Razões psicológicas e culturais da Falência da Democracia em Portugal
Breves
considerações sobre a origem das sociedades – Não
sabemos como as sociedades do homem anterior a sapiens se organizavam (ou sabemos pouco) mas sabemos qual pode ter
sido a organização original da nossa espécie. Aparentemente, formávamos grupos pequenos, identitários, e
sempre em guerra uns com os outros.
Assim se geraram duas tendências: para a cooperação altruísta com os
membros do nosso grupo e para o ataque aos membros dos grupos rivais. Essas duas tendências exprimem‑se no grupo identitário, que define amigos e inimigos.
Nesses grupos simples há um
egualitarismo relativo, mas há sempre, pelo menos, classes de sexo e de idade;
frequentemente surge a diferenciação do feiticeiro e do guerreiro, embora o
feiticeiro possa ser guerreiro.
Nas sociedades que obtêm mais recursos
do meio (quer por caça e recolecção quer por mistura com a agricultura quer
ainda apenas pela agricultura) deixa de haver igualitarismo: há famílias ricas,
geralmente com uma ideologia que justifica a diferença (os reis‑deuses egípcios,
por exemplos, e todas as sociedades do Crescente Fértil). Nesses casos há uma maior separação de
funções, que pode incluir padres, guerreiros, agricultores e os chefes, que
acumulam, pessoalmente, enormes quantidades de riqueza. O clero geralmente também o faz. Os grupos mais fortes vão conquistando
os outros (exemplo: a expansão de Roma) e há impérios baseados na estratificação
social intensa.
Na Europa pós‑invasões bárbaras
sucedeu que grupos guerreiros deitaram abaixo a civilização romana. Desses escombros nasceu uma nova
sociedade de pequenos grupos, baseados na posse de homens e de terra: servos
que trabalhavam a terra para o seu senhor, o conquistador bárbaro. Houve, progressivamente, um emparcelamento
das terras, à medida que os descendentes dos conquistadores conseguiam alargar
os seus domínios: o rei tinha de recompensar os seus guerreiros e fazia‑o com
terras. Isso levou a uma fragmentação
dos territórios em vários poderes rivais (feudalismo) que apenas terminou no Séc.
xvi, com a centralização do poder real (de que é exemplo, em Portugal, D. João II).
A centralização do poder real teve
sucesso em Portugal e Espanha e em França. Não teve sucesso na Alemanha e foi sempre contestada na
Inglaterra. Na Flandres não chegou
a existir. Há razões diversas para
isto. Na Alemanha houve
incapacidade do Imperador; na Inglaterra houve, desde cedo, uma enorme
rivalidade entre o Rei e a burguesia, que manteve sempre um poder
suficientemente grande para se conseguir representar no Parlamento. Aproximadamente o mesmo ocorreu na
Holanda.
O poder real central funciona de
maneira relativamente simples: o rei acumula, em seu nome, grandes
riquezas. Os nobres perdem a sua
função guerreira para passarem a gravitar na corte. Consoante o Rei o permita ou não, os burgueses podem
enriquecer. Em Portugal não
sucedeu tal porque os judeus foram expulsos.
Primeira
consequência psicológica – Surgem
aqui dois modelos de pessoa com poder, modelos esses que são em tudo
opostos. O modelo do aristocrata é
o do guerreiro arrogante que apenas faz a guerra; o seu poder assenta na
exploração de um conjunto de terras e de pessoas que lhe estão, em maior ou
menor grau, fixadas. O burguês têm
outros valores: o trabalho árduo, a palavra comercial, o lucro, as trocas
comerciais, a competição, a necessidade de fixar regras funcionais para prever
o comportamento dos outros e planear negócios. A burguesia não se baseava como agora, em tecnologias muito
complexas mas em cadeias de produção.
Dando o exemplo da tipografia, havia mestres e aprendizes (sujeitos a
uma forte disciplina). O mestre
poderia chegar a quase não se ocupar do ofício de tipógrafo (geralmente não o
fazia) e limitava‑se a explorar comercialmente a empresa criada. Associada à tipografia havia inúmeras
profissões: fabrico de papel, de punções, desenho de letras, alfabetos,
revisores tipográficos, encadernadores, cada uma com a mesma organização. Essas várias profissões encaixam‑se
umas nas outras e têm prazos exactos a cumprir de maneira que quem compra, por
exemplo, uma certa quantidade de papel saiba que a vai ter na data
acordada.
Nos países em que a aristocracia e o
rei não conseguiram impor duradouramente a sua força o modelo burguês impôs‑se.
