Ars Vivendi: Ler o Jornal1
Um fragmento de Georges Daninos (sobre a nostalgia da inocência de uma vida toda programada: Monsieur Massenavette), a Aparição do sentir o eu, de Vergílio Ferreira e a Madame Bovary, de Flaubert, são os três inspiradores deste texto (incongruentes? Mas um trágico é sempre um cómico e vice‑versa; e creio que Flaubert se riu e enterneceu ao mesmo tempo com as Bovarys que conheceu). M. Massenavette é um pasteleiro de uma cidade de província e Daninos inveja a vida dele por um segundo: uma vida calma, assente em princípios que não são postos em causa e todo entregue à sua profissão. Na Aparição discute‑se a descoberta do eu, o milagre do ser contra o não ser. Na Bovary trata‑se da necessidade de sentir e de viver intensamente.
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Quando eu era pequeno tinha a ideia de que os crescidos se levavam a sério e habitavam totalmente a personagem que eu via. O protótipo disto era a leitura do jornal: via‑os ler o jornal, muito seriamente, mas não entendia como era possível uma pessoa interessar‑se por coisas tão desinteressantes (porque separadas do desejo auto‑centrado) como a política ou os faits‑divers.
De tanto ver as personagens, em pequenos, acabamos por acreditar nelas. É mais tarde, quando tentamos nós próprios entrar para as personagens (usando o exemplo, quando tentamos achar o jornal interessante) que as coisas se alteram, porque sentimos a incapacidade de sair do nosso eu simples e auto‑centrado que só se interessa pelos seus próprios caprichos e vontades. No jornal lê‑se sobre coisas que não somos nós, pelo menos no sentido de não serem coisas que nos afectam directamente. É preciso uma pessoa sentir‑se parte de uma sociedade, de um conjunto de normas, para compreender em que é que as notícias políticas ou económicas a afectam. Uma criança nunca será capaz disso, porque vive integralmente no plano dos desejos primários: aquilo a que o Freud chamaria o princípio do prazer.
A pessoa que lê o jornal com prazer sente‑se, como M. Massenavette, parte de uma comunidade, conhece o seu papel, toma partido e assume o papel que a comunidade lhe deu. No limite, vive no papel, sem nunca sonhar com problemas existenciais ou sequer psicológicos. Os Mm. Massenavettes são a matéria‑prima de que se fazem as sociedades estáveis: são a carne e o espírito que dão corpo às estruturas sociais. Cumprem, fazem cumprir e não existem como seres questionadores. Não compreendem a Aparição e nunca cederiam às tentações de Emma Bovary: a sua personagem social nunca o permitiria. A Bovary, pelo contrário, não tolera a obediência às normas do seu estatuto. Em parte porque é ambiciosa, em parte porque não as compreende mas as despreza, em parte –e talvez sobretudo– porque precisa de sentir. E como sentir para um espírito simples é apenas sentir os prazeres primários, procura o sexo. Mas, como a criança de Freud, vive no princípio do prazer. De resto, é um M. Massenavette que a Bovary rejeita: o seu marido, contente com a sua sorte.
Emma Bovary tipifica aquilo a que chamo não acreditar na personagem por baixo. Não conseguimos compreender os atractivos da personagem –não conseguimos chegar a ler o jornal, e apenas podemos fingir que o fazemos– porque o que realmente tem significado para nós são os nossos desejos imediatos, aquilo que nos cerca: não conseguimos interessar‑nos pela discussão de uma lei que não nos diga respeito, não conseguimos interessar‑nos pela ideia de «país». Somos todos no nosso querer e desejar e não no que se passa fora de nós e sem relação directa connosco.
Mesmo quando finalmente conseguimos interessar‑nos pelo que se passa longe de nós –quando finalmente temos interesse na leitura do jornal– há sempre grandes tentações de cair no egocentrismo infantil. Se pudermos conseguir ser o centro do mundo e ter o que desejamos sentimo‑nos de novo como crianças e sentimos o prazer inteiro do desejo gratificado. Daí que, na adolescência e, para muita gente, durante toda a vida, consideremos os que jogam realmente as regras e que se interessam principalmente pelo que vem no jornal uns tansos, uns ingénuos. Afinal, a regra que aplaudimos quando lemos o jornal pode ser a honestidade, mas eu vou lá resistir a ficar com o dinheiro todo ou a ir para a cama com a bela mulher de um amigo! Há, portanto, muitas pessoas que já lêem o jornal, mas sobretudo sobre o seu clube, sobre o seu carro, o seu computador, e têm sempre um olho para o que podem arranjar como gratificação primária. Digamos que lêem o jornal porque fica mal ler (ver?) o Playboy. E por isso há tantas «Revistas do Automóvel», «A Bola» e «Maria».
