segunda-feira, 9 de julho de 2018

Este texto escrevi-o há muito tempo. Mas ocorreu-me publicá-lo agora, pensando nos meus avós. 



Estátuas de bronze, moldes de barro, originais de cera

Uma das coisas que me impressionam quando considero as pessoas que conheci e que nasceram numa época de certezas – a honra, a palavra dada, a dignidade, a lealdade, o casamento, a família, tudo coisas que hoje em dia não se sabe bem o que significam – é a sua impressionante força.
Tratava­-se de pessoas que, pelos seus ideais, pelos moldes em que foram criados, pareciam de bronze. Podia­-se sempre contar com padrões éticos absolutamente justos de acordo com a cultura do tempo delas; tinha­-se a sua aprovação ou desaprovação – absolutamente imparciais – conforme se agia de acordo com essas regras ou não. Tratava­-se de pessoas fortes, honradas, absolutamente honestas. 
 
E, contudo, a minha geração, ainda que admire estas pessoas, não consegue ser como elas. Ocorre­-me uma analogia. Disse acima que estas pessoas me parecem de bronze, como as estátuas que ainda hoje podemos ver nos bons museus da antiguidade clássica. Elas sentiam­-se de bronze, inatacáveis, fortes e seguras. Mesmo tendo o mundo contra eles mantinham­-se quem eram.

E nós? Passou a 2ª Guerra mundial e a geração dos meus pais foi perdendo a fé. Depois tivemos a propaganda revolucionária que tentou demonstrar que a moral burguesa era hipócrita. O resultado foi que a minha geração cresceu na dúvida completa: o que são os valores? Durante toda a minha juventude os vi bem criticados e mal defendidos. Na medida em que a esquerda impôs os valores de solidariedade e justiça social (pelo menos no papel: a prática foi sempre diferente) os valores anteriores foram substituídos. Mas tínhamos assimilado demasiado bem a ideia de que o molde era de barro. 

Misturemos a metáfora e o seu referente: qualquer pessoa com espírito crítico pensava que se os moldes burgueses são de barro, quaisquer moldes são de barro. Porquê a solidariedade? Porquê a justiça social?

Seguindo a metáfora, a minha geração compreendeu que, se a estátua é de bronze, o molde da estátua é de barro. É dentro desse barro que se deita o bronze que vai fazer a estátua. E o barro é barro, poeira amassada como se quer. Assim perdemos as certezas.

Com a queda da esquerda, as coisas pioraram, porque o ideal da igualdade foi destruído pelo capitalismo. E aí, com a consciência surda de que os moldes eram todos de barro, as pessoas entregaram­-se ao mais profundo egoísmo – é esse o princípio do neo­-liberalismo até há tão pouco defendido por todos os intelectuais da moda.

O problema é que o egoísmo não é solução porque é fundamentalmente gerador de infelicidade. Somos pessoas sociais, o nosso país tem uma fortíssima influência católica que nos faz ver os outros como pessoas e não apenas como concorrentes.

De resto, para as pessoas normais, é preciso uma regra, um modelo, para governar as nossas vidas; temos de estabelecer princípios para que haja um mínimo de ordem intelectual e coerência naquilo que fazemos. Mas os moldes são de barro: se os princípios não têm justificação como nos podemos orientar por eles?

Deixem­-me continuar a metáfora. Como se fazem – ou pelo menos como se fizeram durante muito tempo – os moldes de barro? Fazia­-se primeiro uma matriz, o modelo da estátua que queríamos produzir em bronze. Esse molde era feito num material plástico, que se podia moldar, modificar, acrescentar, reduzir: a cera. Trata­-se do método conhecido por «cera perdida»: faz­-se o modelo, cobre­-se com o molde de barro, aquece­-se o mo­delo e a cera liquefaz­-se e sai; fica-se com o modelo em barro e depois podemos introduzir nele o bronze líquido – o tal bronze de que eram feitos os nossos avós.

É isso que nos sentimos agora: produtos de modelos de cera; não, não podemos nem conseguimos acreditar que somos de bronze. Sabemos que, na origem, somos apenas cera, maleável, insubstancial, plástica e amorfa.

