basta comparar o Walcha e o Leonhardt para se ter imediatamente a compreensão dessa diferença. Sempre estive convencido de que o Leonhardt se tinha imposto porque os cravos que usava e a maneira como os usava, eram extremamente bonitos. De resto, há uma sensualidade no Leonhardt que era praticamente desconhecida antes dele. <br />
O mundo passou a ser visto através de sentimentos corporais diferentes e mesmo a partir de conceitos diferentes. A música «séria» nunca era música sensual. Havia emoções sensoriais – basta ouvir a Pastoral do Beethoven – mas não me recordo de nenhuma música verdadeiramente sensual.*1* Essas sensações eram evitadas na geração da Lautenbacher, do Kempff, do Walcha. O «sério» opunha‑se a muitas coisas – o frívolo, o sem significado – mas em igual porção ao sensual. O sensual era visto como plebeu ou como desbragado. <br />
Com o Leonhardt, Bach passou a poder ser tocado sensualmente. Para mim isso nunca foi uma boa solução. Não vejo nada disso em Bach, exceptuando talvez em algumas cantatas mas mesmo assim de maneira pouco explícita em termos de música: linhas sinuosas, diatonia e tempos lentos. <br />
É, contudo, certo que o barroco não desconhecia a sensualidade. Na música francesa – Couperin, por exemplo – ela é muito clara, mas nunca na música que não é de corte. Lully não tem nada disso, Grigny muito menos. <br />
Havia, na primeira metade deste século e na tradição que me formou, a noção do sublime, que se perdeu completamente na música barroqueira. Tudo isto para dizer que esta versão – o Bach da Lautenbacher – tem precisamente esse sentimento. É a isso que os críticos musicais chamam «sostenuto»: já vi classificar assim o tipo de sonoridade da Lautenbacher. <br />
Ela tem tempi não rápidos, mas não lentos; um fraseado muito marcado e com gestos amplos, mas integrados num conjunto; finalmente, tem uma sonoridade impressionante: vibrante, grave, sonora, muito intensa. É a isto que chamaríamos actualmente «romantismo», mas trata‑se apenas da assunção do sublime, recusado agora por ridículo.<br />
<br />
§ O Pop e o modernismo<br />
A cultura pop é, em grande parte, responsável pelo sucesso dos barroqueiros. Foram as pessoas educadas no rock e no pop – as gerações contestatárias meio instruídas – que passaram a consumir «barroco» em vez de «clássico», presumo que por oposição aos pais e ao passado. <br />
O barroco era mais fácil do que o clássico porque o fraseado era mais curto, porque os ritmos eram mais claros e porque a música é, pelo menos no Bach mais fácil de ouvir, diatónica e modula pouco, como na música pop. Era, portanto, fácil passar para o barroco. A passagem foi facilitada porque o Harnoncourt deu voz às pessoas revoltadas: em vez de Beethoven, Brahms, Debussy, ouviam Bach. Não podiam ser acusadas de serem brutais: afinal Bach é dito o maior compositor de todos, e isso dava‑lhes a sensação de serem cultos. Mas o que lhes trouxe realmente conforto foram as acusações do Harnoncourt relativamene ao passado: apresentou‑se como um revolucionário anti‑burguês e anti‑convencional. «Denunciava» vociferamente os «erros» dos seus colegas, chamando‑lhes ignorantes – «uma mistura de genialidade e de ignorância». Quando, numa área nova, se chama ignorante a alguém e se sugere saber‑se mais, é muito raro que alguém responda à altura. Quase ninguém o fez além de se responder à letra: «baroqueux», «barroqueiros» é um termo do Karajan. Houve musicólogos que, desde o início, se indignaram: não havia nenhum fundamento nas pretenções do Harnoncourt e companhia. E houve quem não se fascinasse com o som dos cravos do Leonhardt porque percebia que a música tinha muito mais. Foi sem dúvida em parte por isso que a música de órgão resistiu: estava em boas mãos e os órgãos eram sempre os mesmos: não se podia inventar um Schnitger novo porque o Walcha já os usava havia décadas. <br />
Mas o mais relevante é que o Harnoncourt propunha, em termos musicias, uma visão de que as emoções de antigamente estavam completamente excluídas. As versões do Harnoncourt eram, quase sempre, abruptas, duras, quase marteladas: incisivas, fortes, agressivas, quase, não tinham nenhuma ternura ou lirismo (daí a sua incapacidade total de dar um Vivaldi que convencesse alguém). Era uma visão completamente profana da música, uma visão por vezes convincente mas geralmente redutora porque retirava a música do seu contexto religioso.*2* <br />
Podemos então juntar três elementos diferentes na mensagem que fez os barroqueiros triunfar: uma visão revolucionária contra o passado (embora em nome do passado mais antigo); uma simplificação das emoções, que eram mais congruentes com a brutalidade da mensagem revolucionária e, ao mesmo tempo, introduziam na música uma sensualidade desconhecida até então; ênfase num tipo de música aparentemente mais simples e mais próximo da música pop que até então se ouvia.<br />
De modo que os barroqueiros venceram pela simplicidade e pela sua adesão a emoções que na altura eram importantes para a maioria dos universitários: ruptura com o passado, energia na enunciação, sensualidade em vez de lirismo e simplicidade da música que defendiam (os Brandeburgueses parecem fáceis, as Cantatas também).*3*<br />
Este exemplo é interessante, porque mostra que as interpretações «históricas» são, paradoxalmente, dependentes da corrente da cultura dos anos 60 e 70: as ideias de libertação, de contestação, a criação de um mundo novo mas culto são todas comuns ao Harnoncourt – não sei nada do Leonhardt, que nunca se exprimiu muito – e à geração que tinha 20 anos quando dos anos 70. Nesse sentido, o movimento «musicológico» não o foi: foi apenas mais um reflexo dos tempos, usando instrumentos antigos como concreção da revolução. Foi apenas uma outra forma de negar as gerações anteriores, exactamente como os modernistas tinham feito, mas com outro espírito. <br />
<br />
§ O Tema da Rejeição do Passado<br />
Dir‑se‑ia que não pode haver maior diferença entre o modernismo e os barroqueiros: entre o Walcha, que pode ser considerado um modernista na música, e o Harnoncourt ou o Leonhardt, vai uma diferença colossal: do abstracto ao concrecto. Contudo há semelhança entre os dois movimentos. Para me explicar tenho de me esquecer momentaneamente do Walcha e, em boa verdade, dos músicos anteriores aos barroqueiros. <br />
<br />
Modernismo — Os modernismos*4* parecem‑me um movimento de reacção contra o passado. Essa reacção tem, como todas as reacções, raízes sociais que são a existência de muita gente instruída que não conseguiu encontrar público e identidade pública satisfatória. Por isso, essas pessoas tentaram afirmar‑se reagindo contra o que os não reconhecia. Além disso, houve consciência da necessidade de sair dos impasses do Séc. xix. Na música isso é perfeitamente claro com a transição de Wagner para Mahler e Schoenberg. Se se modulava constantemente, se se podiam fazer harmonias com todos os graus da escala, se não havia intervalos bons e maus, a solução só podia ser racional e arbitrária. Nas artes plásticas defendeu‑se mais ou menos o mesmo, mas com base em outras considerações: a ideia de que a pureza era desfeada pelo ornamento e, mais tarde, a arbitrariedade do que se faz (convencionalismo, tal como em Schoenberg): se tudo é arbitrário, deixa de haver razão para aceitar códigos que se reconhece serem arbitrários e que são, em qualquer caso, limitativos. Isso leva, numa expressão simplista e tola, ao dadaísmo e, em expressões mais complexas, a certas formas de modernismo (conceptualismo ou formalismo, por exemplo). A procura de formas puras é uma formulação da consciência da arbitrariedade: algures deve haver uma forma pura, um sentido para as coisas (Mondriaan). No oposto da procura da pureza penso que se situa o cinismo do Picasso: a deformação como possibilidade estética. O acto gratuito foi mais difícil de realizar nas artes aplicadas: ainda hoje se procura (Frank Gerry – é assim que se escreve o nome dele?) sem se atingir, porque não é possível gratuitidade do gesto numa arte funcional.<br />
Todos estes casos, misturados e confundidos, são sempre revelação da recusa da tradição, tomada como impura, gasta, ou convencional. É isso, no fundo, que unifica todos os modernismos.*5* Entre um Jackson Pollock ou um Picasso não há nada de comum excepto a recusa da tradição.<br />
<br />
A cultura pop — Curiosamente, todas as formas de arte foram, no Séc. xx, substituídas na prática pela cultura pop.*6* A cultura pop e o modernismo são diferentes nas suas origens. Parece‑me que o modernismo poderá conter a cultura pop, mas que o contrário seria sempre impossível. O modernismo teve sempre em si a rejeição da dicotomia entre alta e baixa cultura, de modo que é potencialmente compatível com a cultura pop. Mas a cultura pop é um fenómeno ateórico, aparentemente espontâneo, um produto directo do mercado. Dado que o modernismo está associado, na maior parte das suas formas, a um discurso de esquerda, parece potencialmente incompatível com a cultura pop, fenómeno decorrente do capitalismo. Não foi isso que ocorreu em muitos casos – Jack Lang, ministro da cultura em França de um governo de esquerda, defendeu a importância das culturas urbanas e, especificamente, da cultura pop. Provavelmente foi a noção de que tanto o modernismo quanto a cultura pop negavam a distinção entre alta e baixa cultura que levou à assimilação da cultura pop pelo modernismo.<br />
A cultura pop explica‑se por haver, nas cidades, grande quantidade de pessoas sem qualquer cultura – nem alta nem baixa – mas com poder de compra. Trata‑se dos adolescentes do pós‑guerra, que, num período de expansão económica e individualismo materialista e hedonista, procuravam, como qualquer outro grupo, forma de ver expressa na arte as suas preocupações. Não existem grupos humanos sem cultura, de modo que apareceu uma cultura popular dos meios urbanos e que exprimia as preocupações das pessoas desses meios. As pessoas que podiam pagar por essa cultura eram, principalmente, os jovens, dada a fase de crescimento económico dos post‑guerra. A cultura pop funciona então como uma espécie de projecção da não ideologia dos adolescentes desaculturados. Reflecte, por isso, preocupações adolescentes: a imagem, sentimentos simples mas intensos – o mais das vezes amorosos –, a distinção entre o mal e o bem (sendo o bem a gratificação individual mais ou menos imediata e o mal o impedimento dessa gratificação). <br />
Criou‑se assim uma cultura muito simples. A música dá uma ideia clara disso, mas também se encontram exemplos nos movimentos mais ou menos modernistas como o Roy Liechtenstein ou o Andy Wharrol, que exploraram a cultura infantil da imagem (bandas desenhadas, estrelas de cinema) então existente nos Estados Unidos. O modernismo viu esses movimentos sempre como vanguardistas porque eram contra as regras dos adultos que faziam lei. Citar uma imagem de uma banda desenhada é nulo como forma de arte (Wham, do Liechtenstein) mas significativo culturalmente porque se afirma que tem tanto mérito quanto uma obra de arte consagrada pelos poderes estabelecidos; as manchas do Jackson Pollock dizem precisamente o mesmo e, no limite, as figuras distorcidas do Picasso também. É sempre a afirmação do alternativo, do diferente, a negação dos cânones do passado.*7* <br />
<br />
§ Modernismo, pop e Capitalismo<br />
Neste sentido, o modernismo e a cultura pop podem, potencialmente, integrar‑se no sistema capitalista moderno: ambas transmitem mensagens simples ou que podem ser explicadas em poucas palavras e que não requerem nem cultura nem grande diferenciação estética. Têm ambos um mercado quase imediato nas culturas urbanas órfãs de cultura e de história. Ambas funcionam como mensagem simplificada para uma camada de compradores psicológicamente simplificada.<br />
<br />
§ Conclusão<br />
A conclusão tem de ser sobre música, porque foi assim que iniciei este texto. Voltemos, pois, à Lautenbacher e às suas sonatas e partitas para violino solo. <br />
Para compreender a sua mensagem não é possível aceitar apenas o som ou a voluptuosidade. O som é magnífico, o fraseado bastante claro e explícito. Mas está tudo ao serviço de uma emoção que está totalmente fora de moda: o sublime. Esse conceito é realmente romântico, no sentido de que o romantismo o reconheceu. Mas é igualmente clássico, barroco, medieval e, na verdade, existiu em todos os tempos, mesmo nas culturas primitivas em que se diz de uma coisa poderosa e que assusta que tem mana. Sempre ouve, em todas as culturas, momentos em que nos extasiamos perante uma coisa que nos transcende. Essa é a essência da emoção religiosa: sermos pequenos e insignificantes perante o sublimemente grande que nos ultrapassa. <br />
É talvez essa a principal dificuldade que esta versão tem para as pessoas educadas nas culturas do pós‑guerra e do hedonismo egocêntrico: a impossibilidade de, nessas pessoas, se poder considerar que há algo que, em importância e em sacralidade, as transcende. Nesse aspecto, a versão da Lautenbacher está datada: já poucas pessoas aceitarão que haja algo que as transcende. Agora as pessoas procuram a expressão dos seus problemas, e não a demonstração de que há, fora delas, uma transcendência. Não é necessário ser‑se religioso para aceitar isto: é apenas necessário ter‑se sido educado com a sensação de que não somos o centro do mundo e de que a vida não serve apenas para a satisfação das nossas vontades.<br />
Esta é, pois, uma interpretação anterior à morte de Deus e à sua substituição pelo prazer do eu. É isso que a torna, talvez, tão difícil de entender para a maior parte das pessoas, que lhe preferem naturalmente o Milstein, que exprime directamente a angústia do ser e os problemas da expressão do eu.<br />
É, pois, um caso interessante e que revela as diferenças abissais entre o sentir de hoje e o de há 40 anos. O que dizer, neste contexto, da tentativa de interpretar «correctamente» a música antiga? Mas esse é outro problema, e não o tratarei agora.<br />
<br />
Rodrigo de Bettencourt Saraiva de Sá<br />
<br />
Lisboa, 2‑3 de Julho de 2008<br />
*1*O fado, esse sim, era sexuado, sensual, húmido de alcova, mas era precisamente desprezado por ser isso. <br />
*2* O Leonhardt não procedeu da mesma maneira: como sensual que é, é também místico, como o veio a revelar nos seus discos mais tardios e mesmo, sem ser em Bach, em reportório organístico do Séc. xvii que tocava no final dos anos 70 (há uma ou duas cantatas gravadas pelo Leonhardt por essa altura que são convincentes nesse aspecto, também, embora eu o ache mau maestro). Mas não é negável que o Leonhardt dos primeiros discos é extremamente inferior àquilo que veio a ser e àquilo que na altura o Walcha ou o Anton Heiller faziam. Em qualquer caso, o Leonhardt aparecia sempre ligado ao Harnoncourt, que era quem escrevia os textos de apresentação.<br />
*3*Não referi aqui o Reinhardt Goebel: é o típico rocker que passou para um reportório sério e que, diria eu, nem sequer compreende bem: tudo é tocado a partir da voz de cima, sem qualquer atenção ao contraponto e com tempi de rock’n roll. É significativo que seja um dos intérpretes mais venerados pelo público entusiasmado pelos «barroqueiros». O mesmo para Andreas Staier, cravista abrupto e rápido. <br />
*4*Não há um modernismo. Há vários movimentos independentes que apenas partilham a rejeição do passado. Por isso há tantas posições diferentes. Tomarei aqui apenas a noção de rejeição de passado e será esse o significado do termo que usarei. Interessante ver os Concepts of Modern Art, apesar da baboseira. <br />
*5*Na música, Harnoncourt, mais do que qualquer outro dos barroqueiros históricos, seria classificado como modernista e, mais especificamente, como expressionista, utilizando as formas antigas para exprimir os conflitos do nosso tempo. Reinhardt Goebell, menos musical, ou pelo menos menos culto ou menos inteligente, acentuou ainda mais essa tendência.<br />
*6*Incluo no termo «cultura pop» o rock’n roll. Independentemente de muita gente ficar chocada com a assimilação do rock ao pop, o facto é que pertencem à mesma família e que o pop inclui o rock.<br />
*7*É exactamente no mesmo espírito que se deve compreender o entusiasmo do Séc xx pelo étnico. Antes do modernismo, o étnico era, principalmente, o pitoresco: tinha‑se coisas étnicas como exemplos, em vitrinas, em colecções, tal como se tinham animais empalhados ou quadros de borboletas. Actualmente o étnico ganhou autonomia: pode‑se mobilar uma casa em estilo étnico tal como se pôde procurar inspiração artística em estilos que não são ocidentais. Trata‑se, mais uma vez, de negar a herança especificamente europeia e enfatizar outros modelos. O processo é circular em termos filosóficos: afinal não há ênfase na criação original, apenas se procura um outro modelo. Mas funciona em termos sociológicos e de produção de arte porque se consegue cumprir o único princípio que realmente está em causa: a rejeição do recebido, a recusa da tradição. <br />
<br />Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-5608638971451579012016-06-25T09:13:00.001-07:002016-06-25T09:13:10.845-07:00EUREXIT<div class="_39k5 _5s6c" type="serif">
<div>
<div class="_2cuy _3dgx _2vxa">
A ideia da Europa foi, sempre, uma ideia de intelectuais (pode-se ler Denis de Rougemont – 28 siècles d'Europe – sobre este tema). </div>
<div class="_2cuy _3dgx _2vxa">
<br />Isso porque «a Europa» implica uma visão distanciada da cultura europeia no seu conjunto e das necessidades geo-estratégicas de uma zona, finalmente muito pequena, do mundo (a Europa é uma península da Ásia). Essa visão distanciada apenas uma pessoa culta a pode ter. </div>
<div class="_2cuy _3dgx _2vxa">
<br />O povo acredita no que vê e conhece. E, por isso foi, sempre, insensível à ideia da Europa: é regionalista, nacionalista, racista e tem desconfiança e medo pelo que é diferente de si. </div>
<div class="_2cuy _3dgx _2vxa">
<br />Esse regionalismo, associado a uma aberração intelectual da supremacia racial e cultural da Alemanha, levou às duas guerras do Sec xx. E tornou, no espírito de toda a gente que conheceu essa guerra, horror profundo por nacionalismos. </div>
<div class="_2cuy _3dgx _2vxa">
<br />Assim, apesar de sempre ter havido sentimentos espontâneos de nacionalismo e regionalismo, nunca foram expressos por partidos políticos (até Le Pen) porque havia vergonha de se ser associado com o as ideias alarves que levaram ao nazismo. Essa vergonha era mantida por uma censura intelectual baseada na afirmação de que qualquer forma de nacionalismo era vizinha do nazismo. </div>
<div class="_2cuy _3dgx _2vxa">
<br />Agora esse argumento deixou de pegar. Os velhos que viveram o tempo da guerra morreram; os velhos de agora são os nacionalistas que foram censurados durante a segunda metade do Séc xx. Os ideólogos da união também morreram ou estão a morrer e perderam influência. </div>
<div class="_2cuy _3dgx _2vxa">
<br />Sem a memória da guerra e sem os próprios ideólogos da união post-guerra, deixou de haver vergonha de se ser nacionalista. </div>
<div class="_2cuy _3dgx _2vxa">
<br />Rapidamente apareceram os demagogos que se aproveitaram do espírito bairrista, regionalista, nacionalista e do medo da diferença. </div>
<div class="_2cuy _3dgx _2vxa">
<br />O Reino Unido é o primeiro caso. A França será, talvez o segundo, segue-se a Holanda. </div>
<div class="_2cuy _3dgx _2vxa">
<br />Pode ser o fim da Europa unida. </div>
</div>
</div>
Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-42647864026630413072016-05-16T14:57:00.005-07:002016-05-16T14:59:05.598-07:00Carta a uma rapariga que perdeu um grande amor<style type="text/css"></style>
<br />
<div align="CENTER" style="widows: 4;">
<span lang="pt-PT">CARTA A UMA
RAPARIGA QUE PERDEU UM GRANDE AMOR</span></div>
<div lang="pt-PT">
<br /></div>
<div lang="pt-PT">
Sei como te sentes. É toda a vida que parece que se
foi, é o próprio chão vivencial que parece que nos foge. Não há
rumo, nem sentido. Não há futuro nem passado, apenas o presente e a
pavorosa angústia que o preenche. O passado, e com ele o sentido,
foram te retirados. Tudo o que era teu, teu e d’Ele, não
é, de momento, de ninguém. Foi tudo como que amputado, como que
decepado e sangra. Tudo dói. Os únicos momentos suportáveis são
quando dormes, quando não te sentes. Queres morrer, mas falta te
a coragem. O não ser parece te um sono de que não se
acorda e de que avidamente não queres acordar. </div>
<div lang="pt-PT">
<br /></div>
<span lang="pt-PT">Tudo quanto tinhas era teu, mas não apenas
teu. Era vosso, de ti por Ele e d’Ele por ti. E é isso que agora
vês em toda a tua vida: tudo o que tens existiu entre ti e Ele. Tudo
é um sinal dilacerante do que perdeste, tudo te diz que o que
parecia ser nunca foi. </span>
<br />
<div lang="pt-PT">
<br /></div>
<div lang="pt-PT">
Sei como gostavas do musgo nas paredes de pedra, dos
fetos debaixo das árvores. Sei como aprendeste a perder te
n’Ele como te perdias na profundidade do verde do musgo. E sei que
por isso já não consegues perder te em nada, porque
perder te em alguma coisa te recorda que já te não podes
perder n’Ele. Estás sozinha, sabes que ninguém te pode ajudar.
Estás sozinha porque a beleza que sentes não a podes dar a ninguém
e que, para ti, dói mais senti la do que negá la.
E é assim que vai ser sempre, até encontrares a quem dar se ainda o
conseguires fazer: a beleza, que dantes era esperança, sinal de
amor, é agora recordação amarga. O musgo vai deixar de ser um poço
em que entravas, uma esperança mágica, para ser apenas um bonito
tom de verde. O vento nas folhas dos choupos, que antes te dava paz e
te centrava a nostalgia do ser no amor que sentias e no conforto da
companhia é agora apenas o ruído indiferente do vento a passar por
entre folhas. É um ruído belo, mas é um ruído que te mostra
apenas que a beleza se desinteressa de ti. Tudo deveria calar se,
tudo deveria dizer te que a beleza já lá não está
porque tu estás de luto, porque a beleza em ti já não existe. Mas
ela está lá, indiferente ao teu sofrimento. E a beleza passa a
doer, a mostrar te que estás sozinha. Já não celebra o
teu amor e o teu ser, mas apenas te lembra de que tu és só, que
mesmo a beleza se desinteressou de ti.
</div>
<br />
<span lang="pt-PT">É nessa beleza que reside a tua salvação,
mas também a tua condenação. Hás de conseguir
compreender que essa beleza existe porque tu a vês, não porque a
vês para Ele. A beleza é tua, não vossa. E vais, pouco a pouco,
conseguir vê la. Mas nesse momento mudarás: compreenderás
que és tu e o teu mundo, tu no singular, sem complemento. Nesse
momento que perceberás que estás sozinha e que vais continuar
sozinha para sempre, porque o que sentes será sempre apenas teu. Se
conseguires voltar a encontrar a quem dar a profundidade do musgo que
voltaste a sentir, renascerás. Mas se não encontrares ou tiveres
medo de a voltar a mostrar ficarás em ti para sempre. </span>
<br />
<div lang="pt-PT">
<br /></div>
<div lang="pt-PT">
Não será fácil viver em ti. A beleza é algo que
se dá. Só faz sentido achar belo o que se pode mostrar. Tu
mostraste o apenas a uma pessoa. A partir de agora vais
conseguir vê lo só para ti? Ou vais tentar mostrá lo
a quem te comover, quase sem selecção? Se for esse o caso, viverás
apenas em ti, e os outros a quem mostras serão apenas um suporte de
ti próprio, uma espécie de montra dos teus sentimentos. «Vejam
como é lindo». Ao compreender que o acto de mostrar é apenas
equivalente ao acto de sentir, compreenderás que estás ainda mais
sozinha, que mesmo os outros são apenas objectos, interlocutores sem
significado, uma plateia que te serve de apoio concreto. Os outros
serão apenas projecções de ti, apoios à tua própria emoção.
Estás sozinha, tu e o que sentes.</div>
<br />
<span lang="pt-PT">Tu não és uma diletante do amor ou da beleza
–</span><span style="font-family: "symbol" , serif;"><span lang="pt-PT"></span></span><span lang="pt-PT">
duas palavras para a mesma coisa. Ao tratar essa coisa como algo que
se mostra a qualquer pessoa sentes te a trair te
até ao âmago. Podes tentar fazer do mostrar uma missão, podes
ensinar. É um acto de ternura mas ao mesmo tempo de renúncia. </span>
<br />
<div lang="pt-PT">
<br /></div>
<div lang="pt-PT">
Tens de encontrar a quem dar que compreenda. Pode ser
a crianças. Pode mesmo ser no abstracto: podes escrever, fazer
música, criar a partir de ti. Os outros, se quiserem, que encontrem
lá o que lhes aprouver. Estás sozinha, mas na medida em que
conseguires objectivar a beleza que sentes num suporte que não sejam
outras pessoas terás conseguido voltar a viver.
</div>
<div lang="pt-PT">
<br /></div>
<div lang="pt-PT">
Podes ter a sorte de encontrar quem aches que mereça
receber o que tens para dar e podes mesmo conseguir receber de novo.
Se isso não acontecer, a solução é apenas dar sentido à tua
própria beleza objectivando a para ti.
