quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Da Liberdade e do Liberalismo

O grupo e o Indivíduo

Um problema intrínseco à nossa espécie é o conflito entre o interesse do grupo e o interesse individual. Isto acontece porque somos uma espécie que obtém recursos do ambiente através da cooperação: há quem semeie trigo, há quem faça o pão, há quem o venda; quem o compra não sabe fazer nenhuma das coisas anteriores, mas sabe, por exemplo, ensinar os filhos de quem semeia, coze e vende o pão a ler, a escrever e a contar, que são necessários às anteriores.
Para que este sistema funcione, cada um deve fazer bem aquilo que lhe compete: quem semeia tem de semear bem; quem ensina tem de ensinar bem. Para isso requere­‑se uma certa dose de especialização: só se é bom professor depois de estudar bastante; só se é bom padeiro depois de fazer um estágio longo. Esta especialização implica que cada pessoa faça a sua tarefa da maneira que os outros esperam que ela a faça e nos horários esperados pelos outros: para que a cooperação funcione, o produto da actividade de cada pessoa deve integrar­‑se de maneira precisa com o produto das actividades dos outros.
Por isso o indivíduo não pode colocar­‑se dúvidas existenciais sobre si próprio ou sobre o sistema, porque essas dúvidas geralmente afastam as pessoas do seu papel social. Para que uma sociedade funcione o melhor possível (em termos de produção) o ideal seria que cada pessoa ocupasse o seu lugar sem nunca se questionar. Na verdade, se cada pessoa fosse rigorosamente programada para o seu papel, de maneira que nunca o pusesse em dúvida, a produção seria máxima.
Isto tem um custo: o de que os desejos do indivíduo não podem ser completamente satisfeitos. Esses desejos são, como veremos, a expressão individual, a afirmação do eu, que se traduz em ter influência sobre o meio à nossa volta, em expressão da nossa vontade e opinião sobre o meio, em controlo, em posse, numa palavra, a individualidade corresponde à vontade daquilo a que se chama poder. Se toda a gente seguisse os desejos de expressão de si a nossa espécie não se distinguiria muito da maior parte das outras, em que a vida social é uma luta constante pelo domínio; ou, na melhor das hipóteses, haveria grupos de interesse que dominariam todos os outros, como na Máfia. É para contrariar isso que, nos estados modernos, as leis existem: para impedir que uma pessoa ou grupo submitam os outros pela força e para tentar repartir os resultados do esforço do grupo cooperativo por todos.
Se os seareiros decidirem não semear, os vendedores não vender e os professores não ensinar, o sistema entra em colapso. Em consequência desse colapso cada um teria de conseguir arranjar o seu próprio alimento e não faria mais nada além disso. É a cooperação que nos salva da sorte da maior parte dos animais.

Individualismo/colectivismo

O problema compreende­‑se melhor se o concretizarmos: o que é que queremos para nós próprios? Ser um robot que trabalha para o bem da sociedade que o sustenta ou um ser pensante que questiona essa sociedade? Posto o problema assim, quase toda a gente preferiria ser um ser pensante que expressa a sua individualidade, mas como disse acima, isso não é o que melhor promove a sociedade cooperativa. Por outro lado, o indivíduo nunca funcionará sentindo que não consegue expressar a sua individualidade; e um indivíduo anulado é pouco produtivo.
Esta distinção entre os interesses do indivíduo como ser isolado e do indivíduo como elemento de um grupo cooperativo nunca foi bem solucionada na nossa espécie precisamente porque não tem solução. A ideia da sociedade sem classes falhou porque a vontade de poder (e, consequentemente, de ter) não se extingue por decreto. A ideia de um grupo dirigido por um chefe esclarecido falhou também porque é impossível que esse chefe não seja contestado por quem não se sente suficientemente retribuído. Veremos adiante que o liberalismo tenta, precisamente resolver este problema mas que falhou completamente.