Apercebemo­-nos desta situação quando perdemos, quando o nosso cônjuge com quem pensávamos vir a envelhecer nos deixa, quando perdemos o emprego, quando o nosso filho que adoramos se volta contra nós e parece odiar­-nos. Havendo valores estáveis era possível recomeçar, perceber, explicar. E agora? Que regras há para explicar? Que o mundo é cruel? Que o mundo não tem sentido? Que a vida é dura e que depois se morre? Tudo isto será verdade, mas não dá consolo, não ajuda, deixa­-nos completamente sós num mundo hostil. Ficamos nus e ao frio, numa paisagem desolada e sem saber para onde ir. Estamos nus no mundo, sem defesa, sem rumo, sem nada.
 
Há quem brinque com isso. O post­-modernismo pode ser trágico – quando as pessoas realmente compreenderam a tragédia que é não ter quaisquer referenciais – ou lúdico, quando pessoas oportunistas ou ingénuas descobrem que podem ser o que quiserem. Já se afirmou com alegria a nulidade do ser e o triunfo do niilismo. Nos meios intelectuais americanos, franceses ou lisboetas há quem se ufane de que «a verdade não existe». Claro que a verdade não existe, porque qualquer juízo humano é uma imposição de uma ontologia (que é uma ficção) a um mundo que nem sabemos o que é.

Mas existe o Eu, no mínimo, a consciência de ser. Não se pode ser sem se impôr ordem, sem se classificar, sem se compreender. Na nossa espécie tudo tem de ter um sentido.

Agora tomámos consciência de que esse sentido não existe. Isso é bom? Não, é uma profunda tragédia, ou pelo menos é assim que a maior parte das pessoas, quando em crise, toma disso consciência.
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A verdade é que, como eu já escrevi, a moral – o molde – é uma invenção humana pura e simples. Sim, podemos estar biologicamente preparados para a aceitar, como certos dados indicam. Mas nem por isso, aos olhos crus e secos do racionalismo, deixa de ser uma fantasia. Sim, beneficiamos todos em seguir as regras e em acreditar nelas.

Mas o problema é este: o mundo é uma coisa que se transforma no tempo, sem direcção e sem sentido. Obedece à sua própria estrutura, que é apenas a estrutura de si próprio. Não há aí lugar para qualquer intenção, para qualquer significado, para qualquer teleologia.

Peço a atenção dos meus leitores para este ponto: é simples mas é contra­ intuitivo. Se, em vez de antecedente, falarmos de causa, de dever ou de culpa; e se, em vez de consequente, falarmos em bem e mal, estamos a impor um postulado ontológico sobre o mundo. O mundo não é moral nem deixa de o ser, não tem causas nem consequências: é uma mera sequência de efeitos físico­-químicos.

São os nossos cérebros e as nossas mentes, condicionados pelos nossos genes e pelos traços da cultura que fomos geneticamente programados a aceitar acriticamente, que vêm o mundo como ético ou como tendo de ter sentido.

O grande problema vem de se compreender isso. Aí compreendemos que somos de cera. E, por mais princípios que procuremos, não temos saída: são aqueles que nós quisermos e mesmo esses não têm nenhum valor.

É então que nos sentimos nus e sozinhos perante um mundo sem sentido e indiferente ao nosso sofrimento e angústia. Não há nada a que nos possamos agarrar de maior do que nós: somos apenas nós, solitários e nus na nossa angústia.
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Há pelo menos quatro saídas para quem se confronta com o que eu disse. A primeira é desistir. A segunda é inventar um sentido sabendo­-se que é falso. A terceira é fingir que não se compreendeu. A quarta é cultivar o hedonismo.

— Quanto à primeira solução, há a dizer apenas isto: há pessoas que gostam de viver e outras que não gostam. Algumas dessas têm a coragem de desistir. Feliz ou infelizmente quase todos nós, mesmo nos momentos de mais negro desespero, estamos demasiado agarrados à vida e temos demasiado medo da irreversibilidade da morte.

