quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

INSIDE JOB
Quando saíu, não vi o filme. Andei à procura dele até que se comprou. Vi­‑o já duas vezes (o filme é relativamente claro apesar de algumas faltas de sequência, mas a multiplicidade de nomes de pessoas e de produtos financeiros não ajuda nada e é muito fácil perdermo­‑nos).
Se compreendi bem, é a seguinte a explicação do desastre.
No passado as empresas financeiras eram pequenas: uma falência implicava apenas a empresa que falia. E essas falências eram improváveis, porque cada empresa era responsável por emitir os produtos financeiros (geralmente empréstimos) e por os cobrar: quem empresta quer receber, e tinha­‑se o cuidado de emprestar apenas a quem se sabia que poderia pagar.
Contudo, com a facilidade de comunicações (com a revolução informática: o filme não o diz mas é evidente que sem computadores todos ligados entre si a desregulação teria sido impossível) inventou­‑se um sistema diferente.
Normalmente quem empresta é afectado se não for reembolsado. Mas se quem empresta for pago independentemente de a dívida ser paga ou não, as coisas alteram­‑se. Foi o que sucedeu com os sistemas de seguros de dívida. Numa situação deste tipo, quem empresta será pago pela seguradora. Tem, portanto, vantagem em emprestar o mais possível, mesmo a quem se sabe que não poderia pagar.
É aqui que surge a primeira batota – a primeira evidente imoralidade: criaram­‑se «produtos financeiros» que combinavam todas as dívidas provenientes de empréstimos para a compra de casa, de carro, empréstimos pessoais e mais coisas, em produtos financeiros (acções) compósitas, a que se chama cdo. Um cdo é, portanto, comprável no mercado financeiro. Para ser claro, um cdo é uma amálgama de mau crédito disfarçado numa coisa que ninguém sabe o que é. Cdo significa «lixo tóxico».
Como os cdo são voluntariamente «opacos» e impossíveis de compreender –ninguém sabe realmente o que são– arranjou­‑se uma maneira de serem propagandeados. Essa propaganda veio das agências de rating, que foram convencidas a avaliar como investimentos de alta segurança o que sabiam ser lixo. Ganharam dinheiro com isso porque elas próprias investiram nesse lixo. As agências de rating são uma das peças fundamentais do embuste.
Por serem avaliadas com os mais altos níveis de segurança, os lixos tóxicos foram comprados para assegurar as poupanças (os investimentos cujos juros garantem as reformas). Contudo, quem criou os pacotes de lixo tóxico, sabia que os cdo eram instáveis e perigosos. Criou­‑se, para isso, a segunda arma: os cds. Um cds é uma aposta. Uma seguradora aposta comigo que um produto compósito (cdo) vai continuar a dar lucro. Comprando o cds eu aposto que não, que vai falir. Se o cdo falir, a seguradora paga­‑me; se não falir a seguradora mantém o dinheiro que eu lhe dei pelo cds.
Estas apostas não dependem de eu comprar o cdo: é mesmo apenas uma aposta. Posso comprar um cds sobre a dívida grega: aposto com a seguradora em que a dívida não é paga. Se eu ganhar a aposta, a seguradora paga­‑me; se não, fica com o dinheiro. Assim, todos podemos comprar cds sobre coisas que não temos.
Ora os bancos e as agências de rating compraram cds de cdo (=apostaram na falência de produtos que vendiam e que classificavam com aaa). Como sabiam que os cdo eram lixo, protegeram­‑se comprando os cds.
Neste processo, quem fica mais exposto são as agências que vendem os cds, evidentemente, porque, tratando­‑se de lixo tóxico, é certo que vão perder a aposta e ter de pagar aos compradores dos cds. Contudo, e apesar disso, o sistema manteve­‑se, porque os lucros imediatos de vender cds sobre lixo são enormes. Os riscos também são, mas é essa a natureza da especulação.