</div>
<div lang="pt-PT">
<br /></div>
<div lang="pt-PT">
Viver quando se sente é difícil. Vive para ti e faz
beleza ainda que não encontres a quem a dar.</div>
<div lang="pt-PT">
<br /></div>
<div lang="pt-PT">
<br /></div>
Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-58266344993913305432016-04-15T18:57:00.000-07:002016-04-15T19:22:56.521-07:00Sobre a questão do género da palavra «cidadão»<div data-contents="true">
<h1 class="_2cuy _509y" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="6h802-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="6h802-0-0">
<span data-offset-key="6h802-0-0"><span data-text="true">Sobre a questão do género da palavra «cidadão»</span></span></div>
</h1>
<div class="_2cuy _3dgx" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="kect-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="kect-0-0">
<span data-offset-key="kect-0-0"><span data-text="true">Instalou se uma confusão em torno da palavra «cidadão» e do pretenso sexismo que há em dizer «cartão de cidadão». Para esclarecer isto é fundamental compreender duas coisas em primeiro lugar. </span></span></div>
</div>
<div class="_2cuy _3dgx" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="8hhha-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="8hhha-0-0">
</div>
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="8hhha-0-0">
<span data-offset-key="8hhha-0-0"><span data-text="true">Primeira, que a questão da equacionação de género e sexo é uma consequência do facto de, em inglês, sexo e género corresponderem sempre («her face, his arms» apontam para cara e braços de um ser vivo de sexo feminino e masculino respectivamente). Segunda coisa, que sexo e género não coincidem sempre na maioria das línguas. </span></span></div>
</div>
<div class="_2cuy _3dgx" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="9cvt4-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="9cvt4-0-0">
</div>
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="9cvt4-0-0">
<span data-offset-key="9cvt4-0-0"><span data-text="true">Um exemplo cómico e excelente desta discrepância entre o inglês e a maioria das outras línguas é espanto que os falantes do inglês sentem perante géneros que não correspondem a sexos: considere-se um extracto do cómico texto «The horrors of the German language», de Mark Twain: </span></span></div>
</div>
<div class="_2cuy _3dgx" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="22igb-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="22igb-0-0">
</div>
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="22igb-0-0">
<span data-offset-key="22igb-0-0"><span data-text="true">[In German]« a tree is male, its buds are female, its leaves are neuter, horses are sexless, dogs are male, cats are female – tomcats included». </span></span></div>
</div>
<div class="_2cuy _3dgx" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="7b2fn-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="7b2fn-0-0">
</div>
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="7b2fn-0-0">
<span data-offset-key="7b2fn-0-0"><span data-text="true">Connosco as árvores são do género feminino, mas isso não espanta ninguém: a ninguém ocorre que se há uma árvore terá de haver um árvoro. É que em português sexo (propriedade biológica de um ser vivo) e género (categoria gramatical de uma palavra) não coincidem necessariamente. </span></span></div>
</div>
<h2 class="_2cuy _50a1" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="5br59-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="5br59-0-0">
<span data-offset-key="5br59-0-0"><span data-text="true">Sexo e género</span></span></div>
</h2>
<div class="_2cuy _3dgx" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="45rr7-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="45rr7-0-0">
<span data-offset-key="45rr7-0-0"><span data-text="true">Reforcemos então as diferenças:</span></span></div>
</div>
<div class="_2cuy _3dgx" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="8r077-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="8r077-0-0">
</div>
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="8r077-0-0">
<span data-offset-key="8r077-0-0"><span data-text="true">Sexo é um atributo de um ser vivo: cão ou cadela, gato ou gata, cabra ou bode. </span></span></div>
</div>
<div class="_2cuy _3dgx" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="8br0h-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="8br0h-0-0">
</div>
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="8br0h-0-0">
<span data-offset-key="8br0h-0-0"><span data-text="true">Género é uma propriedade das palavras, por exemplo, dos substantivos. Assim: barriga, peito, pescoço e cabeça não têm sexo, mas são do género feminino, masculino, de novo masculino e finalmente feminino. Para nós, como para qualquer falante de uma linguagem com géneros, é evidente que «pescoço» não é macho e cabeça não é fêmea – apenas são referidos em dois géneros gramaticais diferentes. </span></span></div>
</div>
<div class="_2cuy _3dgx" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="fo4fn-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="fo4fn-0-0">
</div>
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="fo4fn-0-0">
<span data-offset-key="fo4fn-0-0"><span data-text="true">Claro que nos anglófonos que não conhecem outras línguas a confusão entre sexo e género pode ocorrer, dado que o género coincide sempre com o sexo. Assim, «his book, her face» — os pronomes têm género e esse género gramatical coincide com o sexo. </span></span></div>
</div>
<div class="_2cuy _3dgx" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="84g50-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="84g50-0-0">
</div>
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="84g50-0-0">
<span data-offset-key="84g50-0-0"><span data-text="true">No inglês não existem palavras com género gramatical mas sem sexo. Isso ocorre, contudo, na maior parte das línguas. Daí o espanto de Mark Twain e a confusão criada em torno do conceito de «género» e, no caso presente, no «cartão de cidadão». </span></span></div>
</div>
<h2 class="_2cuy _50a1" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="d8f9-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="d8f9-0-0">
<span data-offset-key="d8f9-0-0"><span data-text="true">O Neutro Português</span></span></div>
</h2>
<div class="_2cuy _3dgx" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="4p8pe-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="4p8pe-0-0">
<span data-offset-key="4p8pe-0-0"><span data-text="true">O alemão tem neutro. E o português? Tem sim: «alguém», «aquilo», «aqui» são neutros. Mas nos substantivos há forçosamente género masculino ou feminino. Significa isso que «árvore» é um conceito feminino? Claro que não porque «choupo», «pinheiro», «carvalho» são do género masculinos e fazem parte das árvores. Apenas significa que gramaticalmente têm género feminino, não que têm sexo feminino. </span></span></div>
</div>
<div class="_2cuy _3dgx" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="192of-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="192of-0-0">
</div>
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="192of-0-0">
<span data-offset-key="192of-0-0"><span data-text="true">Mas há outro tipo de neutro. Imaginemos duas conversas possíveis: «Tem filhos? Sim, uma rapariga e um rapaz»; e «Plantei hoje duas árvores! Um castanheiro e uma figueira!» Compreende-se que «filhos» não se refere a sexo mas sim a género gramatical; o mesmo com árvore, como já vimos. </span></span></div>
</div>
<div class="_2cuy _3dgx" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="5ijcp-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="5ijcp-0-0">
</div>
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="5ijcp-0-0">
<span data-offset-key="5ijcp-0-0"><span data-text="true">Para tornar a questão mais clara, consideremos dois títulos possíveis de um livro: «O cão: saúde e conduta»; e «A cadela e o cão: saúde e conduta». No primeiro caso entende-se que o livro é sobre cães, genérico que inclui machos e fêmeas. No segundo entende-se que o livro trata ou das relações entre cães e cadelas do ponto de vista da conduta e da saúde ou das diferenças entre saúde e conduta de cães e cadelas. </span></span></div>
</div>
<div class="_2cuy _3dgx" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="56o2j-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="56o2j-0-0">
</div>
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="56o2j-0-0">
<span data-offset-key="56o2j-0-0"><span data-text="true">Há sexismo neste uso da linguagem? Mais um exemplo: «Tem cabras? Sim, 14 cabras e um bode». Ou seja. Não, não há sexismo, é o nosso neutro. </span></span></div>
</div>
<div class="_2cuy _3dgx" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="chnie-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="chnie-0-0">
</div>
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="chnie-0-0">
<span data-offset-key="chnie-0-0"><span data-text="true">Assim, em português, o neutro pode ser do género masculino (o cão) ou feminino (a árvore). </span></span></div>
</div>
<h2 class="_2cuy _50a1" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="580jv-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="580jv-0-0">
<span data-offset-key="580jv-0-0"><span data-text="true">Finalmente, o Cartão de Cidadão</span></span></div>
</h2>
<div class="_2cuy _3dgx" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="d8uep-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="d8uep-0-0">
<span data-offset-key="d8uep-0-0"><span data-text="true">«Cidadão», neste caso, trata do genérico – do neutro. Cartão de cidadão, livro do cão, cartão de eleitor, pastor de cabras. </span></span></div>
</div>
<div class="_2cuy _3dgx" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="1bm8a-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="1bm8a-0-0">
</div>
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="1bm8a-0-0">
<span data-offset-key="1bm8a-0-0"><span data-text="true">Ou seja, pode parecer haver sexismo no inglês, em que género e sexo coincidem necessariamente, mas é evidente que não há nas línguas, como a nossa, em que isso não ocorre. O que há é apenas uso do nosso equivalente funcional do neutro que, neste caso, é expresso pelo género gramatical feminino. </span></span></div>
</div>
<div class="_2cuy _3dgx" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="8jl2j-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="8jl2j-0-0">
</div>
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="8jl2j-0-0">
<span data-offset-key="8jl2j-0-0"><span data-text="true">Pode-se ir até um pouco mais longe. No caso de «cartão de cidadão» é gramaticalmente óbvio que o género é neutro: «cartão DE cidadão»; Se fosse «cartão DO cidadão» poderia pensar-se em sexismo. Mas DE cidadão tira qualquer dúvida porque o género é, neste caso, indicado pelo pronome, e o género é neutro, como em «cartão de eleitor».</span></span></div>
</div>
<h2 class="_2cuy _50a1" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="8fo0u-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="8fo0u-0-0">
<span data-offset-key="8fo0u-0-0"><span data-text="true">Feminismo e sua importância</span></span></div>
</h2>
<div class="_2cuy _3dgx" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="gn4q-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="gn4q-0-0">
<span data-offset-key="gn4q-0-0"><span data-text="true">O feminismo é um movimento definidor da modernidade. Foi e é importante ao reclamar direitos iguais para os dois sexos. Mas o feminismo só é uma questão linguística em inglês, língua em que sexo e género coincidem sempre. Não em português, em que isso não ocorre. </span></span></div>
</div>
<div class="_2cuy _3dgx" data-block="true" data-editor="6nrok" data-offset-key="43mda-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="43mda-0-0">
</div>
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="43mda-0-0">
<span data-offset-key="43mda-0-0"><span data-text="true">Importar guerras linguísticas de uma língua que funciona de maneira tão diferente da nossa é, admitamos, uma perda de tempo. </span></span></div>
</div>
</div>
Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-40626325300693614892016-04-09T16:50:00.003-07:002016-04-09T16:52:11.116-07:00Radicalizações<style type="text/css">
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<br />
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<br />
<div class="western" lang="pt-PT" style="page-break-before: always;">
A
propósito do livro de Ha-Joon Chang (<i>23 things they don't tell you about capitalism, </i>Penguin, 2010), que desmistifica completamente
a ideia de que o liberalismo funciona –serve apenas para enriquecer
quem é mais rico— alguns comentários sobre a situação absurda
da direita portuguesa.
</div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<br /></div>
<div class="western" lang="pt-PT">
A direita portuguesa, era a classe
média – profissões liberais, quadros superiores do Estado. Era
«direita» apenas no sentido de que não era «esquerda
revolucionária» e que era mais ou menos conservadora (em termos
estéticos e éticos). Posta assim, a «direita» portuguesa inclui a
maior parte das famílias que conheci.
</div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<br /></div>
<div class="western" lang="pt-PT">
Ora a direita, agora, reclama se
neo-liberal, isto é, promotora do mercado livre; o que é uma
maneira de permitir a quem já tem muitas posses poder investir e
ganhar; não é uma maneira de defender as classes das profissões
liberais e dos quadros superiores do Estado. Naturalmente, essa
«direita» não seria liberal – estaria, nesse caso, a ser
suicida.
</div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<br /></div>
<div class="western" lang="pt-PT">
Mas, na medida em que essa «direita»
nada se revê nas «causas fracturantes da esquerda» (casamento
homossexual, liberdade total de emigração, vergonha história do
nosso passado, etc.) vai se identificando com o que está
contra essas causas fracturantes. Ora o que está contra essas causas
fracturantes é uma direita que, na ausência de programa económico
específico, acabou por abraçar o neo-liberalismo. Ser «conservador»
passou, assim, de repente, a ser semelhante a «ser neo liberal».
A situação é absurda, porque o neo liberalismo não é
conservador no sentido da direita europeia continental e,
especificamente, de Portugal.
</div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<br /></div>
<div class="western" lang="pt-PT">
Muitas das pessoas que andam a
namorar o neo-liberalismo fazem-no apenas por não haver, em
Portugal, um representante claro do conservadorismo tranquilo,
centrista, português. E o mesmo se passa na restante Europa
continental.
</div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<br /></div>
<div class="western" lang="pt-PT">
Que valores representa esse
«conservadorismo»? Valores cristãos, sobretudo: igualdade,
certamente, mas elitismo ao mesmo tempo; liberdade, mas não
licenciosidade e libertinismo ou liberalismo; o domínio da lei,
igual para todos; acabar com o povo, no sentido de tornar toda a
gente de classe média – de todos serem civilizados e cultos, na
tradição cultural ocidental. É uma <i>aurea mediocritas</i><span style="font-style: normal;">,
um domínio de uma classe média remediada e culta (a ideia, em si, é
romana, de Virgílio). </span>
</div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<br /></div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-style: normal;">A
</span><i>aurea mediocritas</i><span style="font-style: normal;"> é
exactamente o contrário do que o liberalismo defende —o mundo é
de quem o conquistar, independentemente de quaisquer valores— e do
que a verdadeira esquerda defende —redução do indivíduo a uma
estatística, indiferienciação dos sexos, que passam a «géneros»,
corte radical com as culturas do passado, arbitrariedade de todos os
valores. </span>
</div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-style: normal;">É
possível, hoje, essa via do meio? Sim e não. </span>
</div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<br /></div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-style: normal;">Vamos
ao Sim.</span></div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<br /></div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-style: normal;">Sim
na medida em que há países que a seguem com sucesso – na
Escandinávia, embora com alguns problemas, têm-no conseguido,
embora com um radicalismo ideológico que parece ir deitar tudo a
perder. </span>
</div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<br /></div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-style: normal;">Sim
na medida em que os países que seguiram políticas de mercado livre
reais tiveram crescimentos enormes em pouco tempo mas que levaram
directamente a uma crise quase sem precedentes. Portanto, se o
liberalismo é inviável há lugar para essa via do meio. </span>
</div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<br /></div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-style: normal;">Sim
na medida em que na ausência de políticas de centro,
redistribuidoras, há desigualdades brutais que levam a rupturas
sociais. Segue-se que </span><i>tem</i><span style="font-style: normal;">
de haver essa via do meio ou que haverá caos. </span>
</div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<br /></div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-style: normal;">Agora
vamos ao Não.</span></div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<br /></div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-style: normal;">Não
porque os poderosos são os ricos e, como em todos os tempos, os
poderosos pagam a escravos para que lhes escrevam literatura
justificatória – agora são os tratados de economia neo-liberal,
com aldrabices e tudo; no passado foram teólogos que defendiam a
monarquia como determinada por Deus. </span>
</div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<br /></div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-style: normal;">Não
porque os sistemas do meio são, por natureza, instáveis porque em
democracia não há maneira de conseguir que os governos, na
esperança de serem reeleitos, não gastem demais com a segurança
social, determinando depois cortes brutais (como recentemente sucedeu
entre nós). Ou seja, um governo de centro tende, ele próprio, a
gastar demais e comprometer o equilíbrio.</span></div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<br /></div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-style: normal;">Não,
finalmente, porque a opinião pública está radicalizada: há
extrema-esquerda e neo-liberais. No meio já quase ninguém fala, e
quem fala deixou de ser ouvido porque só se ouve agora quem fala
grosso e demagógico. </span>
</div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<br /></div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-style: normal;">Escrevo
tudo isto porque noto, nos eleitores tradicionalmente do centro, quer
PS quer PSD, tendências para radicalização. Seguindo o que a
psicologia social econtrou, cada grupo se radicaliza ordeiramente
onde «deve», à esquerda no caso PS à direita no caso PSD. Ninguém
parece saber bem em que acreditava inicialmente: apenas sabiam o
grupo de pertença. Isto é: «sou de esquerda? então agora
radicalizo-me à esquerda! Sou conservador? Então passo a
neo-liberal!». </span>
</div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<br /></div>
<div class="western" lang="pt-PT">
<span style="font-style: normal;">E
finalmente escrevo isto <i>para não desistir</i>. Para lutar contra o
enfileiramento das pessoas em grupos ululantes que defendem aquilo de que nem
sabem sequer os perigos que representa para elas próprias. </span>
</div>
Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-28351029280914278542016-03-23T16:29:00.000-07:002016-03-23T16:30:03.871-07:00Um dos poderes da religiãoA questão árabe na Europa não tem solução nada clara (haverá quem me
diga que politicamente correcto seria dizer «terrorista» e não «árabe»; mas já veremos porque não faço a dissociação).
<br />
<br />
Levanta uma questão. Há vários grupos étnicos extra-europeus
na Europa; uns estão integrados, outros não. Mas, salvo erro, o único
que forma revoltas armadas é o árabe. Porquê? <br />
<br />
Creio que a
explicação é, pelo menos em parte, a seguinte. Desde há pelo menos 30
anos que há árabes na Europa a afirmar que é preciso atacar os europeus
(precisamente na Bélgica, a convite de um amigo árabe, tinha eu 25 anos,
encontrei-me, num café, com um grupo de extremistas árabes. A questão
não era religiosa, era simplesmente cultural: «tu deves morrer porque és
europeu», foi-me dito com ódio no olhar). <br />
<br />
Presumo que esse ódio
exista também em comunidades africanas, talvez outras. Mas porque é que
são os árabes a fazer os atentados? <br />
<br />
Porque a religião lhes
serve de fundamentação, porque a guerra santa vem no Corão. Bem sei que o Corão não diz só isso, que se pode
pretender que é uma religião de paz (isto daria muito que comentar – é
uma religião de paz depois da conquista total do mundo). Mas também diz
isso. Importa perceber que não estou a criticar a religião islâmica. O
que estou a dizer é que a religião —qualquer religião— tem um poder de
união que nada mais tem. <br />
<br />
E isso porque a religião, por
definição, não se discute, está acima do indivíduo. E estando acima de
cada indivíduo pode unir todos os indivíduos. <br />
<br />
Parece absurdo a um espírito racionalista. Mas não deixa de parecer ser verdade.Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-12184707123607257012016-03-23T14:17:00.004-07:002016-03-23T14:17:40.436-07:00Do ódio ao próximo ao amor do outro
<style type="text/css">P { page-break-inside: avoid; page-break-before: auto; page-break-after: auto; }P.western { font-family: "Fanwood Text"; font-size: 10pt; font-weight: normal; }P.cjk { font-size: 10pt; }</style>
<br />
<div align="LEFT" class="western" style="font-weight: normal; page-break-after: auto; page-break-before: auto; page-break-inside: avoid; widows: 1;">
<br />
</div>
<ol>
<li><div class="western" lang="pt-PT">
<em><span style="font-style: normal;">Há
pessoas que não gostam das condições em que vivem. Chamemos-lhes
«descontentes». Encontram um bode expiatório nos outros, que
acham serem os causadores da angústia que os descontentes sentem; e
passam assim a odiar o próximo e, logo a seguir, a odiar as pessoas
em geral.</span></em></div>
</li>
<li><div class="western" lang="pt-PT">
<em><span style="font-style: normal;">Para
justificar um sentimento tão mal-visto, os descontentes generalizam
esse ódio ao próximo e às pessoas na fórmula, aceitável,
«condenar a sociedade» («a culpa é dos burgueses, dos judeus,
dos comunistas, dos americanos», etc.)</span></em></div>
</li>
<li><div class="western" lang="pt-PT">
<em><span style="font-style: normal;">Ao
mesmo tempo que desenvolvem ódio ao próximo, e ainda para se
justificar, os descontentes inventam um «homem ideal», não
«corrompido pela sociedade», homem esse que podem amar. Rousseau
tornou essa ideia popular com o «bom selvagem». </span></em>
</div>
</li>
<li><div class="western" lang="pt-PT">
<em><span style="font-style: normal;">No
nosso tempo, esse «bom selvagem» é qualquer pessoa, qualquer
cultura que não seja ocidental. É aquilo a que podemos chamar «o
outro». Atenção, que «o outro» (idealização) é diferente de
«o próximo» (pessoas que se conhecem de facto).</span></em></div>
</li>
<li><div class="western" lang="pt-PT">
<em><span style="font-style: normal;">Esperar-se-ia
que, quando «o outro» se revela ameaçador, as ilusões
desaparecessem. Mas se o ódio ao próximo for suficientemente
violento não será assim. Nesse caso, o descontente, ao ver um
«outro» atacar o «próximo», identificar-se-á com o outro: afinal,
tal como o descontente, o outro ataca o próximo e odeia-o.</span></em></div>
</li>
</ol>
Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-65000465832616483472016-01-18T14:21:00.001-08:002016-01-18T14:21:42.073-08:00Sobre a radicalização política. <br />
<br />
Num artigo recente no Público, Pacheco Pereira defende que houve uma radicalização da direita; admite, também, que o Bloco de Esquerda promoveu a reedição da dicotomia esquerda-direita. Num artigo recente do The Economist lê-se que nos Estados Unidos há, igualmente, uma radicalização, sobretudo à direita.<br />
<br />
Tomemos em consideração o que diz Pacheco, que é mais próximo da nossa realidade, e consideremos depois o efeito mais geral da radicalização à direita e à esquerda. <br />
<br />
O que Pacheco diz é que a mensagem da direita se transformou numa realidade nas mentes das pessoas. O que foi assimilado é simples: que há que ter as contas certas e que esse argumento é mais forte do que os argumentos de justiça social. <br />
<br />
Isto é verdade? Creio que sim. Compreende-se? Creio igualmente que sim. <br />
<br />
Que é verdade em Portugal prova-o o facto de Passos Coelho ter ganho as eleições, quase com maioria absoluta, com esse mesmo argumento. No plano europeu essa ideia foi principalmente defendida pela Alemanha, mas conseguiu determinar a política da UE. Que se compreende mostra-o a necessidade de reformar o estado social europeu, mesmo antes do domínio alemão. <br />
<br />
O facto de se compreender que os gastos com as políticas sociais (parte importante dos gastos do Estado) tinham atingido níveis incomportáveis não justifica que se diga que não houve um reforço das posições da direita liberal. Pelo contrário, os dois fenómenos estão ligados: houve tal reforço e em consequência parcial do insucesso das políticas demasiado generosas. <br />
<br />
Dir-se-á: «a esquerda falhou e por isso a direita sai reforçada».<br />
<br />
Mas não foi isso que se passou. Não foi «a esquerda» que falhou: foi o modelo social europeu, que não era particularmente de esquerda. Era partilhado pelo centro (social-democratas e democratas-cristãos). Ambos os grupos defendiam um Estado interventivo e com preocupações sociais. Na Europa esse modelo foi atacado por Margaret Thatcher; e, com a crise financeira, todos os países tiveram de o repensar. <br />
<br />
Foi então que a direita mudou o discurso: de democrata-cristã passou, quase sem transição, a liberal. A razão é que a democracia cristã, isto é, a ideia do Estado Social forte e da economia parcialmente dirigida pelo Estado, falhou. As outras ideias de direita (nacionalismos, monarquia iluminista, etc.) estavam desacreditadas. Mas havia um outro pensamento económico «de direita» a emergir nos anos 80 — precisamente o neo-liberalismo, popularizado por Milton Friedman mas que nunca tinha deixado de existir, mesmo no tempo de domínio do keynesianismo. Foi essa ideia que os partidos de direita europeus abraçaram. <br />
<br />
Os partidos políticos não têm tempo de estudar ciência política: têm de ganhar eleições, e para isso precisam de uma mensagem simples e clara. A da direita passou a ser que o mercado tudo resolve. Na Europa sabe-se muito bem que não é assim: num sistema de mercado completamente livre há acumulação de capital, assimetrias de rendimentos, instabilidade de trabalho e, claro, revoluções. Foi isso mesmo que o Estado Social pretendeu resolver. A direita voltou, então, a uma solução já testada (no Séc. xix) e rejeitada. <br />
<br />
Pode então dizer-se que houve uma radicalização do discurso da direita? Não exactamente, o que houve foi uma mudança de paradigma: abandonou-se um paradigma em que o Estado tem intervenção na economia para um outro em que deixa de a ter. A «radicalização» vem de que o liberalismo é o oposto da democracia cristã: defende o apagamento do Estado em vez da sua importância como actor económico e social. Ou seja, há mudança de filosofia política por parte dos conservadores, não radicalização de uma posição conservadora anterior. <br />
<br />
É então verdade, como defende Pacheco Pereira, que várias das reivindicações que passam agora como de extrema-esquerda não o são, de todo. Assim, a assunção, pelo Estado, da educação, da saúde, das estradas e caminhos de ferro, são todas elas, directamente herdadas do republicanismo. A preocupação com o ambiente, agora considerada um valor de esquerda, foi sempre uma preocupação de qualquer pessoa informada. Diferenças entre a esquerda e a direita eram mais baseadas na religião (casamento, divórcio, igualdade entre homem e mulher) e no nacionalismo/internacionalismo (defesa da língua e da cultura nacional ou internacionalismo) do que com qualquer dos anteriores. <br />
<br />
Retomemos então a pergunta inicial: houve radicalização da direita? Não, houve mudança de paradigma. <br />
<br />
Ora o liberalismo, no seu extremo (no seu absurdo, parece-me) defende que o Estado deve quase desaparecer. A saúde seria privada, a educação também, as comunicações, transportes, tudo seria resolvido apenas pela iniciativa privada. Esse modelo nem nos Estados Unidos existe, mas tem uma lógica mental tentadora: se todos seguirem o seu interesse farão aquilo que os outros querem para vender a mais baixo preço. É verdade, mas isso nunca ocorre: há sempre cartéis, grupos que tomam conta do poder e monopólios. O mito da ausência de Estado é, precisamente, um mito. <br />
<br />
Mas tal como um socialismo primário («a terra a quem a trabalha») foi popular por ser fácil de perceber, um liberalismo primário («a iniciativa privada tudo resolve») também o é. <br />
<br />
Tudo isto dito, é verdade que agora passa como mensagem de extrema-esquerda a antiga mensagem do centro europeu. Que se corre o risco de substituir a filosofia política pela economia (mais uma vez, ao arrepio da tradição política europeia). E, finalmente, de a direita voltar a defender uma sociedade assimétrica, injusta, potencialmente explosiva em termos sociais. <br />
<br />
O exacto contrário da democracia cristã europeia. <br />
<br />
A direita radicalizou-se? Sem dúvida. Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-82944960008330823022014-04-02T18:37:00.001-07:002014-04-02T18:37:38.257-07:00What we know about others is surface knowledge. What we see can be beautiful, charming, endearing. But when we dig deeper, when we know what we, all of us, really are – a will to charm, to control, love for what does not menace us – what is there to like?<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
Des autres nous ne connaissons que la surface. Elle peut être charmante, belle, émouvante. Mais si nous nous rendons compte de ce que nous, nous tous, sommes – charmeurs possedés de volonté de puissance et de contrôle, capables seulement de nous emouvoir envers ce qui ne nous menace pas – y a-t-il de quoi aimer?<br /><br />«O que se sabe dos outros é a superfície. Pode ser bela, terna, encantadora. Quando se chega mais fundo e se sabe o que somos, todos, vontade de impor ao exterior, vontade de encantar quem nos encanta, ternura por quem nos não ameaça, o que há para gostar?»Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-50462708367857360882013-05-07T12:35:00.001-07:002013-05-07T12:41:07.198-07:00 Razões psicológicas e culturais da Falência da Democracia em Portugal<h3 style="text-align: left;">
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</style><span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><span lang="EN-US">Razões
psicológicas e culturais da Falência da Democracia em Portugal</span></span></span></h3>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span></div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><i>Breves
considerações sobre a origem das sociedades</i> – Não
sabemos como as sociedades do homem anterior a <i>sapiens</i> se organizavam (ou sabemos pouco) mas sabemos qual pode ter
sido a organização original da nossa espécie. Aparentemente, formávamos grupos pequenos, identitários, e
sempre em guerra uns com os outros.