Permitia, afinal, alguma
mobilidade social e dava empregos mais bem pagos e menos penosos do que a
agricultura a que o sistema aristocrático condenava os servos e trabalhadores
rurais. Nos países em que o modelo
aristocrático se impôs a burguesia, assim que enriquecia, imitava o
comportamento dos aristocratas, comprava terras e instalava‑se na agricultura
(foi o que sucedeu em França). Em
Portugal, no Séc. xvii, residentes ingleses espantavam‑se que os comerciantes
enriquecidos tivessem vergonha da sua profissão e educassem os filhos para
serem outra coisa em vez de desenvolver o negócio – uma possibilidade era mandá‑los
estudar teologia ou direito e assim entrar na «nobreza do pano verde», isto é,
o enobrecimento por serviços prestados à coroa através da administração (pano
verde porque se estendia um pano de burel verde em cima de uma mesa para fazer
uma secretária; é daí que vem o termo francês «bureau» que significa secretária
e escritório).
Como vimos, o modelo aristocrático
baseia‑se na diferença substancial entre as pessoas nobres e as que o não são
e na submissão incondicional das segundas às primeiras; baseia‑se, também,
numa hierarquia rígida: é o rei que manda e assim por diante até ao camponês. O que define um estado é o rei, senhor
e quase deus identitário de um povo: o sistema é colectivista, não
individualista.
A burguesia é, por força da competição,
individualista; e é mais igualitária do que a aristocracia: os homens definem‑se
pelo poder que conseguem ganhar pelo dinheiro e não pela sua origem (dentro de
certos limites). A burguesia tem
de saber fazer planos a longo prazo e leis que definam as relações entre as
pessoas. Deixa de ser a essência da pessoa (o carácter quase
sagrado, deificado, do aristocrata) a determinar as suas relações com os outros
para ser uma lei que, escrita ou
consuetudinária, garante o funcionamento da cooperação entre os vários homens
de negócios. Não faz qualquer
sentido haver um «rei dos burgueses»: todos têm de se reunir para pensar no
futuro comum. É esta a origem de
uma forma de «poder do povo» (porque a burguesia era «terceiro estado», isto é,
não era nem aristocracia nem clero) que teve a sua expressão maior na Revolução
Francesa: a passagem do poder da aristocracia para a burguesia.
Pobres
e ricos na aristocracia e na burguesia –
Num sistema puramente aristocrático um plebeu não tem nenhum poder e está
completamente nas mãos do clero e da nobreza. Sem a possibilidade de ascensão social através do comércio e
da indústria fica reduzido a esperar esmolas
dos ricos. Efectivamente assim
acontecia em Portugal: havia sessões de esmolas públicas. Nesta situação, o povo aprende a impotência
total, a paciência, a conformação, e um certo estoicismo: se nada pode fazer,
apenas pode esperar. Mas
desenvolve, também, valores de profundo ressentimento com os poderosos e estratégias
fraudulentas de os enganar: trata‑se do modelo do espertalhão, do Chico‑esperto,
que todos conhecemos. Enquanto que
numa sociedade burguesa o pobre pode, embora com dificuldade, enriquecer pelo
puro trabalho e probidade, numa sociedade aristocrática apenas pode ganhar
poder pela intriga e pela desobediência às leis. Valorizam‑se então, nas duas sociedades, éticas diferentes:
nas aristocráticas, o que o povo espera é esmola e clemência por parte do
poder, como as crianças dependentes dos pais. Nas sociedades burguesas isso pode ocorrer, mas tende a ser
mal visto: o caminho do enriquecimento é o trabalho e o que se pede ao estado é
que faça leis que o permitam e não faça guerras que o perturbem. Quem pede, nessas sociedades, está a
fazer batota: o dinheiro ganha‑se pelo trabalho e pela probidade, não pela
caridade.
A religião dos países de poder real e
de poder burguês reflecte essas diferenças – no seu mais extremo entre o
catolicismo piedoso e o calvinismo inflexível que considera o lucro como uma
marca de virtude. Que o
protestantismo encaminhou as democracias é bem sabido. Veremos como o
catolicismo/aristocratismo preparou o caminho dos totalitarismos.
Portugal,
aristocratismo, catolicismo, comunismo – Em
Portugal o modelo foi, no mais extremo, aristocrático. A coroa tinha vários monopólios,
baseados numa política de exploração de zonas além‑mar; o trabalho fazia‑se aí,
não em Portugal, em que apenas tinha de haver administração. Apesar de mudanças significativas nos
anos 60 (industrialização muito forte) o modelo continuou a ser aristocrático:
os novos aristocratas eram os professores de Direito das Universidades.
Esta situação é, pois, muito
antiga. Por isso, entranhou‑se no
povo uma relação de ódio‑submissão ao poder. Por volta de 1800, a Duquesa de Abrantes, francesa,
comentava que em Portugal um dos valores mais altos é o «coitado». Se um assassino for perseguido pela polícia
o povo dar‑lhe‑á guarida. Isto
ocorre porque a polícia representa a autoridade, isto é, os nobres, e quem é
por ela perseguido é, automaticamente, feito aliado do povo. O poder nem tem rosto, são «eles» (também
ocorre em França, mas creio que não na Alemanha).