A especulação em tão larga escala foi possível por duas razões. Em primeiro lugar por causa da «alavancagem». Este termo incompreensível quer apenas dizer «especulação»: alavancagem significa apenas que uma empresa está a vender e a comprar a crédito, com dinheiro emprestado e que não tem nenhuma possibilidade de realizar. Assim, há empresas que têm uma alavancagem de 33:1, o que significa que de cada 33 unidades de dinheiro que movem, apenas têm, realmente, 1. Com tanto dinheiro virtual, quem ganhe muito dinheiro a vender cdo e cds ganha uma fortuna. Como as empresas já não são compostas por equipas mas apenas por falcões que saltam de empresa em empresa como bons vendedores que recebem prémios pelo volume de negócios, esses vendedores (que são quem dirige as empresas) fazem fortunas enormes. É esta a segunda razão que fez que um sistema tão perigoso fosse possível.
As empresas, em si (os accionistas), têm ganhos alavancados, isto é, que os bancos e as seguradores podem não poder pagar.
O sistema é perigosíssimo, particularmente para quem vende os cds (para não falar já dos desgraçados, nós, que investem em produtos que não sabem o que são e que ficam depois na miséria quando os cdo se revelam lixo). Na presente crise, foi a aig, a maior seguradora do mundo, que não conseguiu pagar os cds (as apostas) dos produtos tóxicos.
Não conseguindo pagar, não se conseguia receber, os bancos que especularam (a tal alavancagem) ficaram com enormes perdas e o sistema, por um triz, não bloqueou (porque os governos injectaram dinheiro que pediram emprestado: é essa a explicação da crise da dívida soberana, é por isso que a Europa está em apuros).
Perguntamo­‑nos como foi possível. Ninguém deu por nada? A explicação é sinistra. Os grandes grupos financeiros pagam (muitíssimo bem) a professores das Universidades mais prestigiadas para que eles escrevam uma teoria económica que lhes dê cobertura. No mais marxista dos exemplos, o poder paga para fazer uma ideologia que o suporte.
Poderíamos então esperar que a administração Obama tivesse sucesso e regulasse a economia. Mas todos os responsáveis pelos crimes estão, são, a administração Obama.
Então? Podemos esperar outra crise a qualquer momento. Vivemos sobre uma bomba relógio que não sabemos quando explodirá. E entretanto alguém faz lucro com a miséria alheia e com a destruição da economia.
É a situação política e de poder mais imoral que já vi. É provocado por uma assimetria de poder brutal (os financeiros que vendem o que querem sem dizer o que é) por uma pequeníssima minoria que provoca a falência e a desgraça de pessoas que confiaram na banca (imaginemos um casal de 70 anos que se vê, de repente, com toda a sua reforma comprometida porque comprou lixo tóxico que lhe foi vendido como triplo A). Essa minoria compra intelectuais para justificarem a sua acção predatória sobre os outros, de maneira que os especialistas, formados que são nessa ideologia falsa, não conseguem criticar o processo (como quando a monarquia dizia que era por direiro de Deus que reinava e pagava aos teólogos para lhes fazer a ideologia que forçava os outros à conformação).
Diz­‑se, na psicologia evolutiva, que os psicopatas podem ter vantagem em certos contextos sociais (quando há poucas normas). É completamente verdade, neste caso. Todos os bandidos financeiros que aí andam são rufias sem escrúpulos, sem sentimentos de culpa, que procuram sensações (droga, prostituição, lucros para lá do compreensível) e que sabem a desgraça que causam aos outros mas que se riem disso ainda por cima.
Vai acabar por haver regulação: as sociedades realmente auto­‑regulam­‑se. Mas para isso seria necessário que todos compreendessem o problema. E isso não é fácil: o problema é complexo e os financeiros e economistas esforçam­‑se para o manter complexo e impenetrável.
Neste caso, a única solução é educar as pessoas e promover mais democracia.

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