Assim se geraram duas tendências: para a cooperação altruísta com os
membros do nosso grupo e para o ataque aos membros dos grupos rivais. Essas duas tendências exprimem‑se no <i>grupo identitário</i>, que define <i>amigos e inimigos</i>. </span></span></div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span></div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">Nesses grupos simples há um
egualitarismo relativo, mas há sempre, pelo menos, classes de sexo e de idade;
frequentemente surge a diferenciação do feiticeiro e do guerreiro, embora o
feiticeiro possa ser guerreiro. </span></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">Nas sociedades que obtêm mais recursos
do meio (quer por caça e recolecção quer por mistura com a agricultura quer
ainda apenas pela agricultura) deixa de haver igualitarismo: há famílias ricas,
geralmente com uma ideologia que justifica a diferença (os reis‑deuses egípcios,
por exemplos, e todas as sociedades do Crescente Fértil). Nesses casos há uma maior separação de
funções, que pode incluir padres, guerreiros, agricultores e os chefes, que
acumulam, pessoalmente, enormes quantidades de riqueza. O clero geralmente também o faz. Os grupos mais fortes vão conquistando
os outros (exemplo: a expansão de Roma) e há impérios baseados na estratificação
social intensa. </span></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">Na Europa pós‑invasões bárbaras
sucedeu que grupos guerreiros deitaram abaixo a civilização romana. Desses escombros nasceu uma nova
sociedade de pequenos grupos, baseados na posse de homens e de terra: servos
que trabalhavam a terra para o seu senhor, o conquistador bárbaro. Houve, progressivamente, um emparcelamento
das terras, à medida que os descendentes dos conquistadores conseguiam alargar
os seus domínios: o rei tinha de recompensar os seus guerreiros e fazia‑o com
terras. Isso levou a uma fragmentação
dos territórios em vários poderes rivais (feudalismo) que apenas terminou no Séc.
xvi, com a centralização do poder real (de que é exemplo, em Portugal, D. João II). </span></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">A centralização do poder real teve
sucesso em Portugal e Espanha e em França. Não teve sucesso na Alemanha e foi sempre contestada na
Inglaterra. Na Flandres não chegou
a existir. Há razões diversas para
isto. Na Alemanha houve
incapacidade do Imperador; na Inglaterra houve, desde cedo, uma enorme
rivalidade entre o Rei e a burguesia, que manteve sempre um poder
suficientemente grande para se conseguir representar no Parlamento. Aproximadamente o mesmo ocorreu na
Holanda. </span></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">O poder real central funciona de
maneira relativamente simples: o rei acumula, em seu nome, grandes
riquezas. Os nobres perdem a sua
função guerreira para passarem a gravitar na corte. Consoante o Rei o permita ou não, os burgueses podem
enriquecer. Em Portugal não
sucedeu tal porque os judeus foram expulsos. </span></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><i>Primeira
consequência psicológica</i> – Surgem
aqui dois modelos de pessoa com poder, modelos esses que são em tudo
opostos. O modelo do aristocrata é
o do guerreiro arrogante que apenas faz a guerra; o seu poder assenta na
exploração de um conjunto de terras e de pessoas que lhe estão, em maior ou
menor grau, fixadas. O burguês têm
outros valores: o trabalho árduo, a palavra comercial, o lucro, as trocas
comerciais, a competição, a necessidade de fixar regras funcionais para prever
o comportamento dos outros e planear negócios. A burguesia não se baseava como agora, em tecnologias muito
complexas mas em cadeias de produção.
Dando o exemplo da tipografia, havia mestres e aprendizes (sujeitos a
uma forte disciplina). O mestre
poderia chegar a quase não se ocupar do ofício de tipógrafo (geralmente não o
fazia) e limitava‑se a explorar comercialmente a empresa criada. Associada à tipografia havia inúmeras
profissões: fabrico de papel, de punções, desenho de letras, alfabetos,
revisores tipográficos, encadernadores, cada uma com a mesma organização. Essas várias profissões encaixam‑se
umas nas outras e têm prazos exactos a cumprir de maneira que quem compra, por
exemplo, uma certa quantidade de papel saiba que a vai ter na data
acordada. </span></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">Nos países em que a aristocracia e o
rei não conseguiram impor duradouramente a sua força o modelo burguês impôs‑se.
Permitia, afinal, alguma
mobilidade social e dava empregos mais bem pagos e menos penosos do que a
agricultura a que o sistema aristocrático condenava os servos e trabalhadores
rurais. Nos países em que o modelo
aristocrático se impôs a burguesia, assim que enriquecia, imitava o
comportamento dos aristocratas, comprava terras e instalava‑se na agricultura
(foi o que sucedeu em França). Em
Portugal, no Séc. xvii, residentes ingleses espantavam‑se que os comerciantes
enriquecidos tivessem vergonha da sua profissão e educassem os filhos para
serem outra coisa em vez de desenvolver o negócio – uma possibilidade era mandá‑los
estudar teologia ou direito e assim entrar na «nobreza do pano verde», isto é,
o enobrecimento por serviços prestados à coroa através da administração (pano
verde porque se estendia um pano de burel verde em cima de uma mesa para fazer
uma secretária; é daí que vem o termo francês «bureau» que significa secretária
e escritório). </span></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">Como vimos, o modelo aristocrático
baseia‑se na diferença substancial entre as pessoas nobres e as que o não são
e na submissão incondicional das segundas às primeiras; baseia‑se, também,
numa hierarquia rígida: é o rei que manda e assim por diante até ao camponês. O que define um estado é o rei, senhor
e quase deus identitário de um povo: o sistema é colectivista, não
individualista. </span></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">A burguesia é, por força da competição,
individualista; e é mais igualitária do que a aristocracia: os homens definem‑se
pelo poder que conseguem ganhar pelo dinheiro e não pela sua origem (dentro de
certos limites). A burguesia tem
de saber fazer planos a longo prazo e leis que definam as relações entre as
pessoas. Deixa de ser a <i>essência da pessoa</i> (o carácter quase
sagrado, deificado, do aristocrata) a determinar as suas relações com os outros
para ser uma <i>lei</i> que, escrita ou
consuetudinária, garante o funcionamento da cooperação entre os vários homens
de negócios. Não faz qualquer
sentido haver um «rei dos burgueses»: todos têm de se reunir para pensar no
futuro comum. É esta a origem de
uma forma de «poder do povo» (porque a burguesia era «terceiro estado», isto é,
não era nem aristocracia nem clero) que teve a sua expressão maior na Revolução
Francesa: a passagem do poder da aristocracia para a burguesia. </span></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><i>Pobres
e ricos na aristocracia e na burguesia</i> –
Num sistema puramente aristocrático um plebeu não tem nenhum poder e está
completamente nas mãos do clero e da nobreza. Sem a possibilidade de ascensão social através do comércio e
da indústria fica reduzido a esperar <i>esmolas</i>
dos ricos. Efectivamente assim
acontecia em Portugal: havia sessões de esmolas públicas. Nesta situação, o povo aprende a impotência
total, a paciência, a conformação, e um certo estoicismo: se nada pode fazer,
apenas pode esperar. Mas
desenvolve, também, valores de profundo ressentimento com os poderosos e estratégias
fraudulentas de os enganar: trata‑se do modelo do <i>espertalhão</i>, do <i>Chico‑esperto</i>,
que todos conhecemos. Enquanto que
numa sociedade burguesa o pobre pode, embora com dificuldade, enriquecer pelo
puro trabalho e probidade, numa sociedade aristocrática apenas pode ganhar
poder pela intriga e pela desobediência às leis. Valorizam‑se então, nas duas sociedades, éticas diferentes:
nas aristocráticas, o que o povo espera é esmola e clemência por parte do
poder, como as crianças dependentes dos pais. Nas sociedades burguesas isso pode ocorrer, mas tende a ser
mal visto: o caminho do enriquecimento é o trabalho e o que se pede ao estado é
que faça leis que o permitam e não faça guerras que o perturbem. Quem pede, nessas sociedades, está a
fazer batota: o dinheiro ganha‑se pelo trabalho e pela probidade, não pela
caridade. </span></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">A religião dos países de poder real e
de poder burguês reflecte essas diferenças – no seu mais extremo entre o
catolicismo piedoso e o calvinismo inflexível que considera o lucro como uma
marca de virtude. Que o
protestantismo encaminhou as democracias é bem sabido. Veremos como o
catolicismo/aristocratismo preparou o caminho dos totalitarismos. </span></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><i>Portugal,
aristocratismo, catolicismo, comunismo</i> – Em
Portugal o modelo foi, no mais extremo, aristocrático. A coroa tinha vários monopólios,
baseados numa política de exploração de zonas além‑mar; o trabalho fazia‑se aí,
não em Portugal, em que apenas tinha de haver administração. Apesar de mudanças significativas nos
anos 60 (industrialização muito forte) o modelo continuou a ser aristocrático:
os novos aristocratas eram os professores de Direito das Universidades. </span></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">Esta situação é, pois, muito
antiga. Por isso, entranhou‑se no
povo uma relação de ódio‑submissão ao poder. Por volta de 1800, a Duquesa de Abrantes, francesa,
comentava que em Portugal um dos valores mais altos é o «coitado». Se um assassino for perseguido pela polícia
o povo dar‑lhe‑á guarida. Isto
ocorre porque a polícia representa a autoridade, isto é, os nobres, e quem é
por ela perseguido é, automaticamente, feito aliado do povo. O poder nem tem rosto, são «eles» (também
ocorre em França, mas creio que não na Alemanha).</span></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">O sentimento preponderante é de que, não
estando no poder, não posso ter qualquer influência: gera‑se uma dinâmica de
conformação completa, de dependência integral do poder e uma sensação de impotência
total. «Eles» decidem, «eu» tento
esquivar‑me e ludibriar as regras que «eles» me impõem para manter o poder que
têm. </span></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">Daqui provêm dois pontos de vista
opostos. Se eu for povo, quererei
esmola e tentarei enganar o governo; o povo é bom, porque é uma vítima; o
governo é mau, porque é verdugo.
Se eu for governo, direi que o povo é ignorante, interesseiro, e que não
se pode confiar nele. Ou seja:
geram‑se as posições de origem das ditaduras de esquerda e da direita. </span></span></div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span></div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">Esta situação leva a democracia ao
total descalabro: o povo elege quem se identifica com ele. Aqui há uns anos dizia‑se de Mário
Soares (sondagem no Expresso) que ele era um dos homens mais ricos de
Portugal. Creio que o raciocínio é:
se ele lá está, encheu‑se, e fez muito bem, «porque eu faria o mesmo» (relato
real). É esta ideologia de escravo
que nos deu primeiros‑ministros como José Sócrates Pinto de Sousa, que todos
sabem que mente e todos suspeitam de ter enriquecido e feito negócios à custa
de todos nós; é isso que manteve presidentes de Câmara corruptos a governar
(Isaltino, Fátima Felgueiras). Não
há, assim, democracia possível. </span></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">Contudo, foi o regime que se trouxe
para Portugal: copiou‑se os modelos funcionais das democracias europeias
ocidentais, que decorreram do modelo de pessoa individualista, cooperativa e
autónoma e da ausência de diferenças abissais de poder entre grupos
humanos. Logo de início houve, em
Portugal, sinais de que a mentalidade aristocrática continuava: o povo pedia
dinheiro, os governantes davam as esmolas; os governos acabaram com os cursos técnicos
(para toda a gente ter um título e todos aprenderem a trabalhar sem sujar as mãos). </span></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">Mas os chicos‑espertos entraram no
governo, legislaram e garantiram que eram eles a ganhar com isso: acabaram com
a administração pública independente, substituída por capangas nomeados; nem a
justiça já é independente e diz‑se que os Códigos foram mudados para proteger
quem está no poder; os investimentos visam lucros privados, não o bem do país;
os deputados legislam nominalmente a bem do país mas têm ligações de interesse
privado e financeiro com as firmas que há que dobrar ao interesse da nação. Tudo isto debaixo da tolerância dos
eleitores, habituados à impotência absoluta e à tolerância com os chicos‑espertos. </span></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><i>Que
democracia?</i> – A única possibilidade de sairmos do
caos em que estamos é reformando a democracia e transcendendo a visão
comunista/fascista da política.
Para reformar a democracia só há duas soluções: uma revolução ou um
partido novo que ganhe as eleições e faça novas leis e novas formas de
funcionamento das instituições. Não
sei porquê, todas as pessoas que falam na «refundação da democracia» dizem‑se
indisponíveis para participar num partido novo. Será ainda a ideia de que quem está no poder é
intrinsecamente corrupto? Que
esperam então? Uma revolução? Mas todos sabemos que tal revolução, na
situação em que estamos, é impossível.
Revolução para quê? Para um novo Salazar? Onde é que ele está? Para um
regime comunista? Seríamos esmagados pelos novos capitalismos (China, Brasil, Índia)
e ostracizados pelos velhos (Europa, Estados Unidos). Para outra democracia?
Na situação económica em que estamos ninguém o vai tentar. Sejamos realistas, a única
possibilidade é um novo partido com regras draconianas para com os seus membros
e com um programa coerente e honesto.
</span></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">Para assegurar uma democracia funcional
não basta isso. É necessário que
as pessoas se interessem pela coisa pública: deixar de falar em «nós», sem
poder, e «eles», com poder. A geração
mais nova é, pelo menos quanto eu posso avaliar do que sei dos meus alunos, válida. Mas demitiu‑se da política. Sem dúvida como os «refundadores da
democracia», mete‑lhes nojo; ou então são ainda demasiado novos para
conseguirem sair dos pequenos mundos que conhecem. E assim faço a minha segunda proposta: que se crie, nos
liceus, cadeiras que expliquem, por exemplos concretos baseados na teoria dos
jogos, a necessidade de participação honesta e responsável na cidadania. </span></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">A liberdade, a democracia, dão
trabalho. Se a queremos temos de
lutar por ela. Recordemos que não
estaríamos a ter esta conversa se não vivêssemos em democracia. </span></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">Santo Estêvão, 7 de Maio de 2013</span></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span>
</div>
<div class="TextBody" style="text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;"><a href="http://www.blogger.com/null" name="__DdeLink__108_1030488743"></a>R. SáNogueira Saraiva</span></span></div>
Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-29788223563328526082013-01-15T11:54:00.000-08:002013-01-15T14:28:22.084-08:00<br />
<h2>
<span style="font-size: large;">Do movimento pró-animal extremo: exemplo recente</span></h2>
<br />
<span style="font-size: large;">Vai na Internet e nos jornais uma grande celeuma sobre um cão, cruzado Pitt Bull e Mastim da Rodésia, que matou uma criança de 18 meses. Há duas posições: a legal, que pretende que o cão, sendo perigoso, deve ser abatido. E a dos movimentos dos direitos animais, que pretendem que não se junte uma morte a outra morte e se poupe o cão. Quem tem defendido a morte do cão tem sido caluniado e insultado. Há até um abaixo assinado, salvo erro com 11 000 assinaturas, contra o abate do cão. </span><br />
<span style="font-size: large;"><br />É útil compreender as razões que podem ter levado o cão a este comportamento para se poder ter alguma opinião que não seja apenas emocional. <br /> </span><br />
<span style="font-size: large;">O cão tem uma estrutura social baseada em principalmente dois factores: a ligação aos membros do grupo e o par agressão/submissão. Os cães de um grupo estão, normalmente, ligados aos membros desse grupo por aquilo a que chamaríamos amizade: vontade de estar com os outros, que se traduz em várias manifestações de afecto. Mas as sociedades caninas não são igualitárias: há um macho dominante, uma fêmea dominante e essa dominância é conseguida através de processos de ameaça, agressão e submissão do animal dominado, submissão essa que normalmente inibe a agressão do dominante. <br /> </span><br />
<span style="font-size: large;">Essa organização é, de certo modo, parecida com a nossa. O que fez do cão um animal doméstico foi, em parte, o facto de compreendermos muito bem a linguagem que usa para se mostrar subordinado: orelhas para trás, testa lisa, comissuras esticadas, posição agachada, lamber o focinho, ganir. </span><br />
<br />
<span style="font-size: large;">Reconhecemos espontaneamente essa reacção como subordinação e interpretamo‑la como «ser querido», ser afectuoso. É isso que nos faz gostar tanto de cães: são realmente nossos amigos mas não são nossos iguais: submetem‑se‑nos. <br /> </span><br />
<span style="font-size: large;">Em condições normais um cão nunca ataca um membro da sua família humana porque se submete a todos os membros da família. Pode suceder que o cão ou a cadela tentem reclamar a dona ou o dono e nesse caso podem ameaçar e atacar os seus «rivais» sexuais. Mas não atacam, por agressão, crianças. A razão é simples: antes da puberdade os cães não lutam pelo estatuto, de modo que não há qualquer razão para a agressão. Os cães reconhecem a puberdade nos humanos pelo cheiro. <br /> </span><br />
<span style="font-size: large;">No caso de que agora se fala o ataque à criança de 18 meses tem uma origem provavelmente diferente. Os cães são predadores. Uma criança, se não for reconhecida como membro do grupo, pode ser atacada. Não conheço os detalhes do que sucedeu, mas pode ter sucedido isso mesmo. A criança talvez tenha corrido, o cão atacou‑a como faria a uma presa. <br /> </span><br />
<span style="font-size: large;">Há outras possibilidades: não sabemos se o cão era usado em lutas (é muito fácil saber pelas cicatrizes); se tiver sido esse o caso e se houvesse um ambiente de muita excitação por parte da criança, pode ser essa a explicação. <br /> </span><br />
<span style="font-size: large;">Em qualquer caso, o ataque significa que o cão é perigoso. Se matou uma vez não há nenhuma razão para que o não faça segunda e terceira vezes. <br /> </span><br />
<span style="font-size: large;">O juízo de que «o cão não tem culpa» porque não sabe o que é bem ou mal é verdadeiro, mas não se aplica por duas razões: a lei não vinga os actos mal feitos: isola os perpetradores de actos condenados pela sociedade. Portanto, a morte do cão não seria nunca um acto de vingança, mas uma simples precaução para o futuro (não há prisões para cães). <br /> </span><br />
<span style="font-size: large;">A ideia de que a vida do cão vale tanto quanto a de um humano é baseada no pressuposto de que qualquer vida consciente («sentiente» é o termo técnico) vale tanto como outra qualquer. Mas por essa ordem de ideias não podemos combater uma alcateia de lobos que nos ataque. Ninguém normal defenderá isso.<br /> </span><br />
<span style="font-size: large;">Na minha opinião o que está presente nos grupos que defendem o cão é outra coisa. Há um movimento romântico de defesa dos animais que é justo e tem razão de ser – afinal os animais sofrem, e esse sofrimento deve ser tomado em conta. Mas aquilo a que se está a assistir é um fenómeno diferente. Para o compreender vou dar um exemplo simples. Tomamos partido pelos polacos contra os alemães na 2ª guerra; pelos judeus contra os polacos durante os pogroms; pelos palestinianos contra os judeus na questão israelita. </span><br />
<br />
<span style="font-size: large;">Em todos estes casos sentimos uma piedade extrema pelo grupo mais fraco. Quando isso sucede vemos o fraco como completamente bom e inocente (mesmo sabendo que o não é) e o forte como cruel e malévolo. Neste caso o cão é visto como vítima e por isso se ataca com raiva quem o quer ver morto. <br /> </span><br />
<span style="font-size: large;">Até aqui o processo é muito claro. O que é estranho é que a vítima seja o cão e o perpetrador sejam os humanos. Seria muito mais natural que sentíssemos pena da verdadeira vítima, a criança e os seus pais. Que isso não suceda pede uma explicação mais complexa. <br /> </span><br />
<span style="font-size: large;">Comecei por dizer que os cães se submetem aos humanos e que o fazem de maneira a comover‑nos. Comove‑nos a inocência dos cães, a sua incapacidade de mentir, a sua pureza de intenções, mesmo quando são más. Mas comove‑nos especialmente a sua submissão. Estando comovidos com um outro ser não lhe podemos fazer mal – é a nossa forma de sermos sociais: se alguém se nos submete, se reconhece o nosso poder, deixamos de atacar. Há casos descritos deste fenómeno mesmo na guerra. Podemos zangar‑nos com o cão, ser injustos, que não diminuímos a subordinação dele por nós – pelo contrário. Em contrapartida desapontamos as pessoas<span style="font-size: large;">;</span> as pessoas julgam-nos, não nos aceitam necessariamente como somos. <br /> </span><br />
<span style="font-size: large;">Isso leva a uma atitude de protecção para com os animais que não se tem pelas pessoas. Por isso há quem, neste caso triste, identifique a vítima com o cão e não com a criança que foi morta. <br /> </span><br />
<span style="font-size: large;">Pode parecer estranho mas é finalmente muito compreensível. <br /> </span><br />
<span style="font-size: large;">Lisboa, 15 de Janeiro de 2013. </span>Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-46983047380950765142012-10-20T15:58:00.001-07:002012-10-20T17:07:11.129-07:00Da alienação<style type="text/css">
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-->
<br />
<h2 class="western">
Em torno do conceito de alienação</h2>
<div class="western">
<span style="font-size: large;">A industrialização trouxe alterações muito
grandes à vida das pessoas. Houve migrações do campo para as
cidades e o trabalho deixou de ser artesanal para se organizar em
cadeias de produção. As próprias cidades se organizaram como
grandes fábricas com separação de trabalhadores e classes
possidentes. O trabalho fabril era duro e monótono e a vida dos
trabalhadores parecia pavorosa às classes médias: cada operário
desempenhava uma operação na cadeia de produção sem ter de
compreender a relação do seu trabalho com o produto final. O
próprio operário era como uma peça, cega, estúpida, de um
maquinismo. Fora do trabalho os operários procuravam consolo no
álcool e na prostituição. A impressão que se tinha era de uma
turba cinzenta, despersonalizada, que vivia sem alma, sem
significado, sem objectivos. É a isto que Marx chamou a alienação:
afastamento da vida e do seu significado. </span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;">Por contraste pensava se que o trabalho
artesanal ou até rural era mais afortunado. O camponês ou artesão
viveriam vidas menos alienadas porque seriam autores do seu trabalho:
o camponês semeava, mondava, arava, plantava e colhia, num ciclo que
compreendia e até certo ponto controlava; o artesão fazia peças
que concebia ele próprio, de princípio a fim. Parecia aos
intelectuais que essas vidas, menos padronizadas, menos
especializadas, pediam uma maior participação do trabalhador porque
o trabalho era planeado e executado por eles. Não estavam alienados
do significado das coisas que faziam, eram autores e não meras peças
de máquina.
</span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;">———</span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;">Esta defesa da importância da autoria das
próprias vidas, da valorização da acção voluntária e do
conhecimento e controlo das consequências das nossas acções no
ambiente tem origem em duas ideias.
</span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;">A primeira, mais óbvia, é o romantismo, que
diabolizou o trabalho industrial e idilizou a vida nos campos: as
fábricas são feias, monótonas, o campo é belo e sempre em mutação
com as estações.
</span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;">A segunda tem raízes muito mais antigas:
trata se da afirmação, de Espinosa, de que a liberdade do
homem é interior e depende da sua capacidade de conhecer o porquê
do que faz. Esta afirmação está ligada à compreensão de que a
vida é uma representação do mundo exterior, isto é, que o mundo
exterior apenas faz sentido quando conotado por nós: o mundo em si
não tem significado; o significado é dado pela mente, quando
interpreta esse mundo.
</span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;">O operário, que faz uma operação
repetida sem fim não tem qualquer controlo sobre o produto final,
nem precisa de o compreender; em contrapartida, o artesão ou o
camponês têm de tomar várias decisões sobre como executar cada
uma das várias operações necessárias ao resultado final.
Trata se, pois, de trabalho autónomo, decidido pelo
próprio trabalhador, que compreende o porquê do que faz e sabe
decidir como o fazer em cada momento.
</span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;">Em consequência disto, o artesão ou camponês
possuiriam a vida em muito maior grau do que os operários fabris.
Como pessoas, </span><span style="font-size: large; font-style: normal;">seriam mais ricas,
mais auto determinadas, mais livres, menos alienadas porque
possuiriam mentalmente o seu mundo em muito mais alto grau do que os
operários. </span>
</div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">Há uma distinção
importante entre </span><span style="font-size: large;"><i>ser</i></span><span style="font-size: large; font-style: normal;"> e
</span><span style="font-size: large;"><i>ter</i></span><span style="font-size: large; font-style: normal;">, que deriva
directamente da definição da liberdade como conhecimento dos
determinantes das nossas acções. Ser é conhecer se e ao
mundo, saber porque fazemos o que fazemos. Ter é simplesmente o
aumento de poder sobre os outros e sobre as coisas. Espinosa opunha o
conhecimento de si e do mundo à procura desenfreada de prazer
material (posses, poder, sexo) e dizia que esta procura de prazer nos
reduz à escravidão: sem compreender o porquê dos nossos desejos,
limitamo nos a correr de um para outro como criaturas
irracionais. </span>
</div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">Marx e a sua
teoria da alienação inserem se nesta linha de pensamento.
O trabalhador fabril apenas poderia aspirar a ter para poder obter
breves momentos de prazer e de esquecimento. Era um escravo
totalmente alienado, definia se já não pelo conhecimento
que tinha das razões do seu trabalho mas apenas pela procura de ter
o suficiente para sobreviver e alienar se mais no álcool e
no sexo pago. Seria necessário reorganizar a economia de maneira a
devolver às pessoas a autonomia, a autoria, a reflexão sobre si
próprias e sobre as relações com o mundo em sua volta. </span>
</div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">Marx pensava que
o homem está, sempre, em luta com o ambiente. Para vencer essa luta,
organiza se associativamente (cooperativamente, diríamos
agora) e decide, com autonomia e conhecimento de si e do seu mundo,
as acções sobre esse ambiente. Seria este o objectivo da nova
organização do trabalho: a democracia, poder dos trabalhadores para
pensar colectivamente as suas relações com o ambiente. A solução
que Marx acabou por preconizar não se revelou possível (abolir o
ter e promover o ser exclusivamente) e há que dissociar Marx quer do
leninismo quer do estalinismo que traem o seu pensamento, mas
interessa ressalvar a ideia de alienação. </span>
</div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">A pessoa alienada
não tem interior, define se apenas pelo resultado das suas
acções. A pessoa não alienada pensa se e ao ambiente
para planear a sua acção. O primeiro é um corpo que gera
comportamentos; o segundo é uma mente que conduz um corpo. </span>
</div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">Esta distinção
aplica se à própria definição da actividade dos
pensadores, cientistas, intelectuais. Um intelectual deveria tentar
atingir uma compreensão teórica de um campo e apresentar uma teoria
original que dê sentido a um conjunto de dados. A actividade
universitária era criativa, activa, e procurava dar significado a um
campo de estudo. O resultado da ciência deveria ser uma
representação do mundo que enriquecesse o espírito humano. </span>
</div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">A posição que
acabei de sumariar é anti tecnicista, humanista, defensora
de que é o sujeito que estrutura o mundo e assim o compreende. A
realidade objectiva só ganha sentido quando interiorizada pelas
subjectividades individuais. Não é subjectivista no sentido de
pretender que o significado do mundo se gera apenas por contemplação
interior. Mas não é objectivista porque compreende que o
significado das coisas apenas é dado quando a realidade é pensada,
e porque compreende que esse significado tem origem nas nossas mentes
e não nas próprias coisas. Pode se descrever como uma
filosofia do indivíduo que se sabe centro da acção sobre o
ambiente, acção essa que tem de ser representada na mente para
poder ser planeada a seguir. </span>
</div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">Mantenhamos
presente esta ideia da importância da actividade do sujeito como
factor de liberdade e de acção sobre o ambiente, e consideremos um
ponto de vista muito diferente que surgiu também no Séc. xix. </span>
</div>
<div align="CENTER" class="western" style="text-indent: 0pt;">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div align="CENTER" class="western" style="text-indent: 0pt;">
<span style="font-size: large;">———</span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">Esse outro ponto
de vista responde por vários nomes –positivismo, pragmatismo,
cientismo, tecnologismo– e tem origem no pensamento aplicado: a
ideia de que o conhecimento serve para submeter o mundo ao homem. O
conhecimento é visto de maneira bastante diferente do da posição
anterior: não interessa o que uma coisa é, apenas como se
comportará em tais e tais condições. O conhecimento é, pois,
visto como previsão e não como representação intelectual
autónoma. </span>
</div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">O conhecimento
das coisas deriva apenas da descrição: não se deve tentar
compreendê las, apenas descrevê las e prever o
que acontece. A ciência torna se objectiva por exclusão
do sujeito, pólo de subjectividade. </span>
</div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">A ênfase na
previsão exclui pois a ideia de que o conhecimento é uma
interiorização dos fenómenos externos e, sobretudo, um
conhecimento de si próprio: o «Eu» não se vê, não é
tecnologicamente identificável, de modo que é substituído pelo
sistema nervoso, que deve ser conhecido para prever a conduta. Assim,
todo o conhecimento seria de coisas e das condutas necessárias a
manipular essas coisas. </span>
</div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">O conhecimento
das coisas permitiria o progresso, isto é, a subjugação do
ambiente às nossas necessidades. O positivismo é tecnicista,
objectivista, anti psicológico, concretista e
utilitarista. O conhecimento advogado pelo positivismo é até
regulamentado e cheio de proibições: é conhecimento sobre coisas
úteis ao homem, de coisas que possam ser usadas para o progresso
material e tudo o resto é proscrito. </span>
</div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">A actividade do
intelectual é, também, muito diferente: de pensador que procura
compreender o mundo torna se um instrumento de descrição
e comparação entre as várias descrições. Encontra regularidades
e resume as matematicamente em leis descritivas. A
actividade teórica passa a ser proscrita se for além da descrição
e correlação. </span>
</div>
<div align="CENTER" class="western" style="text-indent: 0pt;">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div align="CENTER" class="western" style="text-indent: 0pt;">
<span style="font-size: large;">———</span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">As duas posições
não podem ser mais diferentes. A primeira (que não tem nome, mas
que podemos designar por holismo, de </span><span style="font-size: large;"><i>holos</i></span><span style="font-size: large; font-style: normal;">,
todo, ou de humanismo, pela sua preocupação com a pessoa) pretende
o crescimento individual, o desenvolvimento de uma visão do mundo
integrada que implica o conhecimento de si próprio. Nesta
perspectiva, o conhecimento do mundo e de si são co dependentes
e não há propriamente objectividade porque todo o conhecimento das
coisas assenta nos processos de que cada indivíduo ou cultura
dependem para construir uma imagem da realidade. </span>
</div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">A outra, o
positivismo, passa um traço grosso sobre toda a subjectividade, que
considera marca de espíritos arcaicos, e considera a realidade como
objectiva, pura, existente em si própria. Para a conhecer teríamos
de nos despojar completamente da nossa subjectividade. Teríamos de
ser como um maquinismo de recolha de dados, simples, sem
subjectividade. O sujeito apaga se como centro do mundo,
que passa a ser o exterior. </span>
</div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">A diferença
entre as duas posições pode ser ilustrada com uma comparação. A
actividade desejada do investigador pode ser semelhante a uma máquina
fotográfica ou a um pintor. A primeira apenas regista; a segunda
interpreta e salienta as linhas de força. Sublinho que a máquina
fotográfica embora inconsciente, não é completamente objectiva:
impõe as suas características (cor, luminosidade, grão, resolução)
ao objecto. O pintor, ainda que realista, está consciente da sua
subjectividade e sabe o que impõe. É esta a diferença entre os
dois grupos. O positivismo é mais ingénuo porque acredita na
possibilidade de apagar o sujeito; o holismo humanista sabe que o
sujeito está sempre presente porque qualquer fenómeno de
conhecimento implica um sujeito cognoscente. </span>
</div>
<div align="CENTER" class="western" style="text-indent: 0pt;">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div align="CENTER" class="western" style="text-indent: 0pt;">
<span style="font-size: large;">———</span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;">O holismo humanista foi vencido não por não ter
méritos mas porque o centro da vida intelectual deixou de ser a
Europa, onde nasceu, e passou para os Estados Unidos. Na América,
com a ênfase na tecnologia e na modificação do ambiente e um
horror vitoriano a todas as formas de introspecção e
subjectividade, matou se o sujeito activo. Substituiu o
o «posto de trabalho», uma função impessoal que deveria ser
desempenhada independentemente das características de quem o ocupa.
