segunda-feira, 2 de abril de 2012




Leitura da Bovary, 2012


Conheço muitas Bovarys. O mundo, sem vida interior autónoma que forneça a sua própria estimulação resulta sempre na procura das fontes de prazer fora de si. Quando não somos capazes de fornecer a nossa própria estimulação temos sempre de a procurar fora de nós. E queremos mais e mais, sem conseguirmos encontrar nada que nos satisfaça duradouramente.

Num romance, num filme, é­ nos apresentada uma figura que faz e sente o que nós não fazemos e nunca sentimos. Queremos então ser como essa figura. Parecer essa figura, sentir o que achámos que essa figura sentiu. As nossas vidas são maçadoras, sem cor, e procuramos estimulação fora de nós.

Copiar um modelo para sentir o que nunca sentimos mas entrevemos é uma espécie de receita de sensação: fazemos como x para sentir o que x sentiu no romance ou no filme. Assim, o bovarysmo ocorre com todos nós: dependendo da nossa capacidade de imaginação e da clareza do exemplo, copiamos um modelo para ser algo que não somos e assim sentir uma identidade que, sozinhos, não seríamos capazes de forjar. É, ao mesmo tempo, uma fuga de nós e uma completude de nós: sentimos que nos falta qualquer coisa e procuramo­ la no modelo que entrevimos que a tem.

A imitação do modelo pode ser feita quer para nós quer para os outros; como o que somos depende do que os outros acham de nós, os dois aspectos estão relacionados, mas há quem dependa mais dos seus próprios critérios de avaliação da comparação com o modelo, e quem dependa mais da avaliação que os outros fazem da comparação com esse modelo. Na Madame Bovary trata­ se do primeiro caso.

Nesse sentido, a vida é efectivamente um palco (mesmo que os actores e o público sejamos nós) e somos apenas títeres comandados pela nossa vontade de ser como o modelo que copiámos sem o ter criado. Não creio que seja verdade o que o Goffman diz, que somos apenas isso, porque tem de haver quem julgue a conformidade ao modelo, e esse juiz, por menos consciência que se tenha de si, somos nós.

Os animais são, nós queremos ser. Talvez isso seja o que nos torna uma «espécie em devir», como dizia o Lorenz, mas ao mesmo tempo é o que nos torna falsos, impuros no sentir, insinceros, actores perante nós e os outros.

Mesmo as emoções que se pensam mais puras – o amor entre duas pessoas – são sempre modelados num exemplo qualquer. Dois apaixonados pensam que sentem o mesmo e tentam transmitir ao outro o que sentem, para se sentirem compreendidos. Mas o outro interpreta outra coisa, que pensa ser o que o outro sente: e ambos pensam que partilham do mesmo espírito enquanto se enganam sobre como o outro sente esse espírito. Esse engano é mantido pela força da atracção física e mental que se sente durante a paixão; é depis dela que se percebe que a fusão nunca existiu senão na nossa mente. Mas não transmitimos o que sentimos: apenas tentamos, desesperadamente, fazer­ nos compreender e para isso recorremos à linguagem comum com o outro, que é sempre uma linguagem partilhada porque recorre a um modelo comum. Mesmo na paixão somos insinceros, embora sinceramente, e nos enganamos uns aos outros e a nós próprios.

As únicas emoções que podemos ter são aquelas que não se exprimem por expressões faciais ou por palavras. São as que sentimos na solidão connosco, sem palavras, sem gestos, sem caretas, sem nos imaginarmos a ser seja o que for. A música ajuda a dar forma a essas emoções. Mas mesmo aí somos insinceros porque a música foi feita por outro que provavelmente sentiu uma coisa diferente da que nós lá vemos; e se compositor e ouvinte sentirem coisa parecida, é porque têm o mesmo modelo de emoções, porque há um referente, um modelo, comum.

A emoção pura é solitária, sem palavras, sem elaboração, como a dos animais e das crianças que não falam. Tudo o resto vem de fora, não é nosso. Essa emoção pura é-nos acessível?

Se somos marionetas da cultura em que vivemos e queremos ser como os modelos que nos deram, se quase nunca somos nós próprios, que resta senão tentar compreender o que sentimos sem emoção? Pode-se não pensar no caso e viver as marionetas que somos, mas essa escolha não é para mim.