A liberdade

Talvez a contribuição filosófica mais importante do Séc. xx tenha sido a afirmação da liberdade. Se ainda no Séc. xix Gustave le Bon podia dizer, da revolução francesa, que fora motivada pela vontade de igualdade e muito pouco pela de fraternidade e liberdade, no Séc. xx a liberdade, como escolha interna de um caminho, foi formulada de maneira muito clara. Essa liberdade era sobretudo liberdade de Ser, quer dizer, escolher os nossos critérios de avaliação e, por conseguinte, o nosso caminho. Para que essa escolhe seja possível temos de nos conseguir libertar das opiniões comuns, das ideias feitas, dos preconceitos e pensarmo­‑nos e à sociedade de novo. Trata­‑se, portanto, de uma liberdade sobretudo mental, que implica conhecermos o que nos move como indivíduos e, segue­‑se, o que nos move como espécie. É essa uma tarefa difícil para que a cultura ocidental não estava preparada e para que a nossa espécie não está programada: a nossa espécie baseia­‑se na cultura, na cópia de modelos sociais que se nos apresentam e que não questionamos. Querer pensar em vez da cultura é uma tarefa hercúlea, mas a tentativa não foi infrutífera: apesar das ortodoxias impostas pelo bem­‑pensantismo, houve propostas originais e reflexões importantíssimas (Sartre, Unamuno, Vergílio Ferreira, para citar apenas algumas). Os pensadores do Ser tiveram importância social na medida em que levaram a maior parte das pessoas cultas a ter hábitos de questionação e de reflexão.
Como já vimos, quando os indivíduos questionam os papéis que a sociedade lhes impõe há potencial instabilidade. Foi, naturalmente, nos meios académicos que essa questionação foi mais forte: o Maio de 68 foi o resultado da tendência para tudo problematizar e tudo pôr em causa. Mesmo que se considere o Maio de 68 como uma revolta dos instintos contra as tarefas de cooperação social, os esforços do Séc. xx para pensar o ser tiveram resultados grandiosos. Procurava­‑se dar resposta ao problema mais fundo de todos: o que é que significa existir, qual é o sentido da vida e como gerir esse (ou essa ausência de) sentido. Quem quer que conheça a riqueza dessas respostas tem de admitir que o programa era profundo e que algumas das ideias mais inteligentes, esclarecedoras e profundas da Europa ocorreram durante essa busca. Uma sociedade que produza pensadores capazes de fazer a pergunta «o que é que significa dizer ‘eu’» não pode ser completamente má.
A essência da liberdade é, pois, a questionação da existência, do porquê das coisas, do porquê de mim mesmo: ao compreender o que faço, porque o faço, o que sou, o que é a sociedade e como me organizo na sociedade cooperativa, posso decidir o que quero fazer. Tenho de conhecer­‑me bem a mim e à sociedade em que vivo para conseguir saber o que realmente quero.
Assim, a liberdade é principalmente interior: saber o que quero e como o posso obter para poder escolher. Esta ideia tem a consequência de que a liberdade só se adquire através de uma educação não para o fazer mas para o pensar. O mesmo raciocínio foi feito no iluminismo, e no Séc. xix: educava­‑se para a cidadania e para a complexidade (no positivismo foi dito que a educação permitia domínio do mundo, mas o positivismo recusava a interioridade e nunca pretendeu educar ninguém para se auto­‑questionar: educava­‑se para o progresso).
Dado que a liberdade é interior e individual, poder­‑se­‑ia esperar que ela fosse defendida pelos movimentos democráticos e individualistas (nunca poderia vir dos movimentos comunistas que pretendia anular o indivíduo ou dos movimentos fascistas que pretendiam anular o sujeito pensante para o substituir pelo sujeito de acção emocional).
Contudo foi o próprio individualismo que se esperaria que defendesse o Eu, que, sob a capa das democracias liberais, se auto­‑proibiu de buscar essas respostas.

Concretismo, liberalismo e capitalismo

O Eu e a liberdade não se vêm. São conceitos abstractos. Definir a liberdade do Eu só é possível se as pessoas tiverem noção clara do que são «por dentro», isto é, psicologicamente. Nunca conseguimos fazer uma boa teoria do Homo psychologicus. Houve Freud, mas compreendeu­‑se que, se a tentativa era brilhante, os resulados eram muito questionáveis. A psicologia do «ser interior», fenomenológica, não se desenvolveu suficientemente e não há uma teoria maioritariamente aceite sobre o que somos – o antigo problema d’«A Natureza Humana». A dificuldade vem, precisamente, de que a mente não se vê – como