</span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;">A tendência ocorreu primeiro na definição do
trabalho nas empresas, mas cedo passou para o trabalho nas
Universidades. Pretendeu se que o conhecimento era
atingível por processos de descrição e tecnologia, que os
conceitos eram pouco importantes (ou mesmo proibidos) e que a
realidade era conhecível apenas pela anulação completa do sujeito
de conhecimento que deveria passar a uma peça de maquinismo, a um
puro recolector de dados. O sujeito define se, assim, pela
sua conduta, pelos resultados objectivos que consegue produzir
impessoalmente, pelos dados que consegue relatar e não por aquilo
que pensa.
</span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;">Em termos de trabalho, presume se
igualmente que o sujeito se define por aquilo que ganha e que pode
comprar: pelo Ter e já, nada, pelo Ser. O Ter vê se, o
Ser sente se, e o que se sente não é objectivo e,
portanto, não se pode considerar na análise. A ênfase no Ter e o
desprezo pelo Ser é a posição oposta à liberdade interior de que
falava Espinosa; tudo é definido apenas em termos de satisfação de
apetites e tudo o que se procura dar às pessoas é o dinheiro para
conseguir satisfazê los. Trata se da posição
que os pensadores do Séc. xix criticaram: encoraja se a
alienação e afirma se que é nesse estado alienado que as
pessoas são mais produtivas.
</span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;">Uma das consequências directas da ênfase nos
resultados em detrimento das pessoas é a tendência à
especialização. Se um trabalhador fizer apenas uma coisa será,
pensa se, mais eficaz do que se fizer várias: pode ser
excelente naquilo que faz, ainda que não saiba mais nada, e é isso
mesmo que se procura, o especialista absoluto de uma determinada
área. Quer se a rendibilidade máxima de cada pessoa
independentemente dos custos que essa rendibilidade acarreta para a
felicidade dessa pessoa.
</span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;">Esta tendência reflecte se na ideologia
educativa: formam se técnicos, não se educam pessoas. O
conhecimento de si e das relações com o mundo é irrelevante, nem
sequer é considerado. Deixa de se falar em liberdade interior para
se falar apenas em eficácia. Uma pessoa vale aquilo que produz.
Deixa de interessar a sua importância como ser social, como pessoa
que entra em contacto com outros, como ser pensante, para ficar
apenas um valor quantitativo: a relação entre quanto produz e
quanto ganha.
</span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;">Consegue se assim postos de trabalho
eficazes, geradores de muita riqueza, mas sem qualquer autonomia
intelectual. O trabalhador passa a ser uma peça de máquina
produtiva, precisamente aquilo que Marx denunciava como alienação.
</span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;">Os humanistas esperavam que as pessoas quisessem,
precisassem, de se conhecer e ao mundo. Mas as sociedades industriais
de origem tecnológica mostraram que nem sempre assim é. Se se der
às pessoas dinheiro e se se lhes criar apetites sempre novos em que
o gastar, supre se essa necessidade. As sociedades
industriais modernas provaram que o humanismo não é uma aspiração
das pessoas comuns e que a alienação não é (pelo menos não é
só) fruto de uma conspiração dos detentores do poder. É uma
tendência humana profunda e a liberdade é apenas uma aspiração de
intelectuais, exactamente como Espinosa compreendera. Criar
cidadãos livres é, pois, uma tarefa para os intelectuais que
compreendem a alienação e os seus males.
</span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;">Mas os próprios intelectuais sofreram a pressão
para se transformar em peças de engrenagem. São avaliados pela
quantidade de produção, exactamente como qualquer outro posto de
trabalho, em termos meramente quantitativos, pretensamente
objectivos. Como a produtividade é tanto maior quanto maior o grau
de especialização, os universitários (já nem se lhes deve chamar
intelectuais) especializam se numa metodologia, num campo
muito estreito e, fora dessa metodologia e desse campo sabem muito
pouco. É lhes completamente impossível tentar compreender
o mundo à sua volta e dar lhe sentido porque apenas o
sabem pensar de acordo com o seu estreito olhar especializado. É sem
dúvida por isso que há tão poucas propostas teóricas realmente
influentes e relevantes desde meados do Séc. xx: foi esse o momento
em que o modelo do conhecimento passou da Europa para os Estados
Unidos e assumiu a sua forma tecnicista, tecnológica, quantitativa e
especializada. Os intelectuais passaram, pois, de pensadores a
instrumentos. Estão, eles próprios, alienados e não podem pensar a
sociedade que os gerou. Ou seja, passaram de intelectuais,
pensadores, a instrumentos, a operários alienados e impotentes que
não sabem pensar se nem ao mundo.
</span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;">Uma das consequências evidentes deste
estreitamento de posições é o economicismo vigente no tempo
presente: estamos a destruir o planeta e a sociedade em nome de uma
definição de bem estar puramente quantitativa,
especializada, sectorial, produto puro dos académicos tecnocráticos
e fascinados pela quantificação: a riqueza. Consideramos que a
competitividade, a agressividade, a ambição, a eficácia
especializada são valores mais importantes do que o conhecimento do
mundo e de si próprio e que o bem estar mental e social
das pessoas. Em nome da competitividade as pessoas consomem
quantidades impressionantes de tranquilizantes e anti depressivos
e vivem vidas miseráveis. A ênfase no resultado visível, na
conduta, na produtividade, triunfou completamente sobre a preocupação
com o sujeito.</span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;">O triunfo da alienação e a derrota do humanismo
são completos.</span></div>
<div align="CENTER" class="western" style="text-indent: 0pt;">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div align="CENTER" class="western" style="text-indent: 0pt;">
<span style="font-size: large;">———</span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;">O resultado desta derrota do humanismo e do
domínio do resultado foi catastrófico. O planeta está em risco, a
sociedade em agonia, a economia é impossível de prever, há
assimetrias de riqueza impensáveis e escravidão da maior parte das
pessoas a empregos em que servem os donos. Há crise económica,
social, ecológica, psicológica. Não pode haver dúvida de que o
sistema falhou ou pelo menos ninguém o pode eticamente defender. Não
sei se outro sistema não falharia de outra maneira, mas não seria
desta, pelo menos.
</span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;">Temos de recuperar o valor de <i>pensar</i></span><span style="font-size: large; font-style: normal;">,
em conjunto, os problemas do nosso tempo. Não apenas em termos de
economia (e tampouco de ecologia), não apenas em termos de
rendimentos mas em termos de conceitos definidores do Ocidente: a
liberdade, a cultura, a promoção do livre arbítrio, o
auto conhecimento. Para isso é necessário voltar à ideia
de pluri-disciplinaridade, de humanismo, de princípios que guiam as
nossas vidas. Tudo temas que foram depostos pelo excesso de
tecnicismo, pela avidez do poder e do dinheiro, pela rapidez e
superficialidade dos tempos do capitalismo desenfreado. </span>
</div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">Precisamos de uma
ciência de conceitos compreensíveis por todas as pessoas,
independentemente da sua formação, que nos permitam pensar o mundo.
Temos de fazer entender que a função principal da ciência não é
prever, mas conhecer; não deve ser apenas uma actividade que alguns
híper especialistas praticam, uns para os outros, em
laboratórios e gabinetes remotos e que apenas chega às pessoas como
tecnologia. Deve ser também isso, mas, além disso, tem de ser a
formulação de conceitos que permitam às pessoas cultas pensar o
seu mundo e a posição que nele se ocupa. </span>
</div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">É essa
capacidade de ter conceitos para nos pensarmos a nós próprios e ao
mundo que permite a liberdade individual e política: a não ser que
se aceite que demagogia e democracia são a mesma coisa, a democracia
é impossível sem que os eleitores compreendam e influam nas opções
governativas. A base da democracia é que as pessoas possam escolher,
propor, participar. É, portanto, o contrário da alienação que se
vive no presente. </span>
</div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">Temos, se
defendermos a liberdade intelectual, cívica, pessoal, de promover
uma cultura de conceitos e de valores humanistas e não apenas de
tecnologia e de consumo: uma cultura do Ser em vez do Ter. Há que ir
além das aparências, da pressa excitada de mostrar o mais simples e
da tentativa de nivelar por baixo, e ir mais fundo, com mais vagar e
atenção, e de tentar puxar o baixo para cima. </span>
</div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">Há, pois, que
pensar, reflectir, combater a tendência para transformar toda a
gente em postos de trabalho que não se podem pensar. Não estou a
defender qualquer forma de marxismo: essa teoria falhou. Uso o
conceito de alienação porque é actual e é o resultado da
tendência para ver o mundo como tecnologia sem sujeito. O que
defendo é um regresso ao humanismo, à educação para a cidadania,
para o conhecimento de si e da sociedade, para que as pessoas se
consigam pensar e ao seu mundo. O que pretendo é que os intelectuais
não se conformem com o estatuto de máquinas fotográficas a que o
mundo moderno os votou e que ensinem a liberdade mental. </span>
</div>
<div align="CENTER" class="western" style="text-indent: 0pt;">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div align="CENTER" class="western" style="text-indent: 0pt;">
<span style="font-size: large;">———</span><span style="font-size: large; font-style: normal;"></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">Portugal está
numa situação em que tem de modificar todos os seus valores: talvez
possamos pensar na futilidade de agora, quando o sistema do Ter
revela ter completamente falhado, o imitar (na economia, nas
universidades). Pensemos em alternativas mostrando a
utilidade do Ser – podemos pensar nos e ao nosso mundo em
vez de nos alienarmos simplesmente para melhor ficarmos à disposição
de quem nos quer comprar e possuir. </span>
</div>
<div class="western">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">Rodrigo de
Sá-Nogueira Saraiva</span></div>
<div class="western">
<span style="font-size: large; font-style: normal;">Santo Estêvão,
19-20 de Outubro de 2012</span></div>
Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-59790164863766402142012-04-02T03:18:00.000-07:002012-04-02T03:18:05.221-07:00<br /><br /> <br /><h2>
Leitura da Bovary, 2012 </h2>
<br />Conheço muitas Bovarys. O mundo, sem vida interior autónoma que forneça a sua própria estimulação resulta sempre na procura das fontes de prazer fora de si. Quando não somos capazes de fornecer a nossa própria estimulação temos sempre de a procurar fora de nós. E queremos mais e mais, sem conseguirmos encontrar nada que nos satisfaça duradouramente. <br /><br />Num romance, num filme, é nos apresentada uma figura que faz e sente o que nós não fazemos e nunca sentimos. Queremos então ser como essa figura. Parecer essa figura, sentir o que achámos que essa figura sentiu. As nossas vidas são maçadoras, sem cor, e procuramos estimulação fora de nós. <br /><br />Copiar um modelo para sentir o que nunca sentimos mas entrevemos é uma espécie de receita de sensação: fazemos como x para sentir o que x sentiu no romance ou no filme. Assim, o bovarysmo ocorre com todos nós: dependendo da nossa capacidade de imaginação e da clareza do exemplo, copiamos um modelo para ser algo que não somos e assim sentir uma identidade que, sozinhos, não seríamos capazes de forjar. É, ao mesmo tempo, uma fuga de nós e uma completude de nós: sentimos que nos falta qualquer coisa e procuramo la no modelo que entrevimos que a tem. <br /><br />A imitação do modelo pode ser feita quer para nós quer para os outros; como o que somos depende do que os outros acham de nós, os dois aspectos estão relacionados, mas há quem dependa mais dos seus próprios critérios de avaliação da comparação com o modelo, e quem dependa mais da avaliação que os outros fazem da comparação com esse modelo. Na Madame Bovary trata se do primeiro caso. <br /><br />Nesse sentido, a vida é efectivamente um palco (mesmo que os actores e o público sejamos nós) e somos apenas títeres comandados pela nossa vontade de ser como o modelo que copiámos sem o ter criado. Não creio que seja verdade o que o Goffman diz, que somos apenas isso, porque tem de haver quem julgue a conformidade ao modelo, e esse juiz, por menos consciência que se tenha de si, somos nós. <br /><br />Os animais são, nós queremos ser. Talvez isso seja o que nos torna uma «espécie em devir», como dizia o Lorenz, mas ao mesmo tempo é o que nos torna falsos, impuros no sentir, insinceros, actores perante nós e os outros. <br /><br />Mesmo as emoções que se pensam mais puras – o amor entre duas pessoas – são sempre modelados num exemplo qualquer. Dois apaixonados pensam que sentem o mesmo e tentam transmitir ao outro o que sentem, para se sentirem compreendidos. Mas o outro interpreta outra coisa, que pensa ser o que o outro sente: e ambos pensam que partilham do mesmo espírito enquanto se enganam sobre como o outro sente esse espírito. Esse engano é mantido pela força da atracção física e mental que se sente durante a paixão; é depis dela que se percebe que a fusão nunca existiu senão na nossa mente. Mas não transmitimos o que sentimos: apenas tentamos, desesperadamente, fazer nos compreender e para isso recorremos à linguagem comum com o outro, que é sempre uma linguagem partilhada porque recorre a um modelo comum. Mesmo na paixão somos insinceros, embora sinceramente, e nos enganamos uns aos outros e a nós próprios. <br /><br />As únicas emoções que podemos ter são aquelas que não se exprimem por expressões faciais ou por palavras. São as que sentimos na solidão connosco, sem palavras, sem gestos, sem caretas, sem nos imaginarmos a ser seja o que for. A música ajuda a dar forma a essas emoções. Mas mesmo aí somos insinceros porque a música foi feita por outro que provavelmente sentiu uma coisa diferente da que nós lá vemos; e se compositor e ouvinte sentirem coisa parecida, é porque têm o mesmo modelo de emoções, porque há um referente, um modelo, comum. <br /><br />A emoção pura é solitária, sem palavras, sem elaboração, como a dos animais e das crianças que não falam. Tudo o resto vem de fora, não é nosso. Essa emoção pura é-nos acessível? <br /><br />Se somos marionetas da cultura em que vivemos e queremos ser como os modelos que nos deram, se quase nunca somos nós próprios, que resta senão tentar compreender o que sentimos sem emoção? Pode-se não pensar no caso e viver as marionetas que somos, mas essa escolha não é para mim. <br /><br /><br />Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-4437485300285623332012-01-31T09:40:00.000-08:002015-02-21T18:35:36.695-08:00Ética, compaixão e lei<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<style type="text/css">
<!--
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</div>
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<br />
<h1 class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; page-break-before: always; text-align: left;">
<span style="font-size: large;">Ética,
compaixão e lei</span></h1>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><i>Este texto foi escrito na sequência de um
debate público com o Prof. Paulo Borges. A ideia do debate era
confrontar as Éticas da Lei e da Compaixão. O resultado do debate
foi, não surpreendentemente para mim, como se pode deduzir das
últimas palavras deste texto, uma grande convergência a partir de
posições muito diferentes. A conclusão que tiro é a de que,
partindo de que ponto de vista for, a não ser que não defendamos o
humanismo, seremos conduzidos ao mesmo tipo de ética fundamental. O
que isto significa, parece me, é que temos todos um
sentimento do «bem do grupo», da necessidade de diminuir o
sofrimento e de evitar a destruição. Nem sempre foi assim, mas,
como disse no encontro, «as pessoas de boa vontade convergem na
ética». Lisboa, 27 de Janeiro de 2012. </i></span><br />
<span style="font-size: large;"><i> </i>
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<h3 class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><i>Função da ética e desenvolvimento do
humanismo</i></span></h3>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;">A <span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">função
da ética é a regulação das actividades sociais para o benefício
da comunidade. Há comunidades de vários tipos. Na nossa espécie,
aparentemente, as primeiras comunidades eram compostas de poucos
indivíduos que formavam grupos; esses grupos tinham relações de
rivalidade. Não é fundamentalmente diferente do que se encontra nas
sociedades ágrafas que chegaram ao nosso tempo. </span></span></span>
</div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large; font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">Nessas
sociedades muito simples há muita competição entre grupos (há
guerras constantes apesar do que se diz popularmente), e pode se
demonstrar que o altruísmo é a estratégia que mais beneficia quer
o grupo quer o indivíduo (porque o indivíduo precisa do grupo).
Assim, em grupos muito pequenos, os indivíduos cooperam muito
intensamente: um membro do grupo é considerado um irmão, e cada
membro do grupo tem as obrigações de um irmão relativamente a
todos. Esses grupos são fortemente identitários e muito
cooperativos </span></span><span style="font-size: large;"><i><span style="font-weight: normal;">mas</span></i><span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">
são agressivos relativamente aos outros grupos. Ou seja, a
cooperação é limitada (estritamente) aos membros do grupo
identitário. Os membros de outros grupos são vistos como inimigos
que devem ser exterminados porque representam um perigo para o
«nosso» grupo. </span></span></span>
</div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">Há
muitíssimos dados que ilustram esta realidade sombria. Contarei
apenas três casos que revelam até que ponto este fenómeno é
«natural». Há uns anos os antropólogos que estudavam uma tribo
primitiva decidiram mostrar ao chefe como era a sua terra, fazendo o
sobrevoá la de helicóptero. O chefe pediu para levar três
pedras grandes. Quando se lhe perguntou para quê, disse que era para
lançar na aldeia vizinha, para matar os adversários. Além disso,
em muitíssimas culturas, a palavra que designa a tribo («Inuit»,
por exemplo) significa «pessoa»; os nomes por que se designam as
outras tribos são, quase sempre, depreciativos. Nos bosquímanos
!Kung a palavra que designa «estrangeiro» significa «mal»
(«dole).
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">Esta
tendência para defender o grupo identitário e atacar o grupo rival
baseia se no que pode ser um padrão inato da nossa
espécie, que partilhamos, até certo ponto com outros primatas.
Quando dois grupos se odeiam, assim que há uma assimetria
momentânea, o mais forte ataca e os machos sentem uma pressão
interna para matar selvaticamente os rivais e violar as fêmeas.
Conhecemos casos demais deste fenómeno para o podermos negar por
razões ideológicas.
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large; font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">Na
sequência da agricultura houve muito mais alimento para partilhar
mas ao mesmo tempo a sociedade tornou se menos igualitária
e desenvolveram se reinos. Esses reinos faziam guerra a
outros reinos, mas precisavam, para isso, de ser estritamente
cooperativos. Não é, portanto, por acaso, que as regras «éticas»
surgem no neolítico: era necessário que toda a população de um
reino conseguisse cooperar sem rivalidades que perturbassem a
produção requerida para conseguir a riqueza necessária para
conduzir a guerra. </span></span>
</div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">Com
as invasões bárbaras na Europa, caiu o Império romano, que
assegurava paz, e diminuiu brutalmente a produtividade da terra. A
população decaiu muitíssimo e caiu se numa organização
pior do que a anterior ao neolítico (porque as estruturas sociais
foram todas destruídas com as invasões). Progressivamente
chegou se ao resultado esperado pelos modelos da
cooperação/ exploração: emergiu uma classe de
batoteiros que exploravam os outros. A essa classe deu se o
nome de «nobreza» e, em parte, também «clero». Ambas afirmavam
assegurar funções mais importantes do que a produção primária (a
defesa e a relação com deus) e na prática consumiam
proporcionalmente muitíssimo mais recursos do que os produtores
primários.
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">Esse
sistema evoluiu para o feudalismo, em que o senhor de uma terra
nominalmente protegia um território em troca de alimento e vários
impostos. Como os senhores feudais não tinham limite de poder,
esses impostos transformaram os camponeses em «servos» e em alguns
países efectivamente em «escravos» (muitos dos países eslavos
mantiveram o regímen até ao Séc. xıx). Por detrás dessa
desigualdade desenvolveu se uma ideologia justificativa
que se disfarçava de ética: o direito divino ao poder e a diferença
de qualidade entre as classes (os três «estados», como se lhes
deve chamar). O campesinato era completamente esmagado de impostos e
inclusivamente de ataques guerreiros por parte dos nobres (a guerra
medieval fez se, em grande parte, contra os camponeses
desarmados, não contra tropas armadas). Na Idade Média houve várias
revoltas de camponeses dirigidos por cabos de guerra ambiciosos e sem
escrúpulos, que por seu turno matavam os nobres: oscilava quem tinha
mais poder de agressão e era essa a base de relação social.
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large; font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">Com
o fortalecimento do poder real a agressão decaiu: o rei precisava de
paz no reino para enriquecer, de modo que todos beneficiavam de uma
paz relativa. Contudo, as etnias que não faziam parte do grupo
identitário foram sempre atacadas (por exemplo, os judeus, que por
seu turno desprezavam os gentios; ou as «bruxas» que foram mortas
aos milhares. Este estado de rivalidade entre grupos identitários
ocorre </span></span><span style="font-size: large;"><i><span style="font-weight: normal;">sempre</span></i><span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">
na nossa espécie e foi bem identificada pelos psicólogos sociais –
</span></span><i><span style="font-weight: normal;">cf</span></i><span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">.
noção de «grupos mínimos»). </span></span></span>
</div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">Foi,
parece, no Séc. xvıı xvııı que a mensagem fundamental do
cristianismo paulista afectou mais directamente a política: os
teóricos sociais defenderam que as pessoas, mesmo diferentes de nós,
tinham direitos. Esta tendência parece ter tido como origem o
desenvolvimento da literacia e dos romances: um leitor tem de se
identificar com personagens que não são ele próprio e para isso
precisa de uma teoria da mente mais complexa do que simplesmente
«saber o que o outro sabe», mas que inclui «saber o que o outro
sentiria se...». Este dado não é seguro, mas em qualquer caso é
aparentemente verdade que foi com o racionalismo do Séc xvııı que
se considerou claramente os direitos das outras pessoas. Os «direitos
humanos» derivam precisamente dessa altura.
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large; font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">Essa
revolução das mentalidades implicou duas coisas diferentes. Por um
lado a compreensão de que o outro sofre e a capacidade psicológica
de nos imaginarmos na situação dos outros; essa ideia não era
nova: como disse, o cristianismo paulista defendia precisamente o
mesmo. O outro elemento, este novo, foi a existência de iniciativas
legais conducentes a uma sociedade em que </span></span><span style="font-size: large;"><i><span style="font-weight: normal;">a
cada pessoa</span></i><span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">
se asseguravam os direitos. Houve, pois, a </span></span><i><span style="font-weight: normal;">compreensão
de que o outro sofre e </span></i><span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">leis</span></span><i><span style="font-weight: normal;">
que tentaram evitar que isso pudesse ocorrer</span></i><span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">.
A democracia, a primeira fase da Revolução Francesa, são
precisamente a expressão desse movimento. </span></span></span>
</div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">De
então para cá tem havido progressos constantes na ideia de que não
se pode fazer mal às outras pessoas e na construção de sistemas
legais que impedem que poucos se aproveitem de muitos (os sistemas
fiscais pretendem precisamente impedir isso). Com altos e baixos
tem se caminhado progressivamente nessa direcção.
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">No
nosso tempo assistimos à construção do «estado social», que é
precisamente a manifestação mais generosa dessa tendência;
infelizmente esse estado social baseava se numa
super exploração do planeta e na desigualdade da
repartição dos benefícios (quase todos vinham para a Europa e para
os Estados Unidos) que não é possível manter e por isso vai
desaparecer.<a class="sdfootnoteanc" href="http://www.blogger.com/blogger.g?blogID=5836646099093153849#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc"><sup>1</sup></a></span><br />
<span style="font-size: large;"><sup> </sup>
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<h3 class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><i>A base da ética</i></span></h3>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;">Como
vimos, a base mais arcaica da ética é a formação de grupos
identitários: a tribo, o grupo de parentes, são outras tantas
máfias que promovem o interesse próprio em detrimento do de todos
os outros grupos. Nessa situação, a ética é, como o viu Durkheim,
o próprio grupo, grupo esse que se distingue dos outros em termos
«qualitativos» (um membro do meu grupo é uma pessoa, os membros de
outros grupos são inimigos que podem ser caçados e que devem ser
mortos). Essa condição leva a guerras constantes entre os vários
grupos.
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large; font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">O
que conduz, progressivamente, a uma menor agressão não é uma ética
transcendente, mas a necessidade dos reis em manter coeso um grupo de
pessoas mais ou menos heterogéneo. Essa coesão é necessária para
assegurar o poder do monarca e a sua riqueza. </span></span>
</div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">Para
assegurar essa coesão são necessárias duas coisas: que o
comportamento cooperativo seja recompensado (o que equivale à ideia
de que o trabalho é recompensado) e que o comportamento de
exploração dos cooperadores seja punido. É neste passo que entra a
importância da Lei: a lei determina o que é bom e o que é mau para
o grupo. Se todos se comportarem de acordo com a lei, advirá daí o
maior bem para o maior número (claro que isto pressupõe que as leis
estão bem feitas e que foram correctamente pensadas).