Há uma forma particular de mascarar o rejeitar por baixo em rejeitar por cima que é muito frequente. Isto é, conhece‑se a personagem mas não se gosta dela. As razões são superficiais: rejeita‑se apenas por achar que viver «daquela maneira» é vieux jeux ou «foleiro», sem realmente compreender o que se rejeita. Finge‑se então um desdém «superior» pela posição que não se compreende porque se é primário e auto‑centrado. Na minha memória estão todos os pedantes de todos os círculos «bem‑pensantes» e muitas raparigas bonitas que se recusavam ao banal – como a Bovary. A recusa era puramente infantil: queriam apenas a gratificação imediata, mas, imitando quem realmente se pergunta porquê ler o jornal, diziam que o não liam porque o desprezavam. E dizendo‑se acima das regras tentavam (e conseguiam e conseguem, pelo menos durante algum tempo) que as outras pessoas os deixem seguir apenas a necessidade primária de prazer imediato, em nome de um «ideal» mais profundo. Ou seja, dizendo‑se acima das regras, essas pessoas conseguem viver por baixo delas com o consentimento dos outros.
Claro que uma rejeição profunda da personagem é muito diferente e mais rara – na verdade é raríssima e provavelmente nunca é integral. Estar realmente acima da personagem implica compreendê‑la, compreender o eu e compreender que, qualquer que seja a personagem, o eu é mais do que ela. Isto significa compreender que o que eu faço ou sinto não é tudo aquilo que sou, e que o eu mais verdadeiramente Eu é o que observa o que faço e sinto. Nesse sentido, o eu é a tal aparição de que o Vergílio Ferreira fala, o milagre de ser um eu. O eu‑desejo, sensação de ser e prazer de fazer não é afinal eu próprio; eu sou quem pensa esse eu, quem o vê e quem o comenta. É, afinal, o aparecimento do eu racional, do eu cartesiano, que pode tentar compreender o outro eu, o dos impulsos, entusiasmos e deveres.
Não se trata de dois eus diferentes, mas apenas de duas localizações diferentes da nossa atenção: a primeira é mais emocional e directa; a segunda existe num plano mais neutro, de não acção e de observação das possibilidades e das razões da acção.
Ainda que quase ninguém enuncie esta diferença entre eu‑acção/ emoção e eu‑observação dos meus sentimentos e acções, as pessoas têm potencialmente consciência da diferença porque essa consciência está implícita na linguagem: «eu sinto‑me alegre», «eu fiz uma asneira». Nestes casos a linguagem afirma os dois eus: o que observa é o que fala e refere‑se ao eu que sente e fez. Na maior parte das pessoas este eu «comentador» limita‑se a observar o que o eu acção faz. Nesse sentido pode criticar‑se: «mas que estupidez», diz o eu comentador, «o que eu fiz!», sendo este segundo eu o eu agente. Mas essa crítica segue critérios que foram importados de outras pessoas, do que se ouviu: ou, retomando a metáfora, critérios aprendidos no jornal. Não são critérios que tenham sido realmente pensados pela pessoa.
Em parêntesis, é interessante notar que tanto M. Massenavette como Emma Bovary nunca desenvolvem realmente a capacidade de se questionar autonomamente. É certo que M. Massenavette se vê como membro da sociedade, visto e questionado por ela, enquanto que a Emma Bovary se centra sobretudo no seu prazer de mulher. Mas nenhum deles consegue criar novas regras ou justificar realmente o seu comportamento: «porque os outros fazem assim» e «porque eu quero» são as únicas explicações que eles poderiam dar de fazerem o que fazem. E fecho o parêntesis.
