quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Ser e ter e os coletes amarelos


A oposição entre ser e ter teve bastante voga, mas não pegou. As pessoas agora são o que têm e é essa a mensagem quer do mercado livre quer dos sindicatos. São ideologias materialistas que equacionam a felicidade com a obtenção dos desejos.

Nessa ideologia, os objectivos de uma pessoa esgotam-se no possuir.

Pensando fora dessa ideologia, tem de se conceder que o possuir faz sentido, na medida em que um eu precisa sempre de um suporte material que não se esgota no corpo: o eu estende-se sobre o mundo à volta dele, como na aranha a teia faz parte do mundo próprio. De modo que é sempre necessário ter o suficiente para se ser, e o necessário não são apenas a comida e o abrigo: cada pessoa tem de construir o casulo em que vai existir e através do qual se vai relacionar com o ambiente e com os outros e assim ser. 

Mas a actual definição do eu como «tenho» parece-me anormal. Essa é a definição do conquistador de terras. Mas mesmo no conquistador, as conquistas são apenas a prova da sua capacidade de conquista, a prova do que ele é, a prova de «eu sou um conquistador e eis as minhas conquistas». Mesmo o conquistador tem para poder sentir que é. Tal como o novo rico exibe casas enormes, carros potentes e roupas e telemóveis caríssimos. Todo esse arsenal é a prova de que ele é capaz, de que conquistou, de que ele é. Essa prova funciona para ele e para os outros: para que ele saiba e para que os outros saibam que ele é.

E, de facto, o ser é sempre o resultado do reconhecimento de um avaliador de nós próprios. Os avaliadores podem ser eu próprio ou os outros (William James). Mas mesmo quando o avaliador de mim sou eu, os critérios com que avalio não são nunca integralmente meus, são apenas interiorizações de critérios que recolhi do mundo social em que nasci. Esses critérios de avaliação moral são sempre comparativos: há um ideal e as pessoas são avaliadas por referência a ele.

E por isso o ser exige que haja uma comunidade que nos avalie e aprecie, comunidade essa de que eu tenho de me sentir fazer parte e de que partilho os critérios de avaliação. Ou seja, só se é na medida em que se vive numa comunidade com a qual nos identificamos.

No mundo atomista, impessoal, individualista em que vivemos, vive-se anonimamente e não se é avaliado por ninguém excepto pela nossa capacidade de ter, porque é o que os outros, que não nos conhecem, podem ver e reconhecer.

Nos assalariados a condição ainda é pior, porque se é avaliado apenas como peça necessária ao lucro e se é recompensado em capacidade de comprar e ter.

Nas comunidades antigas, pré-tecnológicas, cada pessoa era conhecida por si própria: pelo grau em que se cumpria os critérios mas também pela sua personalidade, pelas suas manias, pelos seus gostos. Era-se alguém, bom ou mau, virtuoso ou pecador, e tinha-se identidade (a Gemeinschaft de Tonies).

Mas o mundo é agora enorme, vivemos vidas solitárias, em que se procura a independência individual total em que o único critério de avaliação é o ter.

E por isso um protesto de solidão, de falta de reconhecimento da própria existência, da ausência de identidade social apenas se pode exprimir em termos de reivindicações de ter – aumentos de salário, de pensões, de coisas que permitem possuir.

Não sei se o que aqui digo se aplica completamente ao caso dos coletes amarelos, mas suponho que pelo menos uma parte da explicação é esta.

Santo Estêvão, 13 de Dezembro de 2018