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">A
seguir à época de centralização do poder entra em jogo um outro
factor, este mais filosófico. É necessário que haja a compreensão
de que o outro é respeitável em princípio, mesmo quando não se
conhece. De outra forma o comércio (que gera muito mais riqueza do
que a agricultura) e as trocas tornam se impossíveis mesmo
com leis severas. Foram estes dois passos que se deram entre os Sécs.
xvı e xvııı.
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large; font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">Assim,
a base da ética é dupla: tem que ver com a concepção do outro, da
necessidade de considerar o outro, mesmo de outro grupo, como
semelhante a mim (como se diz desde S. Paulo);<a class="sdfootnoteanc" href="http://www.blogger.com/blogger.g?blogID=5836646099093153849#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc"><sup>2</sup></a>
e com a regulação do comportamento da sociedade através do reforço
do comportamento cooperativo e da punição do não cooperativo </span></span><span style="font-size: large;"><i><span style="font-weight: normal;">para</span></i><span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">
que o resultado seja o maior bem para o maior número. Ou seja, a
ética moderna desenvolve se através da ideia de que somos
todos iguais e da lei que obriga a que assim nos comportemos. </span></span></span><br />
<span style="font-size: large; font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;"> </span></span><span style="font-size: large;">
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<h3 class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><i>A ética e os sentimentos</i></span></h3>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;">Num
plano puramente psicológico, estes dois termos, ética e
sentimentos/afectos, opõem se. Para isso darei um
exemplo, tirado de Kohlberg.
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-weight: normal; margin-left: 35.5pt; text-align: left; text-indent: 0pt;">
<span style="font-size: large;"><i>Imaginemos que um homem vai num navio que afunda. Na precipitação
é colocado num salva vidas com duas crianças. O
salva vidas não comporta o peso dos três: um deles tem de
ser deitado ao mar para que os outros dois se salvem. O homem é pai
de uma das crianças e tem de ser ele a conduzir o salva vidas
porque as crianças são incapazes disso. Qual é a conduta ética?</i></span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;">Não
há resposta correcta a esta pergunta. Mas o problema que se põe é
de saber se o homem devem seguir os seus afectos de pai e salvar o
filho ou se deve tirar à sorte. Eticamente falando, ele não pode
distinguir entre duas vidas com base na sua emoção egoísta: de
maneira que deveria tirar à sorte.
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large; font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">O
dilema pode parecer artificial, mas compreende se
imediatamente se considerarmos o problema da corrupção. Uma pessoa
com poder deve favorecer os seus amigos e parentes ou não? Claro que
todos achamos que não deve: as suas emoções egoístas devem estar
fora da decisão e ele deve escolher quem é mais habilitado para o
lugar. </span></span>
</div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large; font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">Ou
seja, o comportamento justo deve ser </span></span><span style="font-size: large;"><i><span style="font-weight: normal;">totalmente
desinteressado</span></i><span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">,
deve ser tomado não por pessoas com sentimentos mas por cérebros
frios. É por isso que se diz que </span></span><i><span style="font-weight: normal;">Dura
sed lex</span></i><span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">
(</span></span><i><span style="font-weight: normal;">Dura lex sed
lex</span></i><span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">).</span></span></span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">Pode
então ser se guiado pela compaixão (no sentido habitual
do termo) e esperar um resultado ético? Parece me que não.
Apenas se se tiver compaixão indiscriminada por todos os outros
(isto é, apenas se não se tiverem afectos particulares, apenas se
se gostar tanto dos nossos pais e filhos quanto de um Sâmbia da
Nova Guiné desconhecido) se poderia esperar um
comportamento ético.
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">Mas
passa se que não somos assim. Por um lado, todos nós
defendemos os nossos próximos. E os nossos próximos são os nossos
parentes e os membros do nosso grupo cooperativo (há um provérbio
árabe muito eloquente: eu contra o meu irmão; eu e o meu irmão
contra o meu primo; eu e o meu primo contra um outro Maometano; eu e
os outros Maometanos contra o infiel). Na verdade, desafio quem quer
que não seja psicopata a conseguir, na situação do dilema com que
comecei esta secção, não escolher o filho. Eu, pelo menos, não
teria nenhum respeito nem simpatia por quem não escolhesse o filho
na situação descrita: consideraria tal pessoa um monstro. Da mesma
maneira, compreendo a tentação nepotista e o favorecimento de
amigos. Mas vão contra o bem comum e é para isso que serve a Lei:
para nos forçar a pormos o bem de todos acima do bem das pessoas por
quem sentimos afecto. A ética do afecto é um mecanismo antigo que
se adequava aos pequenos grupos identitários mas que funciona mal em
grandes grupos compostos de pessoas anónimas.
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large; font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">Temos,
então, que se seguirmos os nossos afectos (a nossa tendência para a
compaixão) formaremos um grupo identitário semelhante ao descrito
no início desta conversa: o grupo cooperativo que se opõe aos
outros grupos. Esta ideia paroquial da ética foi, como vimos,
progressivamente vencida graças à </span></span><span style="font-size: large;"><i><span style="font-weight: normal;">ideia
abstracta</span></i><span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">
da dignidade humana, seja quem for o humano em questão. Ou seja, foi
um princípio filosófico e uma técnica legal que garantiram a visão
democrática e humanitária que quase todos defendemos actualmente, e
não a compaixão biologicamente determinada. </span></span></span>
</div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">Pode
então concluir se que é necessária uma lei que obrigue
as pessoas a não seguir os seus impulsos de compaixão e de
generosidade relativamente aos parentes e amigos. Na ausência de
tais leis o grupo será fraccionado em sub grupos
familiares que definem máfias. O bem comum é uma ideia abstracta,
não o fruto do sentimento, de modo que é necessário forçar a sua
existência através da Lei. </span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<h3 class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><i>O caso particular de dar a outra face</i></span></h3>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;">Há
ideologias da compaixão (por exemplo, o cristianismo) que afirmam
que devemos apagar completamente o nosso Eu perante os outros. Assim,
se agredidos ou ofendidos, deveremos dar a outra face.
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">Não
é possível concordar racionalmente com essa posição. Imaginemos
um caso simples. Um grupo deseja o maior bem para o maior número e
todos seguem esse comportamento. O que sucederá se um membro desse
grupo escolher agredir os outros para lhes retirar os recursos (isto
é, se fizer batota)? Explorará os outros, talvez até à morte. Se
a medida do seu enriquecimento for proporcional à dos membros que o
seguem rapidamente o número de agressores aumentará a ponto de
fazer perigar o grupo. O que sucede então é que o grupo se extingue
e que outros grupos mais cooperativos substituem o grupo de
agressores egoístas. Foi isto que sucedeu durante a Idade Média e é
isto que ocorre sempre que a Lei deixa de ser aplicada (como ocorre,
correntemente, em vários países de Leste).
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">Há
várias estratégias para resolver o problema da batota. Nenhuma
delas é dar a outra face. A estratégia que vence as outras é a
«reciprocidade generosa», quer dizer, fazemos ao outro o que ele
nos fez, perdoando lhe alguns deslizes. Mas nunca a
estratégia vencedora é dar a outra face. Fazê lo é
encorajar o aparecimento dos chefes de guerra. A excepção mais
conhecida, Ghandi, explica se porque, na nossa espécie, a
influência sobre os outros se faz não apenas pela força mas pela
influência ética. Gnahdi deu a outra face material mas não
moralmente e fez que cada ofensa que lhe era feita fizesse ricochete
e atingisse o agressor. Ou seja, trata se de uma estratégia
de redirecção da agressão e não de uma estratégia de pura não
agressão. Assim, conclui se que a única forma de
responder à agressão é com agressão, embora não necessariamente
do mesmo tipo.
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">A
Lei resolve este problema evitando que tenham de ser os indivíduos
ofendidos a retaliar a agressão, o que levaria à anarquia e ao
caos. O Estado tem, numa sociedade moderna, o monopólio da força, e
usa a contra quem não cumpre as regras. É esse o outro
lado importante da lei: determina, como vimos, o que se faz para
promover a cooperação; e pune o que vai contra a cooperação.
Assegura, assim, uma sociedade mais justa e com menos sofrimento do
que as «sociedades naturais», que rapidamente se tornam palco de
guerras entre fortes e fracos, como na Idade Média. </span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<h3 class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><i>A questão do «Eu»</i></span></h3>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large; font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">O
anterior tem que ver com a questão da </span></span><span style="font-size: large;"><i><span style="font-weight: normal;">afirmação
do Eu</span></i><span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">.
A maior parte das éticas de inspiração religiosa defende que o eu
deve renunciar a si, que se deve atenuar. Esta limitação do eu tem
uma função: o diminuir a egoísmo, assim favorecendo a cooperação.
É, de resto, a condição </span></span><i><span style="font-weight: normal;">sine
qua non</span></i><span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">
para que seja possível considerar um assunto eticamente: «julgo
este assunto como se eu não fosse parte interessada». Esse
afastamento do eu é, portanto, necessário à cooperação.
E contudo, pode se ir longe demais nesse aspecto: se
pusermos o outro como igual a nós, não haverá problema, mas um
excesso de inibição do Eu leva, tal como o dar a outra face, a
favorecer os batoteiros. De modo que se tem defendido que, para que
uma sociedade seja ética, é necessário que cada um tenha a
capacidade de punir o adversário quando ele faz batota. Isso implica
que cada um tenha poder (e que o use eticamente), mas que esse poder
seja controlado pela Lei. É esta a ideia da </span></span><i><span style="font-weight: normal;">participação
cívica</span></i><span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">
que se defende ser necessária aos regímenes democráticos. Quando
há grandes distâncias de poder a consequência é que quem tem
pouco poder não tem qualquer possibilidade de influenciar quem tem o
exercício do executivo. É o que se passa nas antigas ditaduras que
não fizeram uma boa transição para a democracia (na Turquia, por
exemplo, e também entre nós). Se o Eu se apagar para apenas
promover o bem do outro, é necessário que o Estado exerça uma lei
completamente justa. Como a lei é, sempre, imperfeita e como há
sempre batoteiros, anular o Eu corresponde a encorajar os
exploradores.</span></span></span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large; font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">De
modo que, embora o anular do Eu seja uma tarefa que se pode
considerar eticamente meritória, (tanto mais que é muito
difícil) os seus efeitos no nível do grupo podem conduzir a
injustiças.</span></span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large; font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">Isto
não significa que o Eu se exerça da maneira mais primária: tem de
ser agente não do seu próprio bem estar mas do </span></span><span style="font-size: large;"><i><span style="font-weight: normal;">controlo
dos outros</span></i><span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">,
de modo a garantir que eles cumprem as regras cooperativas. </span></span></span>
</div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large; font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">Finalmente,
o Eu tem um papel extremamente importante na cooperação: as
</span></span><span style="font-size: large;"><i><span style="font-weight: normal;">personae</span></i><span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">
(os conjuntos de papéis que a cultura disponibiliza) mais
cooperativas têm de ser muito prestigiadas para que os indivíduos
procurem acomodar se a essas </span></span><i><span style="font-weight: normal;">personae</span></i><span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">.
No processo, comparam se umas às outras de maneira a serem
«melhores» no cumprimento do papel cooperativo. Assim é a própria
competição por prestígio que leva à cooperação. É dessa
maneira que os papéis interiorizados promovem directamente a
cooperação: em vez de ser a persona do «Rei», do «chefe
autoritário» a ter prestígio, é a do «cooperante» a mais bem
vista. Isto só sucede no caso em que a cultura prestigie esses
papeis, o que não sucede sempre; por exemplo, nas culturas da
«honra» tende a ser o «chefe autoritário» que goza de um
estatuto especial a ser o papel mais prestigiado. Como se compreende,
se todos tentarem emular esse papel de chefe autoritário não haverá
cooperação possível: todos lutarão por ocupar esse lugar. Talvez
seja essa uma das causas da dificuldade que as sociedades
mediterrânicas têm sentido em adaptar se à democracia
cooperativa. </span></span></span><br />
<span style="font-size: large; font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;"> </span></span><span style="font-size: large;">
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<h3 class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><i><b>Dois níveis da ética</b></i></span></h3>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;">Há
dois níveis bastante diferentes de ética. A ética puramente
pessoal, em que procuramos conformar nos a um modelo de
comportamento ético, conformação essa que é, em si, o fim em si
da ética. E a ética de grupo, que pretende garantir o bem estar de
um grupo (que pode ser definido como um grupo identitário ou como a
própria humanidade, ou ainda a todos os seres vivos). Neste segunda
ética, o objectivo é pragmático e social e não interno e privado:
pretende se que o bem estar se difunda, que as injustiças
que vemos nos outros deixem de existir.
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">As
duas éticas podem entrar em conflito. Um exemplo pode ser o
seguinte: imaginemos que, para impedir um assassino de matar uma
população, é necessário fazer uma coisa que a minha ética
privada impede. Que deverei fazer? Seguir a minha ética interna e
ficar em paz comigo? Ou cometer a acção que condeno e conseguir o
objectivo de salvar pessoas? No meu espírito, não há dúvida:
deve se tomar a segunda posição. Mas os defensores de que
os actos éticos o são intrinsecamente, mais do que as
consequências, não estarão de acordo.
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large; font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">Mais
uma vez a ética da Lei resolve o problema: os comportamentos devem
ter em consideração a ética </span></span><span style="font-size: large;"><i><span style="font-weight: normal;">no
plano do grupo</span></i><span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">.
É verdade que pode haver leis relativas à ética privada (há
vários exemplos de religião). Mas a Lei civil, a Lei que pretende o
bem do maior número será sempre uma lei racional que esquece a
salvação do indivíduo e que coloca acima dela o bem comum.<a class="sdfootnoteanc" href="http://www.blogger.com/blogger.g?blogID=5836646099093153849#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc"><sup>3</sup></a></span></span></span><br />
<span style="font-size: large; font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;"><sup> </sup>
</span></span><span style="font-size: large;">
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<h3 class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><i>Ética da lei ou da compaixão?</i></span></h3>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;">A
não ser que se defina compaixão como afirmação filosófica da
igualdade de todas as pessoas, o que equivale a dizer que a caridade
é a afirmação dos direitos do Homem e a defender a necessidade de
uma lei que os regulamente (o que é equivalente à «ética da
Lei»), a ética da Lei aqui defendida parece me ser a
única possibilidade realista de garantir o funcionamento justo,
equilibrado e humanitário de uma sociedade. É uma escolha
filosófica que tem de ser defendida ideologicamente e que deve
traduzir se na Lei e não uma questão de compaixão no
sentido de que um sentimento de caridade para com cada indivíduo. O
«Homem» comover nos á abstractamente, não em
termos individuais e concretos. E para combatermos o sofrimento do
todo teremos de causar sofrimentos individuais (nomeadamente a quem
faz batota e não coopera), mesmo que isso nos cause pena ou
incómodo.</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">Pode
ser um equívoco semântico distinguir entre as duas éticas. Na
verdade, é essa a minha convicção: as duas partem de afirmações
diferentes – ética individual e ética colectiva – mas chegam a
resultados semelhantes. Aquilo a que eu chamo ética da Lei
chamar se á ética da compaixão partindo de
outro pressuposto.
</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">Se
assim for, ainda bem; significará que estamos de acordo. Se não for
assim, esperemos uma discussão cooperativa entre pessoas
bem intencionadas.</span></div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
</div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<span style="font-size: large; font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">Lisboa,
24 de Janeiro de 2012 </span></span><span style="font-size: large;"><i><span style="font-weight: normal;"> </span></i></span><br />
<span style="font-size: large;"><i><span style="font-weight: normal;">R.
Sá Nogueira Saraiva</span></i><span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">
</span></span></span>
</div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; font-weight: normal; text-align: left;">
<span style="font-size: large;"><br /></span>
</div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div id="sdfootnote1" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<div class="sdfootnote">
<span style="font-size: large;"><a class="sdfootnotesym" href="http://www.blogger.com/blogger.g?blogID=5836646099093153849#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a>
<span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">Também
actualmente verifica se o desenvolvimento de tendências
que nada têm que ver com a inspiração democrática e igualitária
– o neo liberalismo e, sobretudo, o desenvolvimento de
uma tecnologia financeira desregulada, são uma forte ameaça desta
evolução geral a que assistimos desde o Séc. xvı.</span></span></span></div>
</div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div id="sdfootnote2" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<div class="sdfootnote">
<span style="font-size: large;"><a class="sdfootnotesym" href="http://www.blogger.com/blogger.g?blogID=5836646099093153849#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a>
Refiro S. Paulo e não Jesus Cristo porque é S. Paulo que destina a
mensagem cristã a todas as pessoas, «circuncisos e não
circuncisos», aparentemente contra a opinião de S. Pedro.</span></div>
</div>
<div style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
</div>
<div id="sdfootnote3" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; text-align: left;">
<div class="sdfootnote">
<span style="font-size: large;"><a class="sdfootnotesym" href="http://www.blogger.com/blogger.g?blogID=5836646099093153849#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a>
Esta questão levanta bastantes problemas: a questão dos meios e
dos fins. Mas não a tratarei aqui por ser relativamente secundária
à discussão. Mas direi que, se a opção ética for ilegal, o
sujeito deve tomá la; mas que a sociedade tem o direito,
talvez o dever, de a punir, ou de abrir uma excepção justificada
se a lei o permitir (o que não ocorre na lei que utilizamos em
Portugal).
</span></div>
</div>
Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-27611837343056244942012-01-12T18:30:00.000-08:002012-01-20T16:22:37.388-08:00Música e Emoções<div class="western">
É a primeira tentativa. Logo se melhora.
</div>
<h1 class="western">
Música e emoções</h1>
<h1 class="western">
</h1>
<h1 class="western">
para breve, espero</h1>Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-48518100854307173972012-01-12T18:28:00.001-08:002012-01-20T10:59:41.684-08:00Light from darkness<span style="font-size: small;">I found this text of mine lying about ion the net.</span><br />
<span style="font-size: small;">It is about Walcha and Bach (the early organ recordings)</span><br />
<span style="font-size: small;"><br /></span><br />
<span style="font-size: small;">Light from darkness</span><br />
<span style="font-size: small;"><br /></span><div style="padding: 10px;">
<span style="font-size: small;">"Why `light from darkness'? Walcha was blind, and his knowledge of the inner polyphony of Bach's works appears almost in `black and white'. Indeed, I often find that Walcha's playing reminds me of a water crystal: perfect, but almost non existing. You get incomparable sense of structure, polyphony is perfect (Walcha's toucher was unique, and his registrations often involve sharp sound - and therefore you can hear everything). And he manages to seem not to be present: the music is, not the interpreter. Of course that is not true. His playing is so personal you will find all the other organists different.</span><br />
<span style="font-size: small;"><br /></span><br />
<span style="font-size: small;">He was arguably the most important - in terms of impact - of all the Bachian organists. As a matter of fact, his stereo Bach recordings are often presented as the standard. Therefore, it is inevitable to compare this mono set with the best known one.</span><br />
<span style="font-size: small;"><br /></span><br />
<span style="font-size: small;">Now I don't think Walcha's Bach is very Bachian - I don't believe Bach played it like that. Nevertheless, most of his playing is very impressive (he played all the most important organ and harpsichord Bach works) and you do see into one of the most powerful music minds ever (Bach) through one of the most intelligent interpretative minds (Walcha). Some of Walcha's interpretattions (from the stereo set) are, I think, almost impossible to better. So how does Walcha fare against himself?</span><br />
<span style="font-size: small;"><br /></span><br />
<span style="font-size: small;">Although there is a very obvious continuity from the first to the second sets, I think they differ much more than one would believe.</span><br />
<span style="font-size: small;">All the interpretations are more expressive in the mono set. This is much easier to detect comparing the St.Pierre-le-Jeune recordings with the Cappel and Hambourg ones. Take the Orgelbüchlein. Although played in a low reverberating space, the Cappel recordings are actually slower. This gives the pieces, I think, more identity. Any one is in fact much more moved. Ore take the variations on Sei gegrüsset Jesu gütich. The Hambourg recording is heart piercing: it is excruciatingly beautiful, almost unbelievable. The St.Pierre one is totally decanted, ethereal; it moves, but it does not make you break in shatters.</span><br />
<span style="font-size: small;"><br /></span><br />
<span style="font-size: small;">The Preludes and Fugues are sometimes similar - or different but equally good. I would make two exceptions: I prefer both the great a minor and the 'dorian' fugues at Alkmaar. I may prefer the g minor (BWV535) p&f at Saint-Pierre, and I certainly favour the 'small' e-minor played there.</span><br />
<span style="font-size: small;">So, how does Walcha compares with himself?</span><br />
<span style="font-size: small;"><br /></span><br />
<span style="font-size: small;">By a very small margin I prefer the former recordings. Of course, audio technique is not so good; but technically Walcha was at his best - which means fabulously, almost unbeleivably, superlatively good). But, on the other hand, the stereo recordings have so many miracles to be found...</span><br />
<span style="font-size: small;"><br /></span><br />
<span style="font-size: small;">So if you have to take a decision on which to buy, go for both of them... You wont' regret it."</span></div>Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-1593474488196416732012-01-04T19:49:00.001-08:002012-02-06T10:19:33.469-08:00<div class="mbl notesBlogText clearfix" style="font-family: georgia; text-align: left;">
<span style="font-size: 85%;">INSIDE JOB</span><br />
<span style="font-size: 85%;">Quando saíu, não vi o filme. Andei à procura dele até que se comprou. Vi‑o já duas vezes (o filme é relativamente claro apesar de algumas faltas de sequência, mas a multiplicidade de nomes de pessoas e de produtos financeiros não ajuda nada e é muito fácil perdermo‑nos).</span><br />
<span style="font-size: 85%;">Se compreendi bem, é a seguinte a explicação do desastre.</span><br />
<span style="font-size: 85%;">No passado as empresas financeiras eram pequenas: uma falência implicava apenas a empresa que falia. E essas falências eram improváveis, porque cada empresa era responsável por emitir os produtos financeiros (geralmente empréstimos) e por os cobrar: quem empresta quer receber, e tinha‑se o cuidado de emprestar apenas a quem se sabia que poderia pagar.</span><br />
<span style="font-size: 85%;">Contudo, com a facilidade de comunicações (com a revolução informática: o filme não o diz mas é evidente que sem computadores todos ligados entre si a desregulação teria sido impossível) inventou‑se um sistema diferente.</span><br />
<span style="font-size: 85%;">Normalmente quem empresta é afectado se não for reembolsado. Mas se quem empresta for pago independentemente de a dívida ser paga ou não, as coisas alteram‑se. Foi o que sucedeu com os sistemas de seguros de dívida. Numa situação deste tipo, quem empresta será pago pela seguradora. Tem, portanto, vantagem em emprestar o mais possível, mesmo a quem se sabe que não poderia pagar.</span><br />
<span style="font-size: 85%;">É aqui que surge a primeira batota – a primeira evidente imoralidade: criaram‑se «produtos financeiros» que combinavam todas as dívidas provenientes de empréstimos para a compra de casa, de carro, empréstimos pessoais e mais coisas, em produtos financeiros (acções) compósitas, a que se chama cdo. Um cdo é, portanto, comprável no mercado financeiro. Para ser claro, um cdo é uma amálgama de mau crédito disfarçado numa coisa que ninguém sabe o que é. Cdo significa «lixo tóxico».</span><br />
<span style="font-size: 85%;">Como os cdo são voluntariamente «opacos» e impossíveis de compreender –ninguém sabe realmente o que são– arranjou‑se uma maneira de serem propagandeados. Essa propaganda veio das agências de rating, que foram convencidas a avaliar como investimentos de alta segurança o que sabiam ser lixo. Ganharam dinheiro com isso porque elas próprias investiram nesse lixo. As agências de rating são uma das peças fundamentais do embuste.</span><br />
<span style="font-size: 85%;">Por serem avaliadas com os mais altos níveis de segurança, os lixos tóxicos foram comprados para assegurar as poupanças (os investimentos cujos juros garantem as reformas). Contudo, quem criou os pacotes de lixo tóxico, sabia que os cdo eram instáveis e perigosos. Criou‑se, para isso, a segunda arma: os cds. Um cds é uma aposta. Uma seguradora aposta comigo que um produto compósito (cdo) vai continuar a dar lucro. Comprando o cds eu aposto que não, que vai falir. Se o cdo falir, a seguradora paga‑me; se não falir a seguradora mantém o dinheiro que eu lhe dei pelo cds.</span><br />
<span style="font-size: 85%;">Estas apostas não dependem de eu comprar o cdo: é mesmo apenas uma aposta. Posso comprar um cds sobre a dívida grega: aposto com a seguradora em que a dívida não é paga. Se eu ganhar a aposta, a seguradora paga‑me; se não, fica com o dinheiro. Assim, todos podemos comprar cds sobre coisas que não temos.</span><br />
<span style="font-size: 85%;">Ora os bancos e as agências de rating compraram cds de cdo (=apostaram na falência de produtos que vendiam e que classificavam com aaa). Como sabiam que os cdo eram lixo, protegeram‑se comprando os cds.</span><br />
<span style="font-size: 85%;">Neste processo, quem fica mais exposto são as agências que vendem os cds, evidentemente, porque, tratando‑se de lixo tóxico, é certo que vão perder a aposta e ter de pagar aos compradores dos cds. Contudo, e apesar disso, o sistema manteve‑se, porque os lucros imediatos de vender cds sobre lixo são enormes. Os riscos também são, mas é essa a natureza da especulação.</span><br />
<span style="font-size: 85%;">A especulação em tão larga escala foi possível por duas razões. Em primeiro lugar por causa da «alavancagem». Este termo incompreensível quer apenas dizer «especulação»: alavancagem significa apenas que uma empresa está a vender e a comprar a crédito, com dinheiro emprestado e que não tem nenhuma possibilidade de realizar. Assim, há empresas que têm uma alavancagem de 33:1, o que significa que de cada 33 unidades de dinheiro que movem, apenas têm, realmente, 1. Com tanto dinheiro virtual, quem ganhe muito dinheiro a vender cdo e cds ganha uma fortuna. Como as empresas já não são compostas por equipas mas apenas por falcões que saltam de empresa em empresa como bons vendedores que recebem prémios pelo volume de negócios, esses vendedores (que são quem dirige as empresas) fazem fortunas enormes. É esta a segunda razão que fez que um sistema tão perigoso fosse possível.</span><br />
<span style="font-size: 85%;">As empresas, em si (os accionistas), têm ganhos alavancados, isto é, que os bancos e as seguradores podem não poder pagar.</span><br />