— Tentar ignorar. Diz­-se que Sócrates terá declarado preferir ser um Sócrates – entenda­-se, um homem inteligente mas infeliz – do que um cão feliz – entenda­-se, um homem inconsciente das razões porque faz as coisas.
Se esta frase é de facto de Sócrates, ele mostra­-se aqui bem mais próximo do cão do que do filósofo inteligente. É que, uma vez descoberto o jogo, não há saída possível. Sócrates teria dito «preferir». Mas o problema é que, quando se descobre o mecanismo, já não se tem escolha nem qualquer possibilidade de «preferir» seja o que for. Está­-se condenado à danação eterna da falta de significado e da ausência de princípios que dêm norte à nossa vida.

— Inventar um sentido que se sabe ser falso é, igualmente, impossível. As coisas que sabemos serem falsas não têm o poder de nos influenciar ou de nos motivar. Esta afirmação foi demonstrada no quadro dos estudos de atitudes (não se consegue modificar a auto­-estima física de uma pessoa que ouve uma descrição física dela em que ela não acredita; mas se essa descrição parecer real dá­-se a modificação na auto-estima). De modo que o mito post-moderno de que «se inventam significados» pura e simplesmente não funciona.

­— O Hedonismo. A não ser que sejamos psicopatas ou seres egocentricamente primários, todos já sentimos culpa ao seguirmos estratégias egoístas. É verdade que a sociedade capitalista, ferozmente competitiva, tenta incutir­-nos a ideia – o tal molde de barro – de que temos de nos preocupar primeiro e quase só connosco. Há pessoas que são tão plásticas que o aceitam sem problemas de consciência. Mas fazer mal ao nosso semelhante, apesar de tudo, vai contra a matriz judaico­-cristã da nossa civilização; e fazer mal a um amigo parece ser intrinsecamente culpabilizante: pode ser uma instrução inata. Não são todas as pessoas que se conseguem tornar no modelo do calculista frio que usa os outros. Para nosso bem ou nosso mal, todos queremos gostar de alguém e que as pessoas de quem gostamos gostem de nós.

O hedonismo só grosseiramente se pode equacionar com praticar sexo, tomar drogas e comer muito. Tudo isso corresponde apenas a papéis, a caricaturas que a cultura nos apresenta como exemplos a não seguir. O estereótipo do homem que, enganado pela mulher, se entrega a uma vida de deboche é exactamente isso: um estereótipo e um modelo social. Não é seguindo modelos sociais que ultrapassaremos crises.

Cultivar o prazer significa apenas gostar de viver. Para gostarmos de viver, temos de saber o que queremos (por oposição àquilo que a sociedade pensou por nós). Para isso temos de nos conhecer, temos de nos emancipar dos papeis que a sociedade nos propõe. Temos de saber auscultar o nosso sentir e de perceber que consequências têm para nós as coisas. E, racionalmente, cultivar o que nos interessa e nos agrada.

É esta aprendizagem da individualidade, de uma solidão entre os outros, de estarmos nus connosco próprios, que é a chave para vencer crises.
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Resta saber se preparamos psicólogos e psiquiatras capazes de ajudar as pessoas a aprender a sua individualidade e a auscultar­-se e definir­-se. Mas esse é outro problema, para outra comunicação.
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O que aqui disse não é optimismo nem pessimismo. Penso que é realismo. 


Segundo texto, que dá resposta a este, e já aqui publicado

Ars Vivendi: Ler o Jornal1


Um fragmento de Pierre Daninos (sobre a nostalgia da inocência de uma vida toda programada: Monsieur Massenavette), a Aparição do sentir o eu, de Vergílio Ferreira e a Madame Bovary, de Flaubert, são os três inspiradores deste texto (incongruentes? Mas um trágico é sempre um cómico e vice­ versa; e creio que Flaubert se riu e enterneceu ao mesmo tempo com as Bovarys que conheceu). M. Massenavette é um pasteleiro de uma cidade de província e Daninos inveja a vida dele por um segundo: uma vida calma, assente em princípios que não são postos em causa e todo entregue à sua profissão. Na Aparição discute­ se a descoberta do eu, o milagre do ser contra o não ser. Na Bovary trata­ se da necessidade de sentir e de viver intensamente.