Quando as sociedades são estáveis, produzem‑se os Mm. Massenavettes, que se entregam de alma e coração à sua personagem e tiram dela verdadeiro prazer: afinal vêm‑se fazer o único papel que aprenderam. Podem subsistir angústias, mas geralmente os reforços sociais são suficientes para manter a pessoa bem disposta. Quando as sociedades são instáveis, produzem‑se os camaleões sociais que vão copiando modelos aceites, mesmo quando são internamente contraditórios. São pessoas que copiam, que não são autoras da sua identidade e nem sequer questionadoras: são o que a sociedade lhes propõe e se o modelo é fragmentado e sem sentido, não são elas que o vão notar. Os Mm. Massenavettes, como as actuais pessoas em semi‑crise existencial porque é bem ser‑se profundo, são equivalentes e ambas lêem o jornal com prazer: apenas os jornais do tempo dos Mm. Massenavette eram mais coerentes do que os de agora.
Em todos estes casos a posição do eu que observa existe – na verdade é responsável pela exigência de ler o jornal, qualquer que ele seja. Mas a posição não é autónoma, mas controlada pela programação que nos vem de fora, seja ela conservadora ou post‑moderna.
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Em algumas circunstâncias –o sofrimento psicológico e subsequente dúvida sobre si próprio, por exemplo– esse eu questionador ganha autonomia. A pessoa encontra‑se mais tempo no estado de pensar nos seus próprios porquês. É nesse estado que podemos perguntar porque é que lemos o jornal, porque é que defendemos a família, porque é que somos de esquerda.
A descoberta do eu –a aparição do ser, como diria Vergílio Ferreira– é menos uma experiência existencial do que cognitiva. Como disse, a linguagem dá a todos a experiência de enunciar o eu racional (o «eu vou fazer» implica a existência desse espectador). Mas esse eu espectador não procura razões e, como nos casos anteriores, apenas se enuncia quando comenta o que o eu vital ou codificado pelos outros sente ou quer. É apenas quando aparece a capacidade de questionar (porque é que eu gosto de ler o jornal?) que surge o problema do significado, o problema da existência. No fundo a «aparição» é apenas perguntar porquê, é a passagem do eu agente ou emotivo para o eu pensador.
Como Vergílio Ferreira parece ter compreendido, essa experiência não é, em si, traumática a não ser que seja acompanhada da descrença num conjunto de valores – seguindo a metáfora, descrença da existência de qualquer jornal digno de se ler. Deus é a explicação natural desse conjunto de valores, mas não é a única: em vez de Deus pode ser a crença numa ordem natural, no progresso e no papel que cada um de nós representa nesse progresso ou, na verdade, qualquer outra convicção. Tem apenas de ser uma crença numa coisa maior do que o próprio eu, exterior ao sentir infantil do eu que deseja e se zanga. Voltando à metáfora, a pessoa interroga‑se se o jornal tem os critérios que deveria ter. Questionar um critério não é apenas dizer que não como as Bovarys e os oportunistas na moda. Questionar realmente significa fazer o esforço de compreender o que esse critério realmente significa e não ficar convencido por esse significado; questionar realmente implica tentar outros critérios ou, no mínimo dos mínimos, tentar modificações ao critério. Para questionar critérios é necessário que a própria pessoa tenha ela própria critérios pessoais. Para o fazer tem de ser eu pensante, eu racional: tem de apresentar um sistema de valores autónomo. É esse sistema de valores que o sujeito cria que se torna maior do que ele e que lhe dá sentido da vida. É, pois, um substituto racional de Deus: uma entidade maior e exterior a nós próprios que determina como as coisas se devem fazer.
