CARTA A UMA
RAPARIGA QUE PERDEU UM GRANDE AMOR
Sei como te sentes. É toda a vida que parece que se
foi, é o próprio chão vivencial que parece que nos foge. Não há
rumo, nem sentido. Não há futuro nem passado, apenas o presente e a
pavorosa angústia que o preenche. O passado, e com ele o sentido,
foram te retirados. Tudo o que era teu, teu e d’Ele, não
é, de momento, de ninguém. Foi tudo como que amputado, como que
decepado e sangra. Tudo dói. Os únicos momentos suportáveis são
quando dormes, quando não te sentes. Queres morrer, mas falta te
a coragem. O não ser parece te um sono de que não se
acorda e de que avidamente não queres acordar.
Sei como gostavas do musgo nas paredes de pedra, dos
fetos debaixo das árvores. Sei como aprendeste a perder te
n’Ele como te perdias na profundidade do verde do musgo. E sei que
por isso já não consegues perder te em nada, porque
perder te em alguma coisa te recorda que já te não podes
perder n’Ele. Estás sozinha, sabes que ninguém te pode ajudar.
Estás sozinha porque a beleza que sentes não a podes dar a ninguém
e que, para ti, dói mais senti la do que negá la.
E é assim que vai ser sempre, até encontrares a quem dar se ainda o
conseguires fazer: a beleza, que dantes era esperança, sinal de
amor, é agora recordação amarga. O musgo vai deixar de ser um poço
em que entravas, uma esperança mágica, para ser apenas um bonito
tom de verde. O vento nas folhas dos choupos, que antes te dava paz e
te centrava a nostalgia do ser no amor que sentias e no conforto da
companhia é agora apenas o ruído indiferente do vento a passar por
entre folhas. É um ruído belo, mas é um ruído que te mostra
apenas que a beleza se desinteressa de ti. Tudo deveria calar se,
tudo deveria dizer te que a beleza já lá não está
porque tu estás de luto, porque a beleza em ti já não existe. Mas
ela está lá, indiferente ao teu sofrimento. E a beleza passa a
doer, a mostrar te que estás sozinha. Já não celebra o
teu amor e o teu ser, mas apenas te lembra de que tu és só, que
mesmo a beleza se desinteressou de ti.
É nessa beleza que reside a tua salvação, mas também a tua condenação. Hás de conseguir compreender que essa beleza existe porque tu a vês, não porque a vês para Ele. A beleza é tua, não vossa. E vais, pouco a pouco, conseguir vê la. Mas nesse momento mudarás: compreenderás que és tu e o teu mundo, tu no singular, sem complemento. Nesse momento que perceberás que estás sozinha e que vais continuar sozinha para sempre, porque o que sentes será sempre apenas teu. Se conseguires voltar a encontrar a quem dar a profundidade do musgo que voltaste a sentir, renascerás. Mas se não encontrares ou tiveres medo de a voltar a mostrar ficarás em ti para sempre.
Não será fácil viver em ti. A beleza é algo que
se dá. Só faz sentido achar belo o que se pode mostrar. Tu
mostraste o apenas a uma pessoa. A partir de agora vais
conseguir vê lo só para ti? Ou vais tentar mostrá lo
a quem te comover, quase sem selecção? Se for esse o caso, viverás
apenas em ti, e os outros a quem mostras serão apenas um suporte de
ti próprio, uma espécie de montra dos teus sentimentos. «Vejam
como é lindo». Ao compreender que o acto de mostrar é apenas
equivalente ao acto de sentir, compreenderás que estás ainda mais
sozinha, que mesmo os outros são apenas objectos, interlocutores sem
significado, uma plateia que te serve de apoio concreto. Os outros
serão apenas projecções de ti, apoios à tua própria emoção.
Estás sozinha, tu e o que sentes.
Tu não és uma diletante do amor ou da beleza – duas palavras para a mesma coisa. Ao tratar essa coisa como algo que se mostra a qualquer pessoa sentes te a trair te até ao âmago. Podes tentar fazer do mostrar uma missão, podes ensinar. É um acto de ternura mas ao mesmo tempo de renúncia.
Tens de encontrar a quem dar que compreenda. Pode ser
a crianças. Pode mesmo ser no abstracto: podes escrever, fazer
música, criar a partir de ti. Os outros, se quiserem, que encontrem
lá o que lhes aprouver. Estás sozinha, mas na medida em que
conseguires objectivar a beleza que sentes num suporte que não sejam
outras pessoas terás conseguido voltar a viver.
Podes ter a sorte de encontrar quem aches que mereça
receber o que tens para dar e podes mesmo conseguir receber de novo.
Se isso não acontecer, a solução é apenas dar sentido à tua
própria beleza objectivando a para ti.
Viver quando se sente é difícil. Vive para ti e faz
beleza ainda que não encontres a quem a dar.