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Quando eu era pequeno tinha a ideia de que os crescidos se levavam a sério e habitavam totalmente a personagem que eu via. O protótipo disto era a leitura do jornal: via­ os ler o jornal, muito seriamente, mas não entendia como era possível uma pessoa interessar­ se por coisas tão desinteressantes (porque separadas do desejo auto­ centrado) como a política ou os faits­ divers.

De tanto ver as personagens, em pequenos, acabamos por acreditar nelas. É mais tarde, quando tentamos nós próprios entrar para as personagens (usando o exemplo, quando tentamos achar o jornal interessante) que as coisas se alteram, porque sentimos a incapacidade de sair do nosso eu simples e auto­ centrado que só se interessa pelos seus próprios caprichos e vontades. No jornal lê­ se sobre coisas que não somos nós, pelo menos no sentido de não serem coisas que nos afectam directamente. É preciso uma pessoa sentir­ se parte de uma sociedade, de um conjunto de normas, para compreender em que é que as notícias políticas ou económicas a afectam. Uma criança nunca será capaz disso, porque vive integralmente no plano dos desejos primários: aquilo a que o Freud chamaria o princípio do prazer.

A pessoa que lê o jornal com prazer sente­ se, como M. Massenavette, parte de uma comunidade, conhece o seu papel, toma partido e assume o papel que a comunidade lhe deu. No limite, vive no papel, sem nunca sonhar com problemas existenciais ou sequer psicológicos. Os Mm. Massenavettes são a matéria­ prima de que se fazem as sociedades estáveis: são a carne e o espírito que dão corpo às estruturas sociais. Cumprem, fazem cumprir e não existem como seres questionadores. Não compreendem a Aparição e nunca cederiam às tentações de Emma Bovary: a sua personagem social nunca o permitiria. A Bovary, pelo contrário, não tolera a obediência às normas do seu estatuto. Em parte porque é ambiciosa, em parte porque não as compreende mas as despreza, em parte –e talvez sobretudo– porque precisa de sentir. E como sentir para um espírito simples é apenas sentir os prazeres primários, procura o sexo. Mas, como a criança de Freud, vive no princípio do prazer. De resto, é um M. Massenavette que a Bovary rejeita: o seu marido, contente com a sua sorte.

Emma Bovary tipifica aquilo a que chamo não acreditar na personagem por baixo. Não conseguimos compreender os atractivos da personagem –não conseguimos chegar a ler o jornal, e apenas podemos fingir que o fazemos– porque o que realmente tem significado para nós são os nossos desejos imediatos, aquilo que nos cerca: não conseguimos interessar­ nos pela discussão de uma lei que não nos diga respeito, não conseguimos interessar­ nos pela ideia de «país». Somos todos no nosso querer e desejar e não no que se passa fora de nós e sem relação directa connosco.

Mesmo quando finalmente conseguimos interessar­ nos pelo que se passa longe de nós –quando finalmente temos interesse na leitura do jornal– há sempre grandes tentações de cair no egocentrismo infantil. Se pudermos conseguir ser o centro do mundo e ter o que desejamos sentimo­ nos de novo como crianças e sentimos o prazer inteiro do desejo gratificado. Daí que, na adolescência e, para muita gente, durante toda a vida, consideremos os que jogam realmente as regras e que se interessam principalmente pelo que vem no jornal uns tansos, uns ingénuos. Afinal, a regra que aplaudimos quando lemos o jornal pode ser a honestidade, mas eu vou lá resistir a ficar com o dinheiro todo ou a ir para a cama com a bela mulher de um amigo! Há, portanto, muitas pessoas que já lêem o jornal, mas sobretudo sobre o seu clube, sobre o seu carro, o seu computador, e têm sempre um olho para o que podem arranjar como gratificação primária. Digamos que lêem o jornal porque fica mal ler (ver?) o Playboy. E por isso há tantas «Revistas do Automóvel», «A Bola» e «Maria».

