terça-feira, 24 de abril de 2007

Walcha

ConsideRações em torno do Bach de Helmut Walcha

AO mesmo tempo que escrevo isto, ouço as Partitas do Walcha. Não há qualquer comparação com as versões recentes. Há uma tensão, uma intensidade, uma concentração, que não se encontram em nenhuma das versões mais modernas.

Isto significa que vivemos tempos estupidamente fáceis, em que nos embalamos na tranquilidade de saber que «tudo vai correr bem». Os pequenos dramas da nossa vida não são verdadeiramente graves. Quando o Walcha gravou as Partitas, como no sec. XIV ou nos sécs. XVI e XVII, as questões eram todas de vida ou de morte. A morte estava presente em todos os momentos. Ou porque uma guerra estúpida e sem sentido tinha causado a morte de milhões de pessoas e a destruição de grande parte da Alemanha; ou, em épocas anteriores, porque a doença e a morte que se lhe seguia estavam sempre presentes, as pessoas tinham uma sensação de, ao mesmo tempo, seriedade e desespero. Agora, nos tempos modernos, do post­ guerra fria, sentimo­ nos todos confortáveis e sem quaisquer problemas. Tudo é simples. Basta tentar com força que se consegue. E, se não se conseguir, alguma coisa há­ de surgir. Os valores tornaram­ se completamente hedónicos e deixou de se ter o pudor da facilidade e do prazer. Trata­ se de uma modificação enorme nas nossas vidas.

Não se pode negar que, em certo sentido, isso corresponde a uma fase de afluência em que as pessoas, em geral, são mais felizes, no sentido rigoroso do negativo de infelizes. Mas – e essa é a pergunta que sempre me faço – até que ponto isso é bom?

Para a arte é mau. A arte – de resto, toda a complexidade da vida pessoal – têm origem na dificuldade e no sofrimento. Só se cresce quando se sofre. Isso é uma coisa de que tenho absoluta certeza.

Quando se sofre olha­ se para dentro. Dentro de nós podemos não encontrar nada, como os hipocondríacos, que sofrem por somatização porque não conseguiram encontrar dentro de si nenhuma maneira de exprimir o sofrimento. Mas também podemos encontrar maneira de falar de nós próprios, de exprimir o nosso sofrimento, aquilo que nos põe em causa, aquilo que somos e que não queríamos ser, aquilo que não conseguimos e que queríamos com toda a nossa força. É nesse sentido que as sociedades da abundância, como a nossa, são más do ponto de vista da riqueza psicológica e da consequente incapacidade de articulação artística. Quem nada é nada consegue exprimir. E é isso que o pós­ mo­der­nis­mo traduz: o nada. A mera referência irónica; a total ausência de coisas verdadeiras e pessoais para dizer. São tempos de burguesia, de inconsciência, mas também de nulidade do ser individual.

É por isso que as épocas verdadeiramente difíceis da história – a peste negra, as guerras religiosas dos secs. XVI e XVII, a época da 2a Guerra mundial – são tão ricas em arte. O resto não é nada. Só aparecem obras de arte verdadeiras quando um indivíduo em particular sofre – Mahler, Bruckner. E, quanto a Mahler, ele tinha tempo para ironizar sobre si próprio, o que Bruckner, totalmente indiferente ao seu tempo e à frivolidade, não podia fazer. Não é não conseguia. É que realmente não podia. Ninguém que sofra verdadeiramente consegue brincar com o seu sofrimento: leva­ o a sério. É por isso que nada de interessante se faz agora.

Não há guerras que afectem o Ocidente, não há epidemias. Como diria o Naphta do Thomas Mann, não há medo. E o medo é o motor da criação. Quer da alegria sem limites –porque num momento pode­ se sentir toda a alegria do mundo, que esconjura o medo– quer das complexidades mais intensas da alma –porque nesses momentos é toda a dificuldade de ser que vem à superfície, como nas peças de durezze ed legature do Frescobaldi– quer todas as manifestações místicas que pedem a uma força superior a transcendência do momento em que se vive.

Tudo o resto é mero divertimento. Apenas contentamento superficial. Só o gozar do momento. Sim, encontram­ se coisas divertidas – como eu odeio esta palavra – ou sen­timentais e ligeiramente tristes. Mas as grandes emoções, as emoções intensas, a comunhão com o transcendente, perderam­ se, porque deixaram de ser necessárias. E toda a intensidade espiritual da pessoa se esvai. Vive­ se e morre­ se sem mais do que um sentimento de que «vai­ se andando». Não há verdadeiros triunfos, nem verdadeiras derrotas. Deixou de se lutar. A conquista, a derrota, a grandiosidade foram­ se. Tudo se passa num momento.

É­ se mais feliz assim? não. É­ se meramente idiota: é­ se contentinho sem qualquer sentido; tristezinho durante um momento.

A verdadeira força vem da derrota. É preciso ser­ se derrotado primeiro e arranjar a força depois. Essa força compromete a ternura? Não, porque a ternura é dos sentimentos mais poderosos que há. Compromete o divertimento? Sim, porque deixa de ter qualquer sentido. Compromete a alegria? Não, potencia­ a porque é rara. Faz­ nos sofrer? Claro. Mas é do abismo do sofrimento que se contempla o divino e o transcendente, o amor puro, a paixão completa, a vitória sem limites, a própria tranquilidade. De outra maneira apenas temos água chilra, tudo é morno e sem sabor.



Vivemos num mundo tépido e insosso. É por isso que se gosta de coisas simples. No gótico –a peste negra– no sec. XVI e XVII –as guerras religiosas– nos anos 30­ 50 –a morte, o mal– em todas essas épocas viveu­ se. Era difícil. Concerteza. Mas quem vivia era sublime. É essa a guerra entre o ser e o não ser. Agora não somos.