<span style="font-size: 85%;">O sistema é perigosíssimo, particularmente para quem vende os cds (para não falar já dos desgraçados, nós, que investem em produtos que não sabem o que são e que ficam depois na miséria quando os cdo se revelam lixo). Na presente crise, foi a aig, a maior seguradora do mundo, que não conseguiu pagar os cds (as apostas) dos produtos tóxicos.</span><br />
<span style="font-size: 85%;">Não conseguindo pagar, não se conseguia receber, os bancos que especularam (a tal alavancagem) ficaram com enormes perdas e o sistema, por um triz, não bloqueou (porque os governos injectaram dinheiro que pediram emprestado: é essa a explicação da crise da dívida soberana, é por isso que a Europa está em apuros).</span><br />
<span style="font-size: 85%;">Perguntamo‑nos como foi possível. Ninguém deu por nada? A explicação é sinistra. Os grandes grupos financeiros pagam (muitíssimo bem) a professores das Universidades mais prestigiadas para que eles escrevam uma teoria económica que lhes dê cobertura. No mais marxista dos exemplos, o poder paga para fazer uma ideologia que o suporte.</span><br />
<span style="font-size: 85%;">Poderíamos então esperar que a administração Obama tivesse sucesso e regulasse a economia. Mas todos os responsáveis pelos crimes estão, são, a administração Obama.</span><br />
<span style="font-size: 85%;">Então? Podemos esperar outra crise a qualquer momento. Vivemos sobre uma bomba relógio que não sabemos quando explodirá. E entretanto alguém faz lucro com a miséria alheia e com a destruição da economia.</span><br />
<span style="font-size: 85%;">É a situação política e de poder mais imoral que já vi. É provocado por uma assimetria de poder brutal (os financeiros que vendem o que querem sem dizer o que é) por uma pequeníssima minoria que provoca a falência e a desgraça de pessoas que confiaram na banca (imaginemos um casal de 70 anos que se vê, de repente, com toda a sua reforma comprometida porque comprou lixo tóxico que lhe foi vendido como triplo A). Essa minoria compra intelectuais para justificarem a sua acção predatória sobre os outros, de maneira que os especialistas, formados que são nessa ideologia falsa, não conseguem criticar o processo (como quando a monarquia dizia que era por direiro de Deus que reinava e pagava aos teólogos para lhes fazer a ideologia que forçava os outros à conformação).</span><br />
<span style="font-size: 85%;">Diz‑se, na psicologia evolutiva, que os psicopatas podem ter vantagem em certos contextos sociais (quando há poucas normas). É completamente verdade, neste caso. Todos os bandidos financeiros que aí andam são rufias sem escrúpulos, sem sentimentos de culpa, que procuram sensações (droga, prostituição, lucros para lá do compreensível) e que sabem a desgraça que causam aos outros mas que se riem disso ainda por cima.</span><br />
<span style="font-size: 85%;">Vai acabar por haver regulação: as sociedades realmente auto‑regulam‑se. Mas para isso seria necessário que todos compreendessem o problema. E isso não é fácil: o problema é complexo e os financeiros e economistas esforçam‑se para o manter complexo e impenetrável.</span><br />
<span style="font-size: 85%;">Neste caso, a única solução é educar as pessoas e promover mais democracia.</span></div>Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-46383673118979140302011-12-22T19:33:00.001-08:002011-12-22T19:35:01.610-08:00Steven Pinker, The Better Angels of our nature: the decline of violence in history and its causes<br /><br />1. Revisão do livro<br />O livro tem uma tese empírica: que a violência baixou progressivamente com a civilização. Tem, além disso, um projecto: o de conhecer bem a agressão humana – quais os factores que a promovem e que a diminuem.<br /><br />Todo o livro é apoiado em dados: não há afirmações gratuitas. O que o autor demonstra é o seguinte.<br /><br /> (a) Progressivo declínio da agressão e seus motivos<br /><br />A agressão é muito forte nos grupos de caçadores recolectores e ainda maior nos grupos de caçadores agricultores (várias tribos da América do Sul e os Bosquímanes). Este dado é importante porque viola a maior parte das afirmações que se lêem: que estes povos vivem em paz relativa. Não é verdade. Todas as tribos de caçadores estão regularmente em guerra com os vizinhos e a probabilidade de se morrer violentamente é muitíssimo superior à do nosso tempo.<br /><br />Estes dados estatísticos são acompanhados de material proveniente das culturas e demonstra que a nossa espécie, antes do aparecimento da estrutura sedentária hierárquica, vive em guerra perpétua com as tribos vizinhas.<br />A agressão baixa muito com a centralização dos estados. Quando há um poder central, esse poder tem vantagem em diminuir os atritos entre os subordinados. Isto ocorre porque a guerra é destrutiva e o chefe apenas perde com guerras entre súbditos. Pinker identifica então um factor importante no declínio da violência: o estado Leviathan de Hobbes.<br /><br />Dentro do estado Leviathan pode aparecer um declínio ainda maior da agressão. Na Europa verificou-se esse declínio a partir do Séc. xvii. A razão é, diz Pinker, o crescimento das economias baseadas na indústria e no comércio, muito mais enriquecedoras do que as economias baseadas apenas na terra e na guerra. Com a industrialização o processo de pacificação aumenta até. O comércio está ligado à instrução. E efectivamente, o iluminismo testemunha precisamente isso.<br />Com a instrução há mais leitura; com o comércio há mais trocas com povos diferentes. Estes factores levam, diz Pinker, ao aumento da empatia. A empatia significa, neste caso, sentir que o outro também sofre. Há poucos dados claros aqui e deve-se considerar esta ideia uma hipótese; mas faz sentido. O comércio implica estruturação da acção em termos de ganhos e perdas e da antecipação da acção de outrem; a instrução e a divulgação do romance implicam o mesmo: que nos coloquemos do ponto de vista do herói ou da heroína. Seja como for, Pinker defende a ideia de Norbert Elias de que o «gentil comércio» substitui a guerra e implica uma diferenciação mental. Esta ideia vem, por seu turno, da teoria da ideologia burguesa, de Max Weber, de quem Elias foi discípulo.<br /><br />Ao mesmo tempo que estes dois factores se desenvolvem, diminui a cultura da honra, cultura guerreira. Há pois uma atenuação das relações agonistas entre machos, um decréscimo dos valores masculinos e um acréscimo dos valores femininos.<br />Com a instrução eleva-se também a razão –o cálculo frio dos ganhos e perdas substitui os valores emocionais e intensos– o que promove também a paz.<br /><br /> (b) Psicologia da agressão<br /><br />O livro compreende secções longas e muito importantes sobre a Psicologia da agressão. Embora nem os dados nem as interpretações sejam novas, aparecem todos reunidos. A leitura é impressionante e verifica-se até que ponto a nossa espécie parece programada (como as outras) para a agressão, e particularmente a agressão de membros exteriores ao grupo ou desviantes.<br /><br />Se não se estiver interessado na sociologia da agressão e na política da agressão, bastariam estas secções para fazer do livro uma obra de referência.<br /><br /> (c) Contexto<br /><br />O livro tem de se compreender no debate norte-americano entre os culturalistas e os sociobiólogos. O autor toma, como sempre, claro partido pela sociobiologia, que mais não seja porque os dados parecem dar razão a esta posição.<br /><br />Politicamente, é difícil para um europeu definir o autor. Eu diria que ele se situa no movimento liberal do Séc xix (mas não no «liberalismo» actual). Seria, portanto, «de esquerda»; mas ao mesmo tempo é claramente inatista e realista, não considera a espécie como moldável à vontade, e seria, portanto, considerado «de direita». Mas é talvez estúpido tentar classificar um autor tão interessante, tão sabedor, tão inteligente e tão original como outra coisa além dele. Digo isto apenas porque tenho pouca dúvida de que será atacado pela esquerda por ser demasiado biológico e pela direita por ser demasiado libertário.<br /><br /> (d) Opinião<br /><br />Considero o livro uma obra excepcional. Uma leitura obrigatória, quer pela informação que tem (é realmente incrível a capacidade de estudo e de organização dos factos) quer pelas hipóteses que apresenta. É dos livros mais fascinantes que tenho lido, quer em Psicologia quer em Ciência Política.<br /><br />O livro é longo (700 páginas de texto com letra corpo 9) e sendo sempre fácil de ler tem tanta informação que é difícil de digerir.<br /><br />Sugeriria, contudo, que todas as pessoas interessadas nas questões humanas o lessem. É, creio, e como os outros livros de Pinker também o são, mas talvez em menor grau, uma obra prima.<br />Para quem já conhece livros do mesmo autor: a escrita é mais adulta, menos adolescente, tem menos piadas. Mas o estilo é o mesmo: directo, um pouco abundante de detalhes, muito informativo, sempre claríssimo.Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-22369383455373032842010-03-06T09:32:00.000-08:002012-02-06T10:21:01.564-08:00<h1 class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; page-break-before: always;">
O Eu e a persona em Portugal</h1>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">
Já foi dito, não é novidade, que o problema do Eu e o problema geral das identidades é muito importante para os portugueses. Há pelo menos dois escritores maiores do Séc. xx que lhe dedicaram atenção (Fernando Pessoa e Vergílio Ferreira) e a questão da identidade ocupou vários dos autores mais conhecidos entre nós (António José Saraiva, Agostinho da Silva, Eduardo Lourenço e, mais recentemente, José Gil). </div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">
Por outro lado é frequente dizer se que os portugueses (juntamente com os outros países do sul da Europa) são «diferentes»: que não têm respeito pelas regras, que não são cumpridores nem pontuais, que são pouco produtivos, que são emocionais, enquanto que os nórdicos são disciplinados, trabalhadores, levam as regras a sério. Esta diferença jogaria toda contra nós: careceríamos de «inscrição» – convicção do que se é e do que se deve fazer –, segundo Gil.</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">
O que vou defender é um tanto diferente embora não discorde de muito do que se disse antes. Sem negar que não nos podemos comparar, em termos de produtividade ou de disciplina, com vários dos povos do Norte da Europa (e, com maioria de razão, com alguns povos orientais), gostaria de salientar o porquê íntimo desta diferença sem entrar em considerações valorativas, ou pelo menos não dizendo que uma atitude é pior do que a outra (não por relativismo cultural, mas porque genuinamente acho defeitos e virtudes em ambas).</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">
Claro que para o fazer simplificarei ao extremo duas atitudes, tipificadas, talvez, na Alemanha do Norte e no Portugal de Lisboa. Ainda assim, há enormes variações. Admitamos que estou a criar dois polos, entre os quais o sul tende para um e o norte para o outro. </div>
<h2 class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">
O sentimento de ser e a personagem</h2>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">
Todos nós nos sentimos ser. Quando estamos quietos, sem fazer nada, sentimo nos existir e sabemos que que sente esse existir somos nós. Quando desejamos alguma coisa, sabemos que somos nós quem deseja essa coisa. É a isso que chamo o sentimento de ser. Esse sentimento de ser é agitado por desejos e emoções. A curiosidade, o querer ter, a vontade de mandar, a agressão, o desejo sexual (paixão), a alegria, a zanga, o desprezo, a impaciência, a vontade de compreender são experiências que todos já tivémos. Este sentimento de ser corresponde, tecnicamente, ao termo «eu sujeito», mas simplifiquemos e chamemos lhe, de forma não muito correcta mas conveniente, «eu».</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">
Além dessa sensação de ser, todos nós pensamos que somos qualquer coisa para os outros e para nós próprios: assim, temos nome, nacionalidade, profissão, estatuto, somos bonitos, feios, inteligentes, honestos, gostamos de desporto ou de literatura. Quer dizer, temos uma imagem de nós que esperamos que os outros partilhem. Chamemos a isso a personagem ou <i>persona</i><span style="font-style: normal;">, isto é, máscara ou imagem social.</span></div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
Todas as pessoas do mundo têm eu e persona. O eu sentimento de ser não parece ser fundamentalmente diferente consoante as culturas (apesar do que já foi afirmado, com base em quase nada, por Whorf). A personagem, pelo contrário, varia bastante e cada pessoa tem mais do que uma. Por exemplo, a personagem que encenamos com a nossa família próxima é geralmente muito diferente da que usamos no nosso trabalho; e, por mais séria e monolítica que a pessoa queira ser, ninguém tem a mesma persona com o cônjuge quando faz sexo e quando conversa na sala.</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
Quer o eu que se sente quer a persona que se mostra dependem de maneiras de lidar com as situações que nos são transmitidas pela cultura: um pedreiro aprende a lidar com os problemas relacionados com a construção, um lenhador com os problemas do corte das árvores e um médico tem de saber o que fazer perante uma doença. Além disso, ainda que as nossas motivações e sentimentos profundos variem pouco de cultura para cultura, têm formas de expressão diferentes consoante as culturas. Todos acasalamos, comemos, dormimos e construímos abrigos, mas as regras através das quais o fazemos diferem culturalmente, embora nos pareçam «as naturais». </div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
Um outro aspecto importante é que todos nós precisamos de nos exprimir perante os outros: gostamos que nos apreciem, e gostamos de deixar a nossa marca quer no ambiente quer nos outros. Essa expressão pode ser de dois tipos. Podemos agir sobre o ambiente e sobre os outros de maneira codificada: por exemplo, para ser apreciado tenho de cumprir as regras; neste caso temos que os outros me apreciam pela minha persona, pela confirmidade das minhas acções às regras aceites. Ou pode suceder que os outros me apreciem por compreenderem como eu penso, como eu sinto; nesse caso os outros apreciam em mim a minha mente, a minha maneira de ser própria. São estas duas atitudes que tipificam, respectivamente, o norte e o sul. </div>
<h2 class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
Sentimento de ser e personagem no norte e no sul</h2>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
Para que uma sociedade funcione bem tem de haver personagens muito bem definidas e, sobretudo, centradas nos resultados. Assim, se uma pessoa num grupo cooperativo tiver uma falha, é todo o grupo que sofre. Se as outras pessoas perdoarem a falha e tentarem compreender as razões pelas quais essa falha ocorreu, não haverá cooperação apesar de haver as melhores vontades do mundo. Se, pelo contrário, as pessoas não quiserem compreender as razões da falha e se preocuparem apenas com o insucesso causado pela pessoa que a teve, culparão a pessoa independentemente de ela poder ter razões para ter falhado de modo que o problema não volte a acontecer. Neste caso haverá dureza, mas a cooperação é assegurada. </div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal; page-break-before: auto;">
Estas duas atitudes –compreender as razões da falha ou centrar se nas consequências da falha– correspondem a duas atitudes psicológicas diferentes. Compreender a falha implica que nos colocamos no ponto de vista do outro, que estejamos mais preocupados com o que se passou na mente de quem falhou do que com o seu comportamento. Não aceitar a falha corresponde a centrar nos no comportamento da pessoa que falhou, não na sua mente. </div>
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<span style="font-style: normal;">Não sei as origens das duas atitudes. Mas trata se de uma diferença fundamental entre o norte e o sul. No norte interessa o comportamento, o resultado que cada um fornece e com o qual se pode contar. No sul interessa a mente, as razões emocionais e mentais que levaram à acção. Falando do que sei, quer em Portugal quer na Itália a </span><i>humanidade</i><span style="font-style: normal;">, quer dizer, o </span><i>interesse pelas motivações das pessoas</i><span style="font-style: normal;"> e o </span><i>enternecimento</i><span style="font-style: normal;"> pela falha, pela incapacidade –numa palavra, a </span><i>piedade</i><span style="font-style: normal;">– são centrais às relações entre as pessoas. No norte é, sobretudo, a eficácia que conta. Thomas Mann, referindo se à Alemanha, diz, em mais do que um romance, que o «espírito artístico» (o interesse pelas coisas que se não vêm, uma certa apreciação do vago e dos climas emocionais, as intuições fulgurantes, o auto questionamento, a expressão emocional de si próprio) é uma característica do Sul ou pelo menos não alemã; o que seria alemão é a precisão, o interesse pelo concreto, pelo tangível, a eficácia alegre e segura, a ausência de instrospecção (denunciadora de fraqueza) e a segurança na acção. Ou seja, um dos elementos mais importantes nos países que agora admiramos é a </span><i>eficácia</i><span style="font-style: normal;">, que se traduz na valorização do comportamento em detrimento da psicologia das pessoas com quem interagimos. </span> </div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
Esta diferença assenta em maneiras diferentes de viver as personagens no norte e no sul. No norte, quando se trabalha, enverga se uma personagem que é indiferente às emoções, aos sentimentos, e mesmo à psicologia de quem trabalha connosco: interessa que quem trabalha cumpra, para que os resultados do nosso comportamento se integrem precisamente com os resultados do comportamento dos outros. Assim se fazem máquinas sociais muito precisas. Os nórdicos têm vida privada, evidentemente. Apaixonam se, como os mediterrânicos, sofrem, confidenciam os seus dramas aos amigos. Mas o mundo das amizades e dos sentimentos é explicitamente separado do mundo do trabalho. Trabalhar tem uma série de rituais: tal como se formos testemunhas num caso em que conhecemos o juíz o não tratamos como nosso amigo ou se formos amigos do padre não o tratamos por tu numa cerimónia religiosa, também as relações de amizade cessam quando se começa a trabalhar. É a personagem, com todas as suas especificações, que determina o comportamento e, no trabalho, apenas o comportamento conta. Há, pois, uma anulação dos desejos do eu mais profundo, porque se enverga uma personagem que quase impede que os sentimentos se exprimam: apenas tem de se cumprir o dever. </div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">
<span style="font-style: normal;">No sul é muito diferente. No trabalho, numa festa, mesmo numa situação totalmente inesperada, tentamos sempre ser nós próprios, quer dizer, não abdicamos de uma imagem de nós que seja congruente com a nossa genuinidade, com o que sentimos. De modo que é possível conversar, gracejar, enfim, ser se como se é fora do emprego, enquanto se trabalha. Sentimos como profundamente artificial a ideia de encenar uma personagem que não somos nós. Queremos </span><i>sempre</i><span style="font-style: normal;"> ser nós próprios, queremos exprimir a nossa identidade, as nossas pecularidades e idiossincrasias. E, contrariamente aos nórdicos, precisamos de que quem trabalha connosco nos aprecie não como comportamento mas como mente: queremos que os outros gostem de nós e queremos gostar dos outros. Repito que não digo que isto não suceda no norte: apenas que a máscara que se enverga impede a expressão desses sentimentos. Ou seja, no norte pretendem se resultados impessoalmente produzidos, no sul pretende se a expressão da pessoalidade. </span> </div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
Claro que a expressão da pessoalidade e a compreensão dos outros como seres que sentem, que pensam, que sofrem, não é compatível com níveis muito altos de produtividade. Nos países mediterrânicos esses níveis altos só acontecem quando se consegue, numa instituição, fazer que as pessoas gostem todas umas das outras – o que, na prática, define as empresas mediterrânicas como empresas familiares. </div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
Esta expressão do eu, esta pessoalidade, no trabalho, tem consequências graves. Por um lado, quando as relações de trabalho são sempre vistas como pessoais, uma ordem ou uma reclamação de um direito têm de ser sempre transformadas em pedidos. Enquanto que no norte as relações são, à partida, definidas como impessoais –uma ordem é uma ordem, um direito é um direito– no sul tudo é melindroso. Além disso, como os favores se pagam, no sul as redes de cooperação são redes de troca de favores pessoais, afectivamente investidos. É este o traço que está por detrás do nepotismo e da corrupção.</div>
<h2 class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
As regras e as personagens</h2>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
Sentimo nos ridículos a encenar uma personagem e a cumprir uma regra que nos parece arbitrária – uma regra que não compreendemos. Sentimo nos ridículos a encenar uma personagem porque sabemos que não somos essa personagem; sabemos que os outros sabem que não somos essa personagem; e sabemos que os outros sabem que nós sabemos que não somos essa personagem. De modo que, no sul, se, entre duas pessoas cultas, uma delas encenar uma personagem, o mais certo é que a outra se ria e que quem encena acabe por se rir também, para não passar por tolo. Ou seja, o que eu sei que sou, o que eu sei que os outros sabem que sou, tem mais importância do que a personagem de que me revisto, e é a personagem que sofre. </div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
No norte não é assim: a vida faz se a passar de personagem para personagem, sabe se isso, e os desejos do eu exprimem se pela personagem, não pelo próprio eu. Ou seja, é como se no norte fôssemos continuamente a farda que envergamos, e existem várias fardas, de modo que somos sucessivamente várias personas. No sul é o contrário: somos o que pensamos que somos e «o hábito não faz o monge». Sentimo nos parvos a copiar uma personagem porque no sul sentimos fortemente a distância que vai do eu à persona, e sentimo nos ridículos no fingimento. </div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
O mesmo se passa com a regra. Uma regra que compreendamos seguimo la. Mas se ela nos parecer arbitrária sentir nos emos parvos a cumpri la e teremos medo de que os outros nos achem parvos. Em Portugal costumamos dizer que «somos anarcas», mas não é exactamente isso. Precisamos, sim, de compreender o porquê de uma regra. Um bom exemplo disso foi o recente caso de uma criança restituída aos pais biológicos. Ninguém concordou com a medida, porque não ela não se compreendia: afinal, a filha devia estar com quem amava e a amava, não com quem não conhecia. Quase ninguém deve ter pensado: «é a lei, e a lei é para se cumprir». A razão pela qual a lei é para se cumprir é que se não se cumprir entrar se á no caos porque a lei perde o seu carácter inviolável e estruturador das sociedades. Por isso uma lei, ainda que possa ter consequências injustas, deve ser cumprida.</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
Dir se á que no norte esta noção da importância do cumprimento da lei se compreendeu melhor do que no sul porque no norte se é mais culto. Não sei se isso é verdade. A maior parte das pessoas, independentemente da cultura de origem, não tem uma compreensão da fundamentação das leis e mesmo das regras de moral (Kohlberg): as pessoas não são todas filósofas ou juristas. Há, sim, personae diferentes: a persona nórdica é cumpridora, porque o que vai dela ser avaliado é o comportamento; enquanto que a persona do sul vai ser avaliada psicologicamente, isto é, vai lhe ser perguntado se não vê que a lei é tola. Assim, no norte, uma pessoa é bem vista quando o seu comportamento cumpre a lei; no sul, a pessoa é bem vista quando mostra ser inteligente e ter compreendido a situação. </div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
Ou seja, como já disse, os critérios de avaliação são diferentes: no norte é o comportamento, no sul é a própria mente das pessoas. No norte é «pecado» parecer desobediente, no sul é «pecado» parecer parvo. Por isso no norte se cumprem leis e no sul e questionam. Com leis que a maior parte das pessoas não compreende exactamente, é óbvia a vantagem das culturas do norte.</div>
<h2 class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
A segurança de si</h2>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
Ter leis e regras claras e instruções de comportamento não ambíguas e não questionadas ajuda a pessoa a sentir se segura: sabe o que pode fazer, o que não pode, o que ela e os outros devem fazer. Nesta situação, uma pessoa é como que educada para uma função. Isto ocorre precisamente nos países do norte, especialmente talvez na Alemanha. Esta ênfase no não ambíguo traduz se em termos de comportamentos. Como vimos, no norte, pretende se que o comportamento seja previsível de modo a que a acção de várias pessoas se coordene. É mais um traço da ênfase no comportamento de que falei antes.</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
No sul não se passa o mesmo. Como o domínio das relações humanas é dominado não tanto pelo comportamento quanto pelo que os outros pensam de nós (a intenção), especificamos mais facilmente princípios do que regras de comportamento. Em parte isso tem que ver com a paixão latina pela palavra e pelo significado: em vez de se definir um comportamento define se uma razão para a acção. Essa razão é explicada e comentada. Por isso somos verbosos e por isso os nórdicos levam o que se diz à letra (uma excepção notável a isto ocorre no Reino Unido). </div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
Contudo, ter explicações para os comportamentos não substitui ter instruções precisas sobre o que fazer. Mais uma vez a ênfase no comportamento tem vantagens na cooperação: sabendo se o que se deve fazer e o que os outros farão, a cooperação é fácil. Conhecendo se apenas o que uma pessoa pensa sobre um assunto, em termos mais vagos multiplicam se os mal entendidos. </div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
Tudo isso leva a uma muito maior insegurança social: nunca sabemos exactamente o que está em jogo, temos de tentar inferir, da expressão com que são não ditas as coisas, o que realmente está em causa e o que se pretende. Embora isto nos treine ainda mais na «leitura» de mentes alheias (intenções, sobretudo) fazendo nos potencialmente bons psicólogos, nunca se está completamente certo da própria posição: é a ambiguidade geral das situações sociais que impede que se saiba exactamente onde estão os limites e que dá uma grande falta de confiança às pessoas do sul; no sul, só quem faz as regras tem completa confiança porque não será atacado. </div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
Por contraste, nas culturas no norte, em que é tudo explícito, não há lugar para zonas nebulosas em que é preciso adivinhar. Isto dá uma muito maior segurança: sabe se o que se pode e o que se tem de fazer. Se cumprirmos tudo, não teremos problemas. Daqui vem a grande eficácia, a ausência de necessidade de interpretar regulamentos e vontades de pessoas que se exprimem por formas oblíquas: é o comportamento que é regulamentado, não as mentes.</div>
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Falhas no sistema do sul</h2>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
Tratarei aqui apenas dos problemas do sistema do sul. O do norte não nos interessa directamente e basta referir que o cumprir regras nem sempre é bom – pense se na História da Alemanha – e que há potencialmente menos compreensão psicológica profunda e piedade nas relações entre as pessoas. </div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif;">
<span style="font-style: normal;">Comparando o nosso sistema directamente com o alemão, verifica se que somos mais ricos no plano da expressão e compreensão de emoções, é nos mais fácil colocar nos do ponto de vista do outro e as relações humanas no geral são mais agradáveis (não é por acaso que vários livros europeus sobre Portugal afirmam que os portugueses são inabitualmente simpáticos e cordiais). Mas o sistema é vulnerável aos batoteiros. Havendo indefinição do que há a fazer e tolerância pelas falhas, é muito fácil que uma pessoa falhe, suscite a piedade dos outros, e «se safe» dessa maneira. Por outro lado, os manipuladores intelectuais têm a tarefa facilitada entre nós: desde que se cause a impressão de boa vontade, tudo lhes será facilitado – contornando as regras, porque é «para um amigo» – , ainda que os motivos dessa aparência de boa vontade sejam completamente calculistas. E claro, quando as pessoas se vêm em termos de mentes e de afectos, os nossos amigos são privilegiados (sentimos que temos obrigação moral </span><i>e</i><span style="font-style: normal;"> afectiva de os ajudar) e os nossos inimigos severamente punidos ou desfavorecidos. Cria se assim o famoso fulanismo e as consequentes redes de corrupção. </span> </div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
Por outro lado, a ênfase na expressão do eu tem o problema de criar potenciais tiranetes cheios de si, sobretudo porque não há regras que permitam dizer, fora da boa vontade, que certa pessoa está a ultrapassar os limites: quando essa pessoa tem poder não há muito a fazer contra ela, sobretudo se ela se rodear de pessoas que dependem dela. Governará o seu domínio em termos de favores concedidos e de ódios de estimação, causando um mal estar insuportável nas organizações. É este, talvez, o aspecto mais repelente da sociabilidade do sul, mas é preciso não esquecer que vem da afectividade: há também pessoas que chegam a lugares de poder e que governam pela boa vontade, formando assim grupos muito coesos e eficazes. </div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
Por isso, o nosso sistema não é bom nem mau: é específico de alguns países do sul da Europa. Portugal, a Itália, em grande parte a Espanha, vivem em variantes deste registo. No norte vive se num registo mais áspero, mais simples, com regras definidas a preto e branco e com muito pouco implícito porque não se pretende que se interprete a mente dos outros mas que se execute uma função correctamente.</div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