A verdadeira crise existencial não ocorre, pois, com a emergência do ponto de vista reflexivo e crítico do eu. A crise ocorre quando não se acredita na existência dessa entidade maior e se compreende que essa entidade é apenas uma projecção da nossa mente – mente que é, afinal, tudo o que existe. Nesse caso fica‑se apenas com o eu original, o eu da criança e do adolescente mimado que quer, que sente e que deseja. M. Massenavette parece‑nos longínquo, impossível, improvável e invejável no seu conforto assente em verdades eternas e nunca questionadas. A crise acontece quando se compreende a solidão profunda e essencial de existir: eu existo apenas na minha mente e nas minhas representações, e o resto apenas me afecta na medida em que eu reagir e me sentir atingido. As crenças dos outros podem não me atingir; mas atingir‑me‑á sempre o desejo, a dor, a fome. Sou então como a Emma Bovary? Não, porque sei que mesmo os meus desejos são irrelevantes a não ser para o meu corpo e nunca darão sentido ao desespero fundamental de não compreender o sentido de existir. Como a minha própria existência é apenas um acidente, um dia vai desaparecer o meu eu e com ele todo o mundo, porque o mundo é apenas o que eu represento. E isso não coloca nenhum problema, porque com a morte desaparecem todos os desejos; na ausência absoluta de eu é impossível sentir, de modo que a morte não pode assustar – é apenas um estado de não ser, que não se sente. A morte –o não ser– é desejável, porque se pára o ciclo infernal de compreender e não fazer sentido e compreender‑se que não faz sentido.
O eu pensante compreende, então, que se é verdade que ele próprio não tem verdades, ele é, contudo, a única verdade. E quem vive predominantemente na posição de eu pensante não tem a escolha de se dedicar apenas ao eu‑acção e emoção. Já que se vive no mundo como observadores, tentemos que o que observamos faça sentido e que tenha interesse: afinal, temos uma vida para viver. Ao compreender isto, tudo quanto nos é exterior –nomeadamente qualquer entidade maior, qualquer moralidade– deixam de existir. A razão, afinal, não tem verdades. É esta tomada de consciência da superfluidade da razão que é a verdadeira experiência traumática, mais ainda que a negação de Deus ou de qualquer ordem: é a negação da importância do próprio ser pensante e do próprio acto de pensar. É, portanto, a constatação da completa irrelevância do ser, de se ser.
Não há saída para o problema: se quisermos impor, em qualquer caso, uma ordem, saberemos sempre que ela é arbitrária e nunca seremos convictos na acção; se quisermos ser vitais, como, digamos, um touro, nunca o conseguiremos, porque nos é impossível: estaremos sempre a ver‑nos ser touro e não a sentir‑nos touro, porque a decisão de ser touro vem da razão e não do instinto de ser, do eu primário. O problema é, como o Freud o compreendeu (Neurose e Civilização), insolúvel.
A única saída –pelo menos aparente– é o hedonismo completo, fazer aquilo que me dá menos problemas e mais prazer. Não é o que vem no jornal, mas não esqueçamos que o Playboy é também um jornal: lêem‑no os idiotas que se vergam ao deus desejo como quem se vergou a outra norma qualquer. Prazer, hedonismo, neste texto significam apenas procurar aquilo que torna a duração da nossa vida suportável. O que cada um acha que é melhor para si depende da pessoa. Mas é raro que seja apenas o deboche, porque se paga sempre por isso. Geralmente, se se for inteligente, ter‑se‑á uma vida pacata e com hobbies –mesmo que secretos e considerados condenáveis– bem escolhidos para nos manter entretidos. E, quanto aos outros, é usá‑los para o nosso prazer. Mas isso nem sequer sei se é possível a uma pessoa normal.
A Ars Vivendi está precisamente em saber atingir um equilíbrio entre dois pontos de vista do eu: os pontos de vista agente e pensante. Trata‑se, pois, de atingir a sofrosine, o equilíbrio a que os gregos aspiravam (certamente sem sucesso – basta pensar em Sócrates). Para chegar a esse equilíbrio é preciso compreender bem o nosso eu primário, mas também os preconceitos do nosso eu racional. E temos de saber, connosco, ser como um bom educador: tolerante e respeitador das especificidades e interesses do aluno, mas ao mesmo tempo suficientemente firme para conseguir impedir que o aluno –o eu primário– tome conta da nossa vida. É preciso aprender a dar‑lhe expressão, a dar‑lhe o recreio de que ele necessita mas sem excesso. Isso faz‑se identificando aquilo de que realmente ele (o aluno, o eu primário) gosta –não aquilo de que o eu pensante ou os outros queriam que ele gostasse– e dando‑lho nas quantidades necessárias para o manter tranquilo e satisfeito ao mesmo tempo que o eu professor (o eu pensante) mantém o controlo.
No fundo, a Ars Vivendi é ser um bom professor ou um bom pai de si próprio: o que decide para o aluno ou filho que jornal se deve ler e por quanto tempo.
quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009
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