O sentimento preponderante é de que, não
estando no poder, não posso ter qualquer influência: gera‑se uma dinâmica de
conformação completa, de dependência integral do poder e uma sensação de impotência
total. «Eles» decidem, «eu» tento
esquivar‑me e ludibriar as regras que «eles» me impõem para manter o poder que
têm.
Daqui provêm dois pontos de vista
opostos. Se eu for povo, quererei
esmola e tentarei enganar o governo; o povo é bom, porque é uma vítima; o
governo é mau, porque é verdugo.
Se eu for governo, direi que o povo é ignorante, interesseiro, e que não
se pode confiar nele. Ou seja:
geram‑se as posições de origem das ditaduras de esquerda e da direita.
Esta situação leva a democracia ao
total descalabro: o povo elege quem se identifica com ele. Aqui há uns anos dizia‑se de Mário
Soares (sondagem no Expresso) que ele era um dos homens mais ricos de
Portugal. Creio que o raciocínio é:
se ele lá está, encheu‑se, e fez muito bem, «porque eu faria o mesmo» (relato
real). É esta ideologia de escravo
que nos deu primeiros‑ministros como José Sócrates Pinto de Sousa, que todos
sabem que mente e todos suspeitam de ter enriquecido e feito negócios à custa
de todos nós; é isso que manteve presidentes de Câmara corruptos a governar
(Isaltino, Fátima Felgueiras). Não
há, assim, democracia possível.
Contudo, foi o regime que se trouxe
para Portugal: copiou‑se os modelos funcionais das democracias europeias
ocidentais, que decorreram do modelo de pessoa individualista, cooperativa e
autónoma e da ausência de diferenças abissais de poder entre grupos
humanos. Logo de início houve, em
Portugal, sinais de que a mentalidade aristocrática continuava: o povo pedia
dinheiro, os governantes davam as esmolas; os governos acabaram com os cursos técnicos
(para toda a gente ter um título e todos aprenderem a trabalhar sem sujar as mãos).
Mas os chicos‑espertos entraram no
governo, legislaram e garantiram que eram eles a ganhar com isso: acabaram com
a administração pública independente, substituída por capangas nomeados; nem a
justiça já é independente e diz‑se que os Códigos foram mudados para proteger
quem está no poder; os investimentos visam lucros privados, não o bem do país;
os deputados legislam nominalmente a bem do país mas têm ligações de interesse
privado e financeiro com as firmas que há que dobrar ao interesse da nação. Tudo isto debaixo da tolerância dos
eleitores, habituados à impotência absoluta e à tolerância com os chicos‑espertos.
Que
democracia? – A única possibilidade de sairmos do
caos em que estamos é reformando a democracia e transcendendo a visão
comunista/fascista da política.
Para reformar a democracia só há duas soluções: uma revolução ou um
partido novo que ganhe as eleições e faça novas leis e novas formas de
funcionamento das instituições. Não
sei porquê, todas as pessoas que falam na «refundação da democracia» dizem‑se
indisponíveis para participar num partido novo. Será ainda a ideia de que quem está no poder é
intrinsecamente corrupto? Que
esperam então? Uma revolução? Mas todos sabemos que tal revolução, na
situação em que estamos, é impossível.
Revolução para quê? Para um novo Salazar? Onde é que ele está? Para um
regime comunista? Seríamos esmagados pelos novos capitalismos (China, Brasil, Índia)
e ostracizados pelos velhos (Europa, Estados Unidos). Para outra democracia?
Na situação económica em que estamos ninguém o vai tentar. Sejamos realistas, a única
possibilidade é um novo partido com regras draconianas para com os seus membros
e com um programa coerente e honesto.
Para assegurar uma democracia funcional
não basta isso. É necessário que
as pessoas se interessem pela coisa pública: deixar de falar em «nós», sem
poder, e «eles», com poder. A geração
mais nova é, pelo menos quanto eu posso avaliar do que sei dos meus alunos, válida. Mas demitiu‑se da política. Sem dúvida como os «refundadores da
democracia», mete‑lhes nojo; ou então são ainda demasiado novos para
conseguirem sair dos pequenos mundos que conhecem. E assim faço a minha segunda proposta: que se crie, nos
liceus, cadeiras que expliquem, por exemplos concretos baseados na teoria dos
jogos, a necessidade de participação honesta e responsável na cidadania.
A liberdade, a democracia, dão
trabalho. Se a queremos temos de
lutar por ela. Recordemos que não
estaríamos a ter esta conversa se não vivêssemos em democracia.
Santo Estêvão, 7 de Maio de 2013