terça-feira, 15 de janeiro de 2013


Do movimento pró-animal extremo: exemplo recente


Vai na Internet e nos jornais uma grande celeuma sobre um cão, cruzado Pitt Bull e Mastim da Rodésia, que matou uma criança de 18 meses. Há duas posições: a legal, que pretende que o cão, sendo perigoso, deve ser abatido. E a dos movimentos dos direitos animais, que pretendem que não se junte uma morte a outra morte e se poupe o cão. Quem tem defendido a morte do cão tem sido caluniado e insultado. Há até um abaixo assinado, salvo erro com 11 000 assinaturas, contra o abate do cão.

É útil compreender as razões que podem ter levado o cão a este comportamento para se poder ter alguma opinião que não seja apenas emocional.
 

O cão tem uma estrutura social baseada em principalmente dois factores: a ligação aos membros do grupo e o par agressão/submissão. Os cães de um grupo estão, normalmente, ligados aos membros desse grupo por aquilo a que chamaríamos amizade: vontade de estar com os outros, que se traduz em várias manifestações de afecto. Mas as sociedades caninas não são igualitárias: há um macho dominante, uma fêmea dominante e essa dominância é conseguida através de processos de ameaça, agressão e submissão do animal dominado, submissão essa que normalmente inibe a agressão do dominante.
 

Essa organização é, de certo modo, parecida com a nossa. O que fez do cão um animal doméstico foi, em parte, o facto de compreendermos muito bem a linguagem que usa para se mostrar subordinado: orelhas para trás, testa lisa, comissuras esticadas, posição agachada, lamber o focinho, ganir. 

Reconhecemos espontaneamente essa reacção como subordinação e interpretamo­‑la como «ser querido», ser afectuoso. É isso que nos faz gostar tanto de cães: são realmente nossos amigos mas não são nossos iguais: submetem­‑se­‑nos.
 

Em condições normais um cão nunca ataca um membro da sua família humana porque se submete a todos os membros da família. Pode suceder que o cão ou a cadela tentem reclamar a dona ou o dono e nesse caso podem ameaçar e atacar os seus «rivais» sexuais. Mas não atacam, por agressão, crianças. A razão é simples: antes da puberdade os cães não lutam pelo estatuto, de modo que não há qualquer razão para a agressão. Os cães reconhecem a puberdade nos humanos pelo cheiro.
 

No caso de que agora se fala o ataque à criança de 18 meses tem uma origem provavelmente diferente. Os cães são predadores. Uma criança, se não for reconhecida como membro do grupo, pode ser atacada. Não conheço os detalhes do que sucedeu, mas pode ter sucedido isso mesmo. A criança talvez tenha corrido, o cão atacou­‑a como faria a uma presa.
 

Há outras possibilidades: não sabemos se o cão era usado em lutas (é muito fácil saber pelas cicatrizes); se tiver sido esse o caso e se houvesse um ambiente de muita excitação por parte da criança, pode ser essa a explicação.
 

Em qualquer caso, o ataque significa que o cão é perigoso. Se matou uma vez não há nenhuma razão para que o não faça segunda e terceira vezes.
 

O juízo de que «o cão não tem culpa» porque não sabe o que é bem ou mal é verdadeiro, mas não se aplica por duas razões: a lei não vinga os actos mal feitos: isola os perpetradores de actos condenados pela sociedade. Portanto, a morte do cão não seria nunca um acto de vingança, mas uma simples precaução para o futuro (não há prisões para cães).
 

A ideia de que a vida do cão vale tanto quanto a de um humano é baseada no pressuposto de que qualquer vida consciente («sentiente» é o termo técnico) vale tanto como outra qualquer. Mas por essa ordem de ideias não podemos combater uma alcateia de lobos que nos ataque. Ninguém normal defenderá isso.
 

Na minha opinião o que está presente nos grupos que defendem o cão é outra coisa. Há um movimento romântico de defesa dos animais que é justo e tem razão de ser – afinal os animais sofrem, e esse sofrimento deve ser tomado em conta. Mas aquilo a que se está a assistir é um fenómeno diferente. Para o compreender vou dar um exemplo simples. Tomamos partido pelos polacos contra os alemães na 2ª guerra; pelos judeus contra os polacos durante os pogroms; pelos palestinianos contra os judeus na questão israelita. 

Em todos estes casos sentimos uma piedade extrema pelo grupo mais fraco. Quando isso sucede vemos o fraco como completamente bom e inocente (mesmo sabendo que o não é) e o forte como cruel e malévolo. Neste caso o cão é visto como vítima e por isso se ataca com raiva quem o quer ver morto.
 

Até aqui o processo é muito claro. O que é estranho é que a vítima seja o cão e o perpetrador sejam os humanos. Seria muito mais natural que sentíssemos pena da verdadeira vítima, a criança e os seus pais. Que isso não suceda pede uma explicação mais complexa.
 

Comecei por dizer que os cães se submetem aos humanos e que o fazem de maneira a comover­‑nos. Comove­‑nos a inocência dos cães, a sua incapacidade de mentir, a sua pureza de intenções, mesmo quando são más. Mas comove­‑nos especialmente a sua submissão. Estando comovidos com um outro ser não lhe podemos fazer mal – é a nossa forma de sermos sociais: se alguém se nos submete, se reconhece o nosso poder, deixamos de atacar. Há casos descritos deste fenómeno mesmo na guerra. Podemos zangar­‑nos com o cão, ser injustos, que não diminuímos a subordinação dele por nós – pelo contrário. Em contrapartida desapontamos as pessoas; as pessoas julgam-nos, não nos aceitam necessariamente como somos.
 

Isso leva a uma atitude de protecção para com os animais que não se tem pelas pessoas. Por isso há quem, neste caso triste, identifique a vítima com o cão e não com a criança que foi morta.
 

Pode parecer estranho mas é finalmente muito compreensível.
 

Lisboa, 15 de Janeiro de 2013.