Há uma forma particular de mascarar o rejeitar por baixo em rejeitar por cima que é muito frequente. Isto é, conhece­ se a personagem mas não se gosta dela. As razões são superficiais: rejeita­ se apenas por achar que viver «daquela maneira» é vieux jeux ou «foleiro», sem realmente compreender o que se rejeita. Finge­ se então um desdém «superior» pela posição que não se compreende porque se é primário e auto­ centrado. Na minha memória estão todos os pedantes de todos os círculos «bem­ pensantes» e muitas raparigas bonitas que se recusavam ao banal – como a Bovary. A recusa era puramente infantil: queriam apenas a gratificação imediata, mas, imitando quem realmente se pergunta porquê ler o jornal, diziam que o não liam porque o desprezavam. E dizendo­ se acima das regras tentavam (e conseguiam e conseguem, pelo menos durante algum tem­po) que as outras pessoas os deixem seguir apenas a necessidade primária de prazer imediato, em nome de um «ideal» mais profundo. Ou seja, dizendo­ se acima das regras, essas pessoas conseguem viver por baixo delas com o consentimento dos outros.

Claro que uma rejeição profunda da personagem é muito diferente e mais rara – na verdade é raríssima e provavelmente nunca é integral. Estar realmente acima da personagem implica compreendê­ la, compreender o eu e compreender que, qualquer que seja a personagem, o eu é mais do que ela. Isto significa compreender que o que eu faço ou sinto não é tudo aquilo que sou, e que o eu mais verdadeiramente Eu é o que observa o que faço e sinto. Nesse sentido, o eu é a tal aparição de que Vergílio Ferreira fala, o milagre de ser um eu. O eu­ desejo, sensação de ser e prazer de fazer não é afinal eu próprio; eu sou quem pensa esse eu, quem o vê e quem o comenta. É, afinal, o aparecimento do eu racional, do eu cartesiano, que pode tentar compreender o outro eu, o dos impulsos, entu­siasmos e deveres.

Não se trata de dois eus diferentes, mas apenas de duas localizações diferentes da nossa atenção: a primeira é mais emocional e directa; a segunda existe num plano mais neutro, de não acção e de observação das possibilidades e das razões da acção.

Ainda que quase ninguém enuncie esta diferença entre eu­ ac­ção/ emo­ção e eu­ observação dos meus sentimentos e acções, as pessoas têm potencialmente consciência da diferença porque essa consciência está implícita na linguagem: «eu sinto­ me alegre», «eu fiz uma asneira». Nestes casos a linguagem afirma os dois eus: o que observa é o que fala e refere­ se ao eu que sente e fez. Na maior parte das pessoas este eu «comentador» limita­ se a observar o que o eu acção faz. Nesse sentido pode criticar­ se: «mas que estupidez», diz o eu comentador, «o que eu fiz!», sendo este segundo eu o eu agente. Mas essa crítica segue critérios que foram importados de outras pessoas, do que se ouviu: ou, retomando a metáfora, critérios aprendidos no jornal. Não são critérios que tenham sido realmente pensados pela pessoa.

Em parêntesis, é interessante notar que tanto M. Massenavette como Emma Bovary nunca desenvolvem realmente a capacidade de se questionar autonomamente. É certo que M. Massenavette se vê como membro da sociedade, visto e questionado por ela, enquanto que Emma Bovary se centra sobretudo no seu prazer de mulher. Mas nenhum deles consegue criar novas regras ou justificar realmente o seu comportamento: «porque os outros fazem assim» e «porque eu quero» são as únicas explicações que eles poderiam dar de fazerem o que fazem. E fecho o parêntesis.

Quando as sociedades são estáveis, produzem­ se os Mm. Massenavettes, que se entregam de alma e coração à sua personagem e tiram dela verdadeiro prazer: afinal vêm­ se fazer o único papel que aprenderam. Podem subsistir angústias, mas geralmente os reforços sociais são suficientes para manter a pessoa bem disposta. Quando as sociedades são instáveis, produzem­ se os camaleões sociais que vão copiando modelos aceites, mesmo quando são internamente contraditórios. São pessoas que copiam, que não são autoras da sua identidade e nem sequer questionadoras: são o que a sociedade lhes propõe e se o modelo é fragmentado e sem sentido, não são elas que o vão notar. Os Mm. Massenavettes, como as actuais pessoas em semi­ crise existencial porque é bem ser­ se profundo, são equivalentes e ambas lêem o jornal com prazer: apenas os jornais do tempo dos Mm. Massenavette eram mais coerentes do que os de agora.