Não haveria nenhum problema com esta diferença se não vivêssemos numa sociedade moldada pelos valores mercantis e de competição: viveríamos mais pobremente, mas talvez com mais felicidade e provavelmente com maior riqueza nas relações quotidianas. Mas Portugal decidiu ser moderno –no sentido de ser como os nórdicos– e por isso os nossos sistemas de relacionamento são muito mais um problema do que uma virtude. Não somos eficientes, a cooperação é difícil, não produzimos. Mas queremos gastar como no norte. Há alguma solução? </div>
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Soluções?</h2>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
A solução habitual é a «teoria da mão de ferro»: os portugueses (italianos, gregos, espanhóis) só funcionam com uma ditadura. Claro que isso pressupõe que há um ditador que sabe o que é melhor para o país, o que não é evidente que aconteça. Ainda assim, apesar de toda a eventual tendência para questionar tudo e para achar ridículas as pessoas que se identificam com a máscara, toda a gente obecede. É tudo baseado no medo –Salazar dizia que preferia que as pessoas o temessem a que o amassem, porque obedeciam melhor no primeiro caso– mas a sociedade é inquestionavelmente mais eficaz. </div>
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Mas a espíritos questionantes e que procuram saber o porquê das leis, é necessário ensinar mais (e não menos, como se fez durante demasiado tempo) do que a espíritos que procuram sobretudo obedecer. </div>
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As soluções são, a meu ver, as seguintes. A primeira é tornar as situações mais explícitas, fazer que as normas sejam cumpridas. Isso, como vimos, é muito difícil porque as pessoas do sul têm de compreender as normas para as cumprir. Portanto, segunda e terceira soluções, aumentar a formação de cidadania, que entre nós não é um dado óbvio, e fazer que as leis sejam cumpridas. A formação da cidadania consiste precisamente em explicar o porquê das leis, a necessidade de as cumprir para o bem comum e a necessidade que a sociedade tem de impôr, coercivamente, punições para quem não as cumpre. E implica também explicar o porquê de certas personagens, ainda que se saiba que nós não somos a personagem. </div>
<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
Esse esforço de educação implica que se esclareçam as pessoas sobre a diferença fundamental entre a lei e a piedade. A piedade tem lugar, evidentemente – é uma das riquezas da nossa cultura. Mas tem de se fazer compreender que a piedade, mesmo que exista, não pode impedir a justiça de punir quem fez um crime, ainda que tenhamos pena do criminoso. Este aspecto, que é muito antigo (já a Duquesa de Abrantes se lhe referia), levará imenso tempo a modificar. Implicará esforços de educação grandes. </div>
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Além disso, quarta solução, será necessário que a educação se faça sobre as competências específicas que permitam a uma pessoa ter eficácia sobre o seu meio. É a melhor maneira de conseguir que as pessoas tenham confiança em si próprias, e que possam exigir os mesmo das outras (trata se da questão da «inscrição» de José Gil). </div>
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Todo este grande esforço de educação demora muito tempo: implica educar as mentalidades para a passagem de uma sociedade baseada nos afectos e na expressão do eu para uma sociedade governada por leis impessoais. Corre se o risco de diminuir a riqueza psicológica e afectiva das sociedades do sul. Mas dado que queremos competir com os países das regras claras, não temos outra solução. </div>
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Lisboa, 25 27 de Fevereiro de 2010</div>
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<div class="western" style="font-family: Georgia,"Times New Roman",serif; font-style: normal;">
Rodrigo de Sá Nogueira Saraiva</div>Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-10623397233884838572009-08-20T11:45:00.001-07:002015-05-17T05:00:26.313-07:00<h1 class="P6">
<a href="https://www.blogger.com/null" name="_Da_Liberdade_e_do_Liberalismo"><span style="margin-right: 0.381cm;"></span></a>Da Liberdade e do Liberalismo</h1>
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<a href="https://www.blogger.com/null" name="_O_grupo_e_o_Indivíduo"><span style="margin-right: 0.381cm;"></span></a>O grupo e o Indivíduo</h2>
<div class="P3">
Um problema intrínseco à nossa espécie é o conflito entre o interesse do grupo e o interesse individual. Isto acontece porque somos uma espécie que obtém recursos do ambiente através da cooperação: há quem semeie trigo, há quem faça o pão, há quem o venda; quem o compra não sabe fazer nenhuma das coisas anteriores, mas sabe, por exemplo, ensinar os filhos de quem semeia, coze e vende o pão a ler, a escrever e a contar, que são necessários às anteriores. </div>
<div class="P3">
Para que este sistema funcione, cada um deve fazer bem aquilo que lhe compete: quem semeia tem de semear bem; quem ensina tem de ensinar bem. Para isso requere‑se uma certa dose de especialização: só se é bom professor depois de estudar bastante; só se é bom padeiro depois de fazer um estágio longo. Esta especialização implica que cada pessoa faça a sua tarefa da maneira que os outros esperam que ela a faça e nos horários esperados pelos outros: para que a cooperação funcione, o produto da actividade de cada pessoa deve integrar‑se de maneira precisa com o produto das actividades dos outros. </div>
<div class="P3">
Por isso o indivíduo não pode colocar‑se dúvidas existenciais sobre si próprio ou sobre o sistema, porque essas dúvidas geralmente afastam as pessoas do seu papel social. Para que uma sociedade funcione o melhor possível (em termos de produção) o ideal seria que cada pessoa ocupasse o seu lugar sem nunca se questionar. Na verdade, se cada pessoa fosse rigorosamente programada para o seu papel, de maneira que nunca o pusesse em dúvida, a produção seria máxima.</div>
<div class="P3">
Isto tem um custo: o de que os desejos do indivíduo não podem ser completamente satisfeitos. Esses desejos são, como veremos, a expressão individual, a afirmação do eu, que se traduz em ter influência sobre o meio à nossa volta, em expressão da nossa vontade e opinião sobre o meio, em controlo, em posse, numa palavra, a individualidade corresponde à vontade daquilo a que se chama poder. Se toda a gente seguisse os desejos de expressão de si a nossa espécie não se distinguiria muito da maior parte das outras, em que a vida social é uma luta constante pelo domínio; ou, na melhor das hipóteses, haveria grupos de interesse que dominariam todos os outros, como na Máfia. É para contrariar isso que, nos estados modernos, as leis existem: para impedir que uma pessoa ou grupo submitam os outros pela força e para tentar repartir os resultados do esforço do grupo cooperativo por todos. </div>
<div class="P3">
Se os seareiros decidirem não semear, os vendedores não vender e os professores não ensinar, o sistema entra em colapso. Em consequência desse colapso cada um teria de conseguir arranjar o seu próprio alimento e não faria mais nada além disso. É a cooperação que nos salva da sorte da maior parte dos animais. </div>
<h3 class="P9">
<a href="https://www.blogger.com/null" name="_Individualismo_colectivismo"><span style="margin-right: 0.381cm;"></span></a>Individualismo/colectivismo</h3>
<div class="P3">
O problema compreende‑se melhor se o concretizarmos: o que é que queremos para nós próprios? Ser um robot que trabalha para o bem da sociedade que o sustenta ou um ser pensante que questiona essa sociedade? Posto o problema assim, quase toda a gente preferiria ser um ser pensante que expressa a sua individualidade, mas como disse acima, isso não é o que melhor promove a sociedade cooperativa. Por outro lado, o indivíduo nunca funcionará sentindo que não consegue expressar a sua individualidade; e um indivíduo anulado é pouco produtivo.</div>
<div class="P3">
Esta distinção entre os interesses do indivíduo como ser isolado e do indivíduo como elemento de um grupo cooperativo nunca foi bem solucionada na nossa espécie precisamente porque não tem solução. A ideia da sociedade sem classes falhou porque a vontade de poder (e, consequentemente, de ter) não se extingue por decreto. A ideia de um grupo dirigido por um chefe esclarecido falhou também porque é impossível que esse chefe não seja contestado por quem não se sente suficientemente retribuído. Veremos adiante que o liberalismo tenta, precisamente resolver este problema mas que falhou completamente.</div>
<h3 class="P9">
<a href="https://www.blogger.com/null" name="_A_liberdade"><span style="margin-right: 0.381cm;"></span></a>A liberdade</h3>
<div class="P3">
Talvez a contribuição filosófica mais importante do Séc. xx tenha sido a afirmação da liberdade. Se ainda no Séc. xix Gustave le Bon podia dizer, da revolução francesa, que fora motivada pela vontade de igualdade e muito pouco pela de fraternidade e liberdade, no Séc. xx a liberdade, como escolha interna de um caminho, foi formulada de maneira muito clara. Essa liberdade era sobretudo liberdade de Ser, quer dizer, escolher os nossos critérios de avaliação e, por conseguinte, o nosso caminho. Para que essa escolhe seja possível temos de nos conseguir libertar das opiniões comuns, das ideias feitas, dos preconceitos e pensarmo‑nos e à sociedade de novo. Trata‑se, portanto, de uma liberdade sobretudo mental, que implica conhecermos o que nos move como indivíduos e, segue‑se, o que nos move como espécie. É essa uma tarefa difícil para que a cultura ocidental não estava preparada e para que a nossa espécie não está programada: a nossa espécie baseia‑se na cultura, na cópia de modelos sociais que se nos apresentam e que não questionamos. Querer pensar em vez da cultura é uma tarefa hercúlea, mas a tentativa não foi infrutífera: apesar das ortodoxias impostas pelo bem‑pensantismo, houve propostas originais e reflexões importantíssimas (Sartre, Unamuno, Vergílio Ferreira, para citar apenas algumas). Os pensadores do Ser tiveram importância social na medida em que levaram a maior parte das pessoas cultas a ter hábitos de questionação e de reflexão. </div>
<div class="P3">
Como já vimos, quando os indivíduos questionam os papéis que a sociedade lhes impõe há potencial instabilidade. Foi, naturalmente, nos meios académicos que essa questionação foi mais forte: o Maio de 68 foi o resultado da tendência para tudo problematizar e tudo pôr em causa. Mesmo que se considere o Maio de 68 como uma revolta dos instintos contra as tarefas de cooperação social, os esforços do Séc. xx para pensar o ser tiveram resultados grandiosos. Procurava‑se dar resposta ao problema mais fundo de todos: o que é que significa existir, qual é o sentido da vida e como gerir esse (ou essa ausência de) sentido. Quem quer que conheça a riqueza dessas respostas tem de admitir que o programa era profundo e que algumas das ideias mais inteligentes, esclarecedoras e profundas da Europa ocorreram durante essa busca. Uma sociedade que produza pensadores capazes de fazer a pergunta «o que é que significa dizer ‘eu’» não pode ser completamente má. </div>
<div class="P3">
A essência da liberdade é, pois, a questionação da existência, do porquê das coisas, do porquê de mim mesmo: ao compreender o que faço, porque o faço, o que sou, o que é a sociedade e como me organizo na sociedade cooperativa, posso decidir o que quero fazer. Tenho de conhecer‑me bem a mim e à sociedade em que vivo para conseguir saber o que realmente quero. </div>
<div class="P3">
Assim, a liberdade é principalmente interior: saber o que quero e como o posso obter para poder escolher. Esta ideia tem a consequência de que a liberdade só se adquire através de uma educação não para o fazer mas para o <span class="T1">pensar</span><span class="T2">. O mesmo raciocínio foi feito no iluminismo, e no Séc. xix: educava‑se para a cidadania e para a complexidade (no positivismo foi dito que a educação permitia domínio do mundo, mas o positivismo recusava a </span><span class="T2">interioridade e nunca pretendeu educar ninguém para se auto‑questionar: educava‑se para o progresso). </span></div>
<div class="P4">
Dado que a liberdade é interior e individual, poder‑se‑ia esperar que ela fosse defendida pelos movimentos democráticos e individualistas (nunca poderia vir dos movimentos comunistas que pretendia anular o indivíduo ou dos movimentos fascistas que pretendiam anular o sujeito pensante para o substituir pelo sujeito de acção emocional). </div>
<div class="P3">
Contudo foi o próprio individualismo que se esperaria que defendesse o Eu, que, sob a capa das democracias liberais, se auto‑proibiu de buscar essas respostas.</div>
<h2 class="P7">
<a href="https://www.blogger.com/null" name="_Concretismo__liberalismo_e_capitalismo"><span style="margin-right: 0.381cm;"></span></a>Concretismo, liberalismo e capitalismo</h2>
<div class="P3">
O Eu e a liberdade não se vêm. São conceitos abstractos. Definir a liberdade do Eu só é possível se as pessoas tiverem noção clara do que são «por dentro», isto é, psicologicamente. Nunca conseguimos fazer uma boa teoria do <span class="T1">Homo psychologicus</span><span class="T2">. Houve Freud, mas compreendeu‑se que, se a tentativa era brilhante, os resulados eram muito questionáveis. A psicologia do «ser interior», fenomenológica, não se desenvolveu suficientemente e não há uma teoria maioritariamente aceite sobre o que somos – o antigo problema d’«A Natureza Humana». A dificuldade vem, precisamente, de que a mente não se vê – como diria Descartes, não se mede nem é (facilmente) descritível em termos de quantidades.</span></div>
<div class="P3">
Assim, para a maioria das pessoas, questões como a liberdade de pensamento (não me refiro à de expressão mas à de autoria) e de auto‑determinação do Eu são abstrusas. A maior parte das pessoas contenta‑se em satisfazer o prazer imediato tanto quanto possível dentro da lei. Vêm melhor o que ocorre fora delas e aos seus corpos do que o que se passa dentro da mente.</div>
<div class="P3">
A cultura britânica tem uma longa tradição de depreciar o que não se vê: até a pessoa é definida como um corpo («a body» queria dizer uma pessoa, até há relativamente pouco tempo; daí o «anybody», «nobody» e vários outros). Esse «sólido bom senso», essa «hard headedness» (que se traduz como «dureza de cabeça») de que os anglo‑saxónicos se orgulham gerou, através de pensadores brilhantes, o empirismo, a crença de que é o que vem do exterior que é importante (Occam, Bacon, Hobbes, Locke, Hume). Esta importância no exterior levou, nos Estados Unidos, aos extremos do behaviorismo (faz‑se o que o meio nos faz fazer, é‑se o que se faz), actualmente quase abandonado. Mas uma versão idêntica (é‑se o que se faz) predomina actualmente em todo o mundo, proveniente, de novo, de um pensador escocês e da prática americana. O pensador é Adam Smith e a sua teoria tem um impressionante mérito: o de acabar com o conflito entre o bem do indivíduo e o bem colectivo. O que Smith mostrou foi que se cada indivíduo jogar para seu benefício, todos ganham desde que entrem no sistema de oferta e de procura. O indivíduo egoísta enriquece ao vender as coisas que os outros desejam e pode comprar, com os seus ganhos, o que o seu desejo egoísta lhe ditar: se todos os outros seguirem a mesma regra, todos ganharão egoistamente através da compra e venda aos outros. Esta ideia resolve, aparentemente, a oposição entre o bem colectivo e o bem individual: ao promover o seu egoísmo, o indivíduo promove o bem‑estar colectivo; do egoísmo emerge a perfeição social. </div>
<div class="P3">
A liberdade é assim definida não em termos interiores mas em termos do que um indivíduo pode <span class="T1">fazer</span><span class="T2">. Trata‑se de liberdade de comportamento e não de liberdade de pensamento ou de decisão. Assim, eu posso não fazer a menor ideia de quem sou ou das razões por que faço as coisas mas ter liberdade para fazer o que vejo os outros fazer – no caso, vender e comprar. Esta definição «positivista» da liberdade (positivista porque se trata de uma coisa que se pode medir) corresponde às nossas liberdades </span><span class="T1">política</span><span class="T2"> e </span><span class="T1">económica</span><span class="T2">. </span></div>
<div class="P3">
<span class="T2">Teoricamente, pode ser útil aumentar a liberdade política e económica para que passe a haver maior liberdade interior. P</span>ara que o sujeito se possa realizar enquanto pensamento e liberdade intelectual é primeiro necessário que não sofra fome, nem frio nem desconforto demasiado grandes; de modo que o liberalismo resolveria os problemas materiais e permitiria que as pessoas se dedicassem privadamente ao seu desenvolvimento pessoal. Mas não foi esse o efeito. O que ocorreu foi que a liberdade se passou a definir apenas em termos do poder de aquisição e não em termos de auto‑determinação interior. O liberalismo é um positivismo e como tal rejeita quaisquer considerações não concretas, não quantificáveis, não visíveis: a liberdade de se escolher o que se é não se vê nem se mede, logo não é um factor que se considere; a liberdade de adquirir, essa, pode‑se ver e medir, logo <span class="T2">é, para o liberalismo, a própria definição de liberdade.</span></div>
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Assim, uma pessoa é considerada um aquisidor, um produtor, em suma, um mercado; deixa de se definir por uma mente e por uma visão do mundo mas apenas pela sua capacidade de produzir e de comprar. Passa a haver apenas cidadãos com poder de compra e valor de mercado: a mente, o crescimento pessoal, o sentido crítico, são coisas que não se vêm e sobre as quais o liberalismo não se pronuncia porque nem as considera. </div>
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<span class="T2">De maneira que o que o liberalismo (e as democracias parlamentares que o </span><span class="T2">defendem) abusou da polissemia da palavra «liberdade». Repetindo‑me, Liberdade significa que uma pessoa </span><span class="T1">escolhe</span><span class="T2"> o que vai fazer e porque é que o vai fazer. Para poder escolher, o indivíduo tem, primeiro, de Ser, e de conseguir definir o que é. Na versão liberal, o indivíduo tem apenas direito de comprar o que quiser e de se vender como força de trabalho. Confundiu‑se assim a verdadeira liberdade – a interior – com uma sua expressão mais simples, concreta e visível: a liberdade de comprar e de trabalhar, independentemente de pensar. Para tornar mais plausível esta noção de liberdade, há eleições em que se escolhe entre candidatos de um aparelho que ninguém conhece realmente. É uma liberdade fictícia (mas que tem a vantagem de convencer as pessoas de que o que sucede politicamente está sob o controlo delas, o que torna implausíveis revoltas). </span></div>
<div class="P3">
Que eu saiba, essa concretização da liberdade pessoal em liberdade política e económica foi expressa, na sua versão mais forte, pelo «american way of life»; a Europa importou, inicialmente com algumas reservas e, a partir dos anos 80, quase completamente, essa visão. A «sociedade de consumo», inicialmente muito contestada é agora considerada o estado natural do homem moderno. </div>
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<a href="https://www.blogger.com/null" name="_Novos_mercados__a_criatividade_do_capitalismo"><span style="margin-right: 0.381cm;"></span></a>Novos mercados: a criatividade do capitalismo</h3>
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O capitalismo tal como o conhecemos assenta na ideia de que o valor mais importante é a compra e a venda seja do que for. Há coisas essenciais e outras irrelevantes na vida das pessoas. Segundo a doutrina capitalista ambas valem o mesmo. Quando os bens essenciais já circulam entre os cidadãos, as empresas devem crescer <span class="T1">criando mercados</span><span class="T2">. Criar mercados significa muitas coisas, mas entre elas está a ideia de convencer as pessoas de que necessitam de uma coisa de que não precisam; isto é, criar mercados significa manipular a mente das pessoas para quererem o que não queriam antes. A melhor forma de manipular as consciências é bombardear as pessoas com publicidade que lhes afirma que precisam de uma coisa. Ao fim de pouco tempo cria‑se a necessidade psicológica de ter essa coisa. A criação de necessidades que o não são é admitida livremente a ponto de ser usada pela própria publicidade: «seria possível viver sem o produto </span><span class="T1">x</span><span class="T2">? Sim, mas não seria a mesma coisa». </span></div>
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Ao mesmo tempo é‑nos dado a entender que o que compramos nos revela (aos outros e a nós próprios) como pessoa de sucesso (Barthes). Sempre ocorreu que «não se possa não ter» algumas coisas completamente inúteis. Isso ocorria nos meios ricos. Mas agora ocorre em todas as camadas e em todos os produtos: automóveis que se vendem pelos «acessórios», telemóveis que fazem tudo além da sua função primária, computadores pessoais com potência com que ninguém sonhava há 30 anos e que ninguém usa a não ser para ter «um ‘look’ diferente» (mas exactamente igual ao de milhões de outros) que em nada afecta a funcionalidade. Sempre se gostou do luxo; mas o luxo passou a necessidade porque a mente que o capitalismo criou (em grande parte graças à publicidade) mede o sucesso e o bem‑estar em termos de medidas exteriores, das medidas que os economistas usam como definição de bem‑estar. O facto de se ter uma televisão com super‑definição ou um computador com «gráficos espectaculares» não faz ninguém menos infeliz. Mas as pessoas convenceram‑se de que sim porque lho disseram, indirectamente, milhões de vezes.</div>
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<span class="T2">O carácter manipulativo e invasor da nossa liberdade é particularmente visível na publicidade dirigida às crianças. Desde o momento em que a criança se tornou um consumidor (através da pressão que exercem nos pais) passou a haver publicidade dirigida a mentes em formação e que ninguém </span><span class="T2">afirma poderem ser capazes de escolha. Dantes essa publicidade via‑se no Natal; agora é contínua. </span>Esta liberdade de vender e de impingir é o contrário da liberdade mental de poder escolher por si. Ninguém pode razoavelmente esperar que uma criança educada no consumo chegue à maioridade e diga, subitamente: «Agora compreendo tudo, têm‑me manipulado mentalmente mas vai passar a ser diferente agora que tenho 18 anos». Não, uma pessoa que seja educada na lavagem ao cérebro tem o cérebro lavado, vazio. </div>
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<a href="https://www.blogger.com/null" name="_A_educação_para_a_Função"><span style="margin-right: 0.381cm;"></span></a>A educação para a Função</h3>
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Para isto concorre um outro aspecto: a educação. No passado a educação dada pelos Liceus correspondia, de certa forma, à <span class="T1">Bildung</span><span class="T2"> alemã de antes da 2ª guerra mundial: pretendia‑se formar cidadãos que conseguissem pensar por si, que conseguissem problematizar, que fossem filósofos no sentido literal do termo (amor pelo saber): pessoas que tinham uma visão do mundo e que agiam baseadas nessa visão do mundo. A educação era complexa, havendo Filosofia mesmo nos cursos de ciências, e preparava </span><span class="T2">para a universidade, que se prentendia (com sucesso ou não é outro problema) criar pessoas com uma visão de conjunto aprofundada sobre uma área de conhecimento. De há anos para cá, e por pressão tecnocrática, não se ensina os estudantes a pensar mas apenas se prepara pessoas para postos de trabalho. Os próprios estudantes é o que pedem: são muito poucos os que querem compreender o sentido das coisas. O que a maior parte quer é saber fazer determinada coisa que lhe dê um bom emprego, um emprego que lhe permita comprar à vontade. </span></div>
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Enquanto que no passado a universidade pretendia formar pensadores agora forma peças de um mecanismo: peças que não entendem o mecanismo na sua complexidade mas que asseguram bem a sua função e que, sem o saber, mantêm a máquina social. É isto que é hoje a alienação: as pessoas são treinadas para saber o suficiente para receber uma recompensa em termos de bens materiais e não sabem mais nada além disso. Não sabendo mais além disso não podem pôr o sistema em causa, que se auto‑perpetua assim. </div>
<div class="P4">
<span class="T2">Isto ocorre mesmo que as pessoas sejam extremamente infelizes e que os níveis de angústia sejam máximos. Somos uma sociedade de anti‑depressivos, ansiolíticos e psicólogos que tentam ajudar as pessoas a aguentar uma vida insuportável, baseada na concorrência com os outros e na compra de mais coisas para mostrar aos outros que se é mais importante do que eles. Sendo o único valor a concorrência, a competição, há sempre muito mais perdedores do que ganhadores. Na derrota, os perdedores acham que não têm forças para competir, porque competir, vencer ou perder, foi a única coisa que se lhes ensinou. Nunca pensam, porque não têm maneira de o pensar por falta de capacidade de enunciar esse tipo de problemas, que é o próprio sistema que as faz infelizes e que comprar não resolve a angústia. Como já se disse, seria necessário menos Prozac e mais filosofia; mas o que de facto se está a dizer é que este sistema de competição contínua leva as pessoas ao desespero e que, simplesmente, não funciona. Não funciona porque não dá às pessoas nem identidade (a não ser os sinais exteriores de riqueza) nem capacidade de problematizar seja o que for fora da sua especialidade. Não funciona porque não somos formigas que, essas sim, estão programadas geneticamente para servir a colónia. A liberdade verdadeira não é a liberdade de comprar e de copiar opiniões, mas a liberdade de pensar por si e de escolher profundamente o que se quer.</span> </div>
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Em muito maior grau do que Freud o afirmava, a nossa sociedade produz neuróticos, com a agravante de que esses neuróticos não são capazes de perceber a razão de ser do seu neuroticismo. <span class="T2">A pessoa já não é uma entidade psicológica e social, mas sim um mero instrumento de fazer coisas que são pagas; o único prazer que lhe é permitido é mostrar aos outros que é melhor, o que, se tiver sucesso, deprime os outros; e se fracassar deprime o próprio. </span></div>
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São tempos horríveis (uso a palavra com plena consciência do seu significado), os que vivemos, então: cada pessoa é um operário, independentemente do seu nível de formação. Um operário <span class="T2">é um robot mandado por outros, </span>é um mecanismo que só sabe fazer o que aprendeu e que não compreende porque é que o faz. Quantos de nós poderão dizer actualmente que receberam uma educação que lhe permite a compreensão do mundo? Quantos de nós saberão realmente dar uma opinião informada sobre coisas fora do seu domínio de especialidade? (Não falo de quem diz que sabe – gurus, especialistas instantâneos, peritos que tantas vezes falam do que não sabem mas que o fazem com grande segurança). Colocar a questão é responder‑lhe: não sabemos o que fazemos, para que o fazemos, não compreendemos o nosso lugar no mundo e nem sequer compreendemos o mundo. Somos como formigas que levam, cegamente, a comida para um formigueiro que nem sabem que existe. As formigas são felizes ao fazê‑lo; nós não. </div>
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<a href="https://www.blogger.com/null" name="_É_possível_mudar?"><span style="margin-right: 0.381cm;"></span></a>É possível mudar?</h2>
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Dado que a situação é de ignorância, de falta de capacidade de compreender, a única possibilidade é que quem pensa compreender, ainda que vagamente, o que se passa, o diga e o afirme. Naturalmente que as pessoas que melhor o poderiam dizer, porque têm a imprensa aos seus pés, são os políticos; mas eles nunca o dirão dizer porque um político tem de ser eleito e não é popular dizer às pessoas que elas estão massificadas. Mais, a mensagem é difícil de passar a seja quem for, porque corresponde a dizer às pessoas que elas são tolas e que a vida delas é inútil. Quase ninguém dá por isso porque o capitalismo tem a terrível eficácia de dar às pessoas angustiadas brinquedos alienantes que as impedem de pensar ou questionar as razões da sua angústia. <span class="T2">O capitalismo é, pois, como um vírus que inibe o sistema imune: uma vez infectada, a vítima perde a capacidade de defesa. </span>Por isso é tão difícil discuti‑lo: todos fomos, em maior ou menos grau, programados a agir mais do que a pensar, a fazer mais do que a problematizar, a recusar a interioridade em favor da eficácia. </div>
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Outra dificuldade – esta menor – em transmitir o que aqui defendo é que a mensagem não se identifica claramente com as partições políticas geralmente aceites. A ideia pode ser expressa por uma pessoa de esquerda ou por uma pessoa de direita. A esquerda não totalitária será sensível à necessidade de auto‑determinação pessoal, a direita será sensível à necessidade de cultivar valores que dêm sentido à vida pessoal. Reclamar a liberdade de pensamento não é um direito da esquerda ou da direita; é um direito de qualquer indivíduo, um direito que deveria constar de qualquer constituição. </div>
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Como dizer às pessoas que é melhor ganhar menos e ter menos coisas e ser mais livre? Quem nunca aprendeu a pensar nunca sentirá a necessidade de liberdade de pensamento: quer apenas ter, porque foi essa a maneira de se exprimir que aprendeu. É esta a magnitude da dificuldade. É difícil mas pelo menos deve‑se tentar. A primeira coisa a fazer seria discutir a questão da liberdade mental nas sociedades capitalistas. Foi o que eu tentei fazer aqui. </div>
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Lisboa, Abril‑Maio e Julho de 2009,</div>
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Rodrigo de Sá‑Nogueira Saraiva</div>
Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com7tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-11084592556453035132009-02-19T09:13:00.001-08:002009-02-19T09:13:45.556-08:00Ars Vivendi: Ler o Jornal1<br /><br />Um fragmento de Georges Daninos (sobre a nostalgia da inocência de uma vida toda programada: Monsieur Massenavette), a Aparição do sentir o eu, de Vergílio Ferreira e a Madame Bovary, de Flaubert, são os três inspiradores deste texto (incongruentes? Mas um trágico é sempre um cómico e vice‑versa; e creio que Flaubert se riu e enterneceu ao mesmo tempo com as Bovarys que conheceu). M. Massenavette é um pasteleiro de uma cidade de província e Daninos inveja a vida dele por um segundo: uma vida calma, assente em princípios que não são postos em causa e todo entregue à sua profissão. Na Aparição discute‑se a descoberta do eu, o milagre do ser contra o não ser. Na Bovary trata‑se da necessidade de sentir e de viver intensamente.<br />§<br />Quando eu era pequeno tinha a ideia de que os crescidos se levavam a sério e habitavam totalmente a personagem que eu via. O protótipo disto era a leitura do jornal: via‑os ler o jornal, muito seriamente, mas não entendia como era possível uma pessoa interessar‑se por coisas tão desinteressantes (porque separadas do desejo auto‑centrado) como a política ou os faits‑divers. <br />De tanto ver as personagens, em pequenos, acabamos por acreditar nelas. É mais tarde, quando tentamos nós próprios entrar para as personagens (usando o exemplo, quando tentamos achar o jornal interessante) que as coisas se alteram, porque sentimos a incapacidade de sair do nosso eu simples e auto‑centrado que só se interessa pelos seus próprios caprichos e vontades. No jornal lê‑se sobre coisas que não somos nós, pelo menos no sentido de não serem coisas que nos afectam directamente. É preciso uma pessoa sentir‑se parte de uma sociedade, de um conjunto de normas, para compreender em que é que as notícias políticas ou económicas a afectam. Uma criança nunca será capaz disso, porque vive integralmente no plano dos desejos primários: aquilo a que o Freud chamaria o princípio do prazer.<br />A pessoa que lê o jornal com prazer sente‑se, como M. Massenavette, parte de uma comunidade, conhece o seu papel, toma partido e assume o papel que a comunidade lhe deu. No limite, vive no papel, sem nunca sonhar com problemas existenciais ou sequer psicológicos. Os Mm. Massenavettes são a matéria‑prima de que se fazem as sociedades estáveis: são a carne e o espírito que dão corpo às estruturas sociais. Cumprem, fazem cumprir e não existem como seres questionadores. Não compreendem a Aparição e nunca cederiam às tentações de Emma Bovary: a sua personagem social nunca o permitiria. A Bovary, pelo contrário, não tolera a obediência às normas do seu estatuto. Em parte porque é ambiciosa, em parte porque não as compreende mas as despreza, em parte –e talvez sobretudo– porque precisa de sentir. E como sentir para um espírito simples é apenas sentir os prazeres primários, procura o sexo. Mas, como a criança de Freud, vive no princípio do prazer. De resto, é um M. Massenavette que a Bovary rejeita: o seu marido, contente com a sua sorte.<br />Emma Bovary tipifica aquilo a que chamo não acreditar na personagem por baixo. Não conseguimos compreender os atractivos da personagem –não conseguimos chegar a ler o jornal, e apenas podemos fingir que o fazemos– porque o que realmente tem significado para nós são os nossos desejos imediatos, aquilo que nos cerca: não conseguimos interessar‑nos pela discussão de uma lei que não nos diga respeito, não conseguimos interessar‑nos pela ideia de «país». Somos todos no nosso querer e desejar e não no que se passa fora de nós e sem relação directa connosco.<br />Mesmo quando finalmente conseguimos interessar‑nos pelo que se passa longe de nós –quando finalmente temos interesse na leitura do jornal– há sempre grandes tentações de cair no egocentrismo infantil. Se pudermos conseguir ser o centro do mundo e ter o que desejamos sentimo‑nos de novo como crianças e sentimos o prazer inteiro do desejo gratificado. Daí que, na adolescência e, para muita gente, durante toda a vida, consideremos os que jogam realmente as regras e que se interessam principalmente pelo que vem no jornal uns tansos, uns ingénuos. Afinal, a regra que aplaudimos quando lemos o jornal pode ser a honestidade, mas eu vou lá resistir a ficar com o dinheiro todo ou a ir para a cama com a bela mulher de um amigo! Há, portanto, muitas pessoas que já lêem o jornal, mas sobretudo sobre o seu clube, sobre o seu carro, o seu computador, e têm sempre um olho para o que podem arranjar como gratificação primária. Digamos que lêem o jornal porque fica mal ler (ver?) o Playboy. E por isso há tantas «Revistas do Automóvel», «A Bola» e «Maria». <br />Há uma forma particular de mascarar o rejeitar por baixo em rejeitar por cima que é muito frequente. Isto é, conhece‑se a personagem mas não se gosta dela. As razões são superficiais: rejeita‑se apenas por achar que viver «daquela maneira» é vieux jeux ou «foleiro», sem realmente compreender o que se rejeita. Finge‑se então um desdém «superior» pela posição que não se compreende porque se é primário e auto‑centrado. Na minha memória estão todos os pedantes de todos os círculos «bem‑pensantes» e muitas raparigas bonitas que se recusavam ao banal – como a Bovary. A recusa era puramente infantil: queriam apenas a gratificação imediata, mas, imitando quem realmente se pergunta porquê ler o jornal, diziam que o não liam porque o desprezavam. E dizendo‑se acima das regras tentavam (e conseguiam e conseguem, pelo menos durante algum tempo) que as outras pessoas os deixem seguir apenas a necessidade primária de prazer imediato, em nome de um «ideal» mais profundo. Ou seja, dizendo‑se acima das regras, essas pessoas conseguem viver por baixo delas com o consentimento dos outros.<br />Claro que uma rejeição profunda da personagem é muito diferente e mais rara – na verdade é raríssima e provavelmente nunca é integral. Estar realmente acima da personagem implica compreendê‑la, compreender o eu e compreender que, qualquer que seja a personagem, o eu é mais do que ela. Isto significa compreender que o que eu faço ou sinto não é tudo aquilo que sou, e que o eu mais verdadeiramente Eu é o que observa o que faço e sinto. Nesse sentido, o eu é a tal aparição de que o Vergílio Ferreira fala, o milagre de ser um eu. O eu‑desejo, sensação de ser e prazer de fazer não é afinal eu próprio; eu sou quem pensa esse eu, quem o vê e quem o comenta. É, afinal, o aparecimento do eu racional, do eu cartesiano, que pode tentar compreender o outro eu, o dos impulsos, entusiasmos e deveres.<br />Não se trata de dois eus diferentes, mas apenas de duas localizações diferentes da nossa atenção: a primeira é mais emocional e directa; a segunda existe num plano mais neutro, de não acção e de observação das possibilidades e das razões da acção.<br />Ainda que quase ninguém enuncie esta diferença entre eu‑acção/ emoção e eu‑observação dos meus sentimentos e acções, as pessoas têm potencialmente consciência da diferença porque essa consciência está implícita na linguagem: «eu sinto‑me alegre», «eu fiz uma asneira». Nestes casos a linguagem afirma os dois eus: o que observa é o que fala e refere‑se ao eu que sente e fez. Na maior parte das pessoas este eu «comentador» limita‑se a observar o que o eu acção faz. Nesse sentido pode criticar‑se: «mas que estupidez», diz o eu comentador, «o que eu fiz!», sendo este segundo eu o eu agente. Mas essa crítica segue critérios que foram importados de outras pessoas, do que se ouviu: ou, retomando a metáfora, critérios aprendidos no jornal. Não são critérios que tenham sido realmente pensados pela pessoa. <br />Em parêntesis, é interessante notar que tanto M. Massenavette como Emma Bovary nunca desenvolvem realmente a capacidade de se questionar autonomamente. É certo que M. Massenavette se vê como membro da sociedade, visto e questionado por ela, enquanto que a Emma Bovary se centra sobretudo no seu prazer de mulher. Mas nenhum deles consegue criar novas regras ou justificar realmente o seu comportamento: «porque os outros fazem assim» e «porque eu quero» são as únicas explicações que eles poderiam dar de fazerem o que fazem. E fecho o parêntesis.<br />Quando as sociedades são estáveis, produzem‑se os Mm. Massenavettes, que se entregam de alma e coração à sua personagem e tiram dela verdadeiro prazer: afinal vêm‑se fazer o único papel que aprenderam. Podem subsistir angústias, mas geralmente os reforços sociais são suficientes para manter a pessoa bem disposta. Quando as sociedades são instáveis, produzem‑se os camaleões sociais que vão copiando modelos aceites, mesmo quando são internamente contraditórios. São pessoas que copiam, que não são autoras da sua identidade e nem sequer questionadoras: são o que a sociedade lhes propõe e se o modelo é fragmentado e sem sentido, não são elas que o vão notar. Os Mm. Massenavettes, como as actuais pessoas em semi‑crise existencial porque é bem ser‑se profundo, são equivalentes e ambas lêem o jornal com prazer: apenas os jornais do tempo dos Mm. Massenavette eram mais coerentes do que os de agora.<br />Em todos estes casos a posição do eu que observa existe – na verdade é responsável pela exigência de ler o jornal, qualquer que ele seja. Mas a posição não é autónoma, mas controlada pela programação que nos vem de fora, seja ela conservadora ou post‑moderna.<br />§<br />Em algumas circunstâncias –o sofrimento psicológico e subsequente dúvida sobre si próprio, por exemplo– esse eu questionador ganha autonomia. A pessoa encontra‑se mais tempo no estado de pensar nos seus próprios porquês. É nesse estado que podemos perguntar porque é que lemos o jornal, porque é que defendemos a família, porque é que somos de esquerda.<br />A descoberta do eu –a aparição do ser, como diria Vergílio Ferreira– é menos uma experiência existencial do que cognitiva. Como disse, a linguagem dá a todos a experiência de enunciar o eu racional (o «eu vou fazer» implica a existência desse espectador). Mas esse eu espectador não procura razões e, como nos casos anteriores, apenas se enuncia quando comenta o que o eu vital ou codificado pelos outros sente ou quer. É apenas quando aparece a capacidade de questionar (porque é que eu gosto de ler o jornal?) que surge o problema do significado, o problema da existência. No fundo a «aparição» é apenas perguntar porquê, é a passagem do eu agente ou emotivo para o eu pensador.<br />Como Vergílio Ferreira parece ter compreendido, essa experiência não é, em si, traumática a não ser que seja acompanhada da descrença num conjunto de valores – seguindo a metáfora, descrença da existência de qualquer jornal digno de se ler. Deus é a explicação natural desse conjunto de valores, mas não é a única: em vez de Deus pode ser a crença numa ordem natural, no progresso e no papel que cada um de nós representa nesse progresso ou, na verdade, qualquer outra convicção. Tem apenas de ser uma crença numa coisa maior do que o próprio eu, exterior ao sentir infantil do eu que deseja e se zanga. Voltando à metáfora, a pessoa interroga‑se se o jornal tem os critérios que deveria ter. Questionar um critério não é apenas dizer que não como as Bovarys e os oportunistas na moda. Questionar realmente significa fazer o esforço de compreender o que esse critério realmente significa e não ficar convencido por esse significado; questionar realmente implica tentar outros critérios ou, no mínimo dos mínimos, tentar modificações ao critério. Para questionar critérios é necessário que a própria pessoa tenha ela própria critérios pessoais. Para o fazer tem de ser eu pensante, eu racional: tem de apresentar um sistema de valores autónomo. É esse sistema de valores que o sujeito cria que se torna maior do que ele e que lhe dá sentido da vida. É, pois, um substituto racional de Deus: uma entidade maior e exterior a nós próprios que determina como as coisas se devem fazer. <br />A verdadeira crise existencial não ocorre, pois, com a emergência do ponto de vista reflexivo e crítico do eu. A crise ocorre quando não se acredita na existência dessa entidade maior e se compreende que essa entidade é apenas uma projecção da nossa mente – mente que é, afinal, tudo o que existe. Nesse caso fica‑se apenas com o eu original, o eu da criança e do adolescente mimado que quer, que sente e que deseja. M. Massenavette parece‑nos longínquo, impossível, improvável e invejável no seu conforto assente em verdades eternas e nunca questionadas. A crise acontece quando se compreende a solidão profunda e essencial de existir: eu existo apenas na minha mente e nas minhas representações, e o resto apenas me afecta na medida em que eu reagir e me sentir atingido. As crenças dos outros podem não me atingir; mas atingir‑me‑á sempre o desejo, a dor, a fome. Sou então como a Emma Bovary? Não, porque sei que mesmo os meus desejos são irrelevantes a não ser para o meu corpo e nunca darão sentido ao desespero fundamental de não compreender o sentido de existir. Como a minha própria existência é apenas um acidente, um dia vai desaparecer o meu eu e com ele todo o mundo, porque o mundo é apenas o que eu represento. E isso não coloca nenhum problema, porque com a morte desaparecem todos os desejos; na ausência absoluta de eu é impossível sentir, de modo que a morte não pode assustar – é apenas um estado de não ser, que não se sente. A morte –o não ser– é desejável, porque se pára o ciclo infernal de compreender e não fazer sentido e compreender‑se que não faz sentido.<br />O eu pensante compreende, então, que se é verdade que ele próprio não tem verdades, ele é, contudo, a única verdade. E quem vive predominantemente na posição de eu pensante não tem a escolha de se dedicar apenas ao eu‑acção e emoção. Já que se vive no mundo como observadores, tentemos que o que observamos faça sentido e que tenha interesse: afinal, temos uma vida para viver. Ao compreender isto, tudo quanto nos é exterior –nomeadamente qualquer entidade maior, qualquer moralidade– deixam de existir. A razão, afinal, não tem verdades. É esta tomada de consciência da superfluidade da razão que é a verdadeira experiência traumática, mais ainda que a negação de Deus ou de qualquer ordem: é a negação da importância do próprio ser pensante e do próprio acto de pensar. É, portanto, a constatação da completa irrelevância do ser, de se ser. <br />Não há saída para o problema: se quisermos impor, em qualquer caso, uma ordem, saberemos sempre que ela é arbitrária e nunca seremos convictos na acção; se quisermos ser vitais, como, digamos, um touro, nunca o conseguiremos, porque nos é impossível: estaremos sempre a ver‑nos ser touro e não a sentir‑nos touro, porque a decisão de ser touro vem da razão e não do instinto de ser, do eu primário. O problema é, como o Freud o compreendeu (Neurose e Civilização), insolúvel.<br />A única saída –pelo menos aparente– é o hedonismo completo, fazer aquilo que me dá menos problemas e mais prazer. Não é o que vem no jornal, mas não esqueçamos que o Playboy é também um jornal: lêem‑no os idiotas que se vergam ao deus desejo como quem se vergou a outra norma qualquer. Prazer, hedonismo, neste texto significam apenas procurar aquilo que torna a duração da nossa vida suportável. O que cada um acha que é melhor para si depende da pessoa. Mas é raro que seja apenas o deboche, porque se paga sempre por isso. Geralmente, se se for inteligente, ter‑se‑á uma vida pacata e com hobbies –mesmo que secretos e considerados condenáveis– bem escolhidos para nos manter entretidos. E, quanto aos outros, é usá‑los para o nosso prazer. Mas isso nem sequer sei se é possível a uma pessoa normal. <br />A Ars Vivendi está precisamente em saber atingir um equilíbrio entre dois pontos de vista do eu: os pontos de vista agente e pensante. Trata‑se, pois, de atingir a sofrosine, o equilíbrio a que os gregos aspiravam (certamente sem sucesso – basta pensar em Sócrates). Para chegar a esse equilíbrio é preciso compreender bem o nosso eu primário, mas também os preconceitos do nosso eu racional. E temos de saber, connosco, ser como um bom educador: tolerante e respeitador das especificidades e interesses do aluno, mas ao mesmo tempo suficientemente firme para conseguir impedir que o aluno –o eu primário– tome conta da nossa vida. É preciso aprender a dar‑lhe expressão, a dar‑lhe o recreio de que ele necessita mas sem excesso. Isso faz‑se identificando aquilo de que realmente ele (o aluno, o eu primário) gosta –não aquilo de que o eu pensante ou os outros queriam que ele gostasse– e dando‑lho nas quantidades necessárias para o manter tranquilo e satisfeito ao mesmo tempo que o eu professor (o eu pensante) mantém o controlo.<br />No fundo, a Ars Vivendi é ser um bom professor ou um bom pai de si próprio: o que decide para o aluno ou filho que jornal se deve ler e por quanto tempo.Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-40325019572795231602008-10-17T09:18:00.000-07:002008-10-17T09:25:10.020-07:00About 'Historically Informed Performance'This text needs a short presentation. I wrote it in a conversation I had with a friend: he was defending Harnoncourt's approach, and I said Harnoncourt's claim to historicity was just a way of promoting himself, as he did not really know a lot about ancient music. The discussion turned into Leonhardt's claim that he does not interpret music, he just plays it as it was played. The following is my answer.<br /><br />If we take the organ as an example, something that has always struck me is that when I listen or play an organ before restoration it sounds as if asthmatic. The wind is very problematic. It is unsteady, the instrument often sounds out of tune even when it is not, very dense polyphony with the full organ means horrible wobbling of the sound and every time you use a stop above the 4 foot you will get trembling, as if a very old man is trying to sing. In truth, it is unacceptable by most people.<br /><br />The fluework is seldom even in speech: some pipes ‘chiff’, others sometimes ‘ping’, and yet others just buzz a little before the note.<br />The reeds are very often uneven. In some organs I simply refuse to use them, because a melody sounds ridiculous when some notes are shouted and others whispered independently of ‘good’ (beat, beginning of phrase) or ‘bad’ notes (off beat).<br />The keyboards are often hard to play. Not because they are uneven (they are, that is natural in old instruments) but because they were built in a way that makes it impossible to play with a great deal of control: sometimes everything is suspended and the keyboard actually sways and trembles if you strike it with any amount of force. The keys, when made of bone, are difficult to play because one cannot very well slide the fingertips; often it is impossible to put one’s fingers between two sharps. The result is hard playing, somewhat chopped. You are expected to get used to the keyboard, but even if you do, it will have serious effects on how you play.<br /><br />My reaction was, at the beginning: were the builders, organist and so on, of the time unable to hear?? Later I came to the conclusion that they did not mind. They were used to things not working properly. We find ourselves in more or less the situation of someone used to drive a new 21st century car, having to suddenly switch to a 1950 car. It feels weak, brutal and powerless at the same time, in fact, an incompetently planned car. Yet, many people found it faultless when it came out. Using the parallel and un-mixing the metaphor, the 50ies car and the old baroque organ seem faulty to us, used to different and better made products; but they were, back then, the cutting edge of perfection.<br /><br />When restoring, organ builders react just like me: they don’t like the sound. They say that is because the bellows are weak. Then they say possibly the toe holes (the admission holes through which the wind enters the tube) were narrowed, or that the upper lips have been cut. In a very old pipe there are always changes made a long time ago, so it is impossible to know when they were done (unless a great deal of very expensive work is done) so the restorers are free to say what they like and modify the sound according to their taste. The only thing they cannot really change is the keyboard, but it is polished and made to work fine.<br /><br />After restoration the organ is almost always smoother, the wind is steadier, the mechanics a little more robust and overall playing up to modern standards is easier. The organist is pleased, the concert and church goers are pleased, the curate is pleased, and only the more stubborn people that have actually played the organ claim that it is no longer the same instrument and that a lot of character has been lost.<br /><br />Using the metaphor again, the problem, as I see it, is that we are the product of 20th Century precision. No one would have a Morris minor if he or she could afford a Ford Fiesta: it is so much easier to drive and so much more confortable. And after all one uses a car to go from here to there. And one uses an organ or a trumpet to play this or that.<br /><br />In a limited way, I made the experiment myself. For the last year I kept my harpsichord tuned to mean tone. Many – indeed most – of Bach’s fugues and even many suite movements are unplayable in such a tuning (temperament). E major, c # minor and many others are painful, horrible. So I restricted myself to 16th and 17th Century music.<br />The problem is that I sometimes like to play Bach. I cannot really forget that I like it. And the beauty of the pure thirds (that is what Tones’ trumpeter friend mentioned) cannot really substitute for it.<br />So recently I tuned it in modern temperament. It is horrible for someone used to the pure thirds, but it is playable. And the beauty of some of Bach’s fugues makes up for the lack of the mellow harmony of mean tone temperament played in c major, d minor or major, g minor and the tension of e minor and f minor (if one can withstand the harshness). In short: I cannot forget that I like Bach; neither can I forget that I like French harpsichords, even if they were made in the late 18th Century and I am playing 16th Century music with them.<br /><br />So playing according to really well researched criteria is a non-compromising, difficult, and frustrating affair. We may want to know how it was done, but we cannot really express ourselves through the media available. Compromises must be reached and, while historically informed one must always see one's interpretations as renderings, translations, as it were, to modern listeners (above all, ourselves).<br /><br />Consequently, I believe that HIP performance belongs in the Museum. As I said, it would be important to have more HI available to actual musicians, but sadly once their formative years are over, most of them cease to study. Perhaps that is necessary: they are, after all, seeking to express themselves and are not academics. Thus a HIP leader like Leonhardt makes quite a lot of historical blunders (the ‘Mietkes’, over dotting, even keyboard changes in Froberger’s Tombeau, and so on). He is convincing because he developed into a great musician, but that would happen whether his harpsichords were right or wrong. They are wrong. So were Walcha’s. Both are brilliant musicians. And, for that matter, so was Wilhelm Kempff when playing Bach in the piano (which paradoxically restricts the emotions one can actually portray when playing harpsichord music while opening a wide range of other expressive possibilities even staying within the spirit of the music – just listen to Kempff's Nun komm).<br /><br />I really think forgetting HIP is necessary to actually play well: one is playing how one feels the music; one cannot pretend to feel it according to the brains of people from three or four hundred years ago. Bach probably thought witches were to be burned or drowned, Jews to be evil, God to be all powerful, the devil really alive and acting. How could we possibly mimic that after being taught to be modern Europeans? All that and much more (locks that worked improperly, boots that leaked, beer that was sometimes almost undrinkable, lice in the bed, foul smell, young children that were likely to die, teeth that fell and were irreplaceable and so on) is certain to have affected the way he saw the world: it was not perfect, it was crude, harsh and brutal. How could we even begin to immagine how it felt to be alive and able to play in the 17th or 18th Centuries, let alone how they played back then?<br /><br />That brings me to an even more serious question: we do not listen to the same notes, either: how can we really appreciate a dissonance in Bach after knowing Mahler? How spurious HIP seems in all this context!<br /><br />Playing is ALWAYS a matter of interpretation. When I consider, say the WTC, by Walcha, Gilbert, Leonhardt, Koopman, Kempff, Gould or Goulda I use the only true criterium I can honestly defend: my taste, that of a historically more or less informed european born after the war and educated in the respect of science, culture and life. In this light it matters very little that the harpsichord is wrong or even if the piano is used. Some interpretations are obviously flawed (Gould, Goulda, even Koopman) but that is because they actually go against the overall structure of the music (how do I know this? I posted at length about it. If you want I will redirect). But apart from that, the importance of historical considerations in details is very small.Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5836646099093153849.post-40523933850536253312008-08-07T14:07:00.000-07:002008-08-07T14:09:02.697-07:00Two recordings of The Art of Fugue: Delmé and Collegium AureumTwo recordings of The Art of Fugue: Delmé and Collegium Aureum<br /><br />I often think that The Art of Fugue sounds best when played by a string quartet: the sound is beautiful, expressive, there is the possibility of fashioning every voice at will.<br />And yet, most of the recordings I know are not very thrilling. Even if we put the Emerson and Julliard Quartets aside – as their playing is evidently inspired by the theory that ‘staccato makes polyphony clearer’ which I am absolutely convinced is wrong, the Keller is good but not nearly as convincing as the organ versions (Walcha is sublime in this repertoire) or almost all the good harpsichord versions (Moroney, Gilbert, Guillot, Dirksen to name a few – I do not mention Leonhardt because I think – I know this will come as heretical – he is too expressive and that the result is overdone).<br /><br />I suspect string quartet versions fail because most string quartets are too specialized in classical and romantic repertoires and cannot do justice to the regular voice flow of a full blown fugue; it almost seems the musicians are not really convinced by the beauty of what they are playing. And yet, Munchinger managed, instead of his romanticism, to be quite convincing. A mystery unsolved for me.<br /><br />In the recent months I have been listening to two versions by string quartets. One of them is hardly by a string quartet: the rather old (but very well recorded) Collegium Aureum version. The other, the Delmé Quartet version.<br />--------------------<br />I will begin will the later, Delmé’s. I can only say that either I don’t understand it or that the transposition by a fourth (it is transposed up to g minor for reasons of feasibility) robs the piece of something.<br /><br />The playing itself is rather good, and every musician integrates well into the ensemble. But there is a kind of lack of gravity which stems both from the transposition and the extreme flow of playing that I think does not accord with the piece. Also, the quartet seems to have been recorded from too far, therefore achieving a stupendous blend of sound but not the possibility of close listening to every voice.<br /><br />Being totally blunt, this version is too ‘classical’, almost Mozartean, and I would go as far as to say that the result sounds flippant to me.<br /><br />I would not bring the following up if I did not find, even before reading the performing notes, that there was an element of flippancy. But Robert Simpson greatly irritated me by stating that he hopes his version will give the string quartets ‘short pieces with which to open concerts’: whatever one may think of The Art of Fugue it certainly is no musical canapé to wheat the appetite for something more solid.<br /><br />So, for me, the Delmé version has almost everything to be a good candidate for a gift to someone I do not really like. I will keep it just because if features Tovey’s ending to the last counterpoint which I did not know before. It seems well written, although the ending is a trifle too flourished to my taste and seems a bit Technicolor in the concentrated and introvert world of The Art of Fugue.<br /><br />-----------------------<br />The Collegium Aureum version is completely different. To start with, it is not quite a ‘quartet version’ because there are interventions of the double bass (violone). The voice leaders are the violin, the viola, the tenor viola and the cello (doubled by the double bass in certain movements). This distribution gives extreme clarity to every voice (the tenor viola is superb) and there is no preponderance of the treble (as with Goebel’s rather odd version): every voice is clear, you can perfectly well follow each thread of the music and yet it fully integrates into a beautiful harmony.<br /><br />I quite like the extreme intensity of playing. The Collegium Aureum has always been unfavorably compared to the Concentus Musicus but I personally always thought it was a much better musical ensemble. I have read that the Collegium Aureum was ‘uninspiring’, ‘flat’ (not out of tune, just boring) and lots of such niceties. But you will definitely not find this recording boring. The playing is passionate – every musician seems deeply committed to what he is playing, and there is evenpowerful crescendi in certain fugue ends; each instrument vibrates powerfully and creates a very intense overall effect (To my readers that do not know me well, please bear in mind that I am definitely not against the kind of emotion that 1950-60 musicians used to put into their music making. If anything, I am partial to it: that is why I like Lautenbacher and even Karl Richter.)<br /><br />The negative point is that the harpsichords used in the four voiced versions of the three-part mirror fugues and – this is the real alas! – the canons, are rather ugly. <br /><br />I liked this version immensely. I would like similar versions of the Well Tempered Clavier were frequent.<br />--------------------<br /><br />For formal balance, let me conclude by a reference of the discussion with which I began this text: I fully confirm that I do not like ‘String Quartet’ versions, but that has, I think, nothing to do with the sonority or the possibilities of a string quartet. It has do to with the fact that usual string quartets are really not used to The Art of Fugue and that it seems that the work is really not in their hearts.Rodrigo de Sá-Nogueira Saraivahttp://www.blogger.com/profile/16977609528835170905noreply@blogger.com0