Em todos estes casos a posição do eu que observa existe – na verdade é responsável pela exigência de ler o jornal, qualquer que ele seja. Mas a posição não é autónoma, mas controlada pela programação que nos vem de fora, seja ela conservadora ou post­ moderna.

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Em algumas circunstâncias –o sofrimento psicológico e subsequente dúvida sobre si próprio, por exemplo– esse eu questionador ganha autonomia. A pessoa encontra­ se mais tempo no estado de pensar nos seus próprios porquês. É nesse estado que podemos perguntar porque é que lemos o jornal, porque é que defendemos a família, porque é que somos de esquerda.

A descoberta do eu –a aparição do ser, como diria Vergílio Ferreira– é menos uma experiência existencial do que cognitiva. Como disse, a linguagem dá a todos a experiência de enunciar o eu racional (o «eu vou fazer» implica a existência desse espectador). Mas esse eu espectador não procura razões e, como nos casos anteriores, apenas se enuncia quando comenta o que o eu vital ou codificado pelos outros sente ou quer. É apenas quando aparece a capacidade de questionar (porque é que eu gosto de ler o jornal?) que surge o problema do significado, o problema da existência. No fundo a «aparição» é apenas perguntar porquê, é a passagem do eu agente ou emotivo para o eu pen­sador.

Como Vergílio Ferreira parece ter compreendido, essa experiência não é, em si, traumática a não ser que seja acompanhada da descrença num conjunto de valores – seguindo a metáfora, descrença da existência de qualquer jornal digno de se ler. Deus é a explicação natural desse conjunto de valores, mas não é a única: em vez de Deus pode ser a crença numa ordem natural, no progresso e no papel que cada um de nós representa nesse progresso ou, na verdade, qualquer outra convicção. Tem apenas de ser uma crença numa coisa maior do que o próprio eu, exterior ao sentir infantil do eu que deseja e se zanga. Voltando à metáfora, a pessoa interroga­ se se o jornal tem os critérios que deveria ter. Questionar um critério não é apenas dizer que não como as Bovarys e os oportunistas na moda. Questionar realmente significa fazer o esforço de compreender o que esse critério significa e não ficar convencido por esse significado; questionar realmente implica tentar outros critérios ou, no mínimo dos mínimos, tentar modificações ao critério. Para questionar critérios é necessário que a própria pessoa tenha ela própria critérios pessoais. Para o fazer tem de ser eu pensante, eu racional: tem de apresentar um sistema de valores autónomo. É esse sistema de valores que o sujeito cria que se torna maior do que ele e que lhe dá sentido da vida. É, pois, um substituto racional de Deus: uma entidade maior e exterior a nós próprios que determina como as coisas se devem fazer.

A verdadeira crise existencial não ocorre, pois, com a emergência do ponto de vista reflexivo e crítico do eu. A crise ocorre quando não se acredita na existência dessa entidade maior e se compreende que essa entidade é apenas uma projecção da nossa mente – mente que é, afinal, tudo o que existe. Nesse caso fica­ se apenas com o eu original, o eu da criança e do adolescente mimado que quer, que sente e que deseja. M. Massenavette parece­ nos longínquo, impossível, improvável e invejável no seu conforto assente em verdades eternas e nunca questionadas. A crise acontece quando se compreende a solidão profunda e essencial de existir: eu existo apenas na minha mente e nas minhas representações, e o resto apenas me afecta na medida em que eu reagir e me sentir atingido. As crenças dos outros podem não me atingir; mas atingir­ me­ á sempre o desejo, a dor, a fome. Sou então como a Emma Bovary? Não, porque sei que mesmo os meus desejos são irrelevantes a não ser para o meu corpo e nunca darão sentido ao desespero fundamental de não compreender o sentido de existir. Como a minha própria existência é apenas um acidente, um dia vai desaparecer o meu eu e com ele todo o mundo, porque o mundo é apenas o que eu represento. E isso não coloca nenhum problema, porque com a morte desaparecem todos os desejos; na ausência absoluta de eu é impossível sentir, de modo que a morte não pode assustar – é apenas um estado de não ser, que não se sente. A morte –o não ser– é desejável, porque se pára o ciclo infernal de compreender e não fazer sentido e compreender­ se que não faz sentido.

O eu pensante compreende, então, que se é verdade que ele próprio não tem verdades, ele é, contudo, a única verdade. E quem vive predominantemente na posição de eu pensante não tem a escolha de se dedicar apenas ao eu­ acção e emoção. Já que se vive no mundo como observadores, tentemos que o que observamos faça sentido e que tenha interesse: afinal, temos uma vida para viver. Ao compreender isto, tudo quanto nos é exterior –nomeadamente qualquer entidade maior, qualquer moralidade– deixam de existir. A razão, afinal, não tem verdades. É esta toma­da de consciência da superfluidade da razão que é a verdadeira experiência traumática, mais ainda que a negação de Deus ou de qualquer ordem: é a negação da importância do próprio ser pensante e do próprio acto de pensar. É, portanto, a constatação da completa irrelevância do ser, de se ser.

Não há saída para o problema: se quisermos impor, em qualquer caso, uma ordem, saberemos sempre que ela é arbitrária e nunca seremos convictos na acção; se quisermos ser vitais, como, digamos, um touro, nunca o conseguiremos, porque nos é impossível: estaremos sempre a ver­ nos ser touro e não a sentir­ nos touro, porque a decisão de ser touro vem da razão e não do instinto de ser, do eu primário. O problema é, como o Freud o compreendeu (Neurose e Civilização), in­solúvel.

A única saída –pelo menos aparente– é o hedonismo completo, fazer aquilo que me dá menos problemas e mais prazer. Não é o que vem no jornal, mas não esqueçamos que o Playboy é também um jornal: lêem­ no os idiotas que se vergam ao deus desejo como quem se vergou a outra norma qualquer. Prazer, hedonismo, neste texto significam apenas procurar aquilo que torna a duração da nossa vida suportável. O que cada um acha que é melhor para si depende da pessoa. Mas é raro que seja apenas o deboche, porque se paga sempre por isso. Geralmente, se se for inteligente, ter­ se­ á uma vida pacata e com hobbies –mesmo que secretos e considerados condenáveis– bem escolhidos para nos manter entretidos. E, quanto aos outros, é usá­ los para o nosso prazer. Mas isso nem sequer sei se é possível a uma pessoa normal.

A Ars Vivendi está precisamente em saber atingir um equilíbrio entre dois pontos de vista do eu: os pontos de vista agente e pensante. Trata­ se, pois, de atingir a sofrosine, o equilíbrio a que os gregos aspiravam (certamente sem sucesso – basta pensar em Sócrates). Para chegar a esse equilíbrio é preciso compreender bem o nosso eu primário, mas também os preconceitos do nosso eu racional. E temos de saber, connosco, ser como um bom educador: tolerante e respeitador das especificidades e interesses do aluno, mas ao mesmo tempo suficientemente firme para conseguir impedir que o aluno –o eu primário– tome conta da nossa vida. É preciso aprender a dar­ lhe expressão, a dar­ lhe o recreio de que ele necessita mas sem excesso. Isso faz­ se identificando aquilo de que realmente ele (o aluno, o eu primário) gosta –não aquilo de que o eu pensante ou os outros queriam que ele gostasse– e dando­ lho nas quantidades necessárias para o manter tranquilo e satisfeito ao mesmo tempo que o eu professor (o eu pensante) mantém o controlo.

No fundo, a Ars Vivendi é ser um bom professor ou um bom pai de si próprio: o que decide para o aluno ou filho que jornal se deve ler e por quanto tempo.



1 Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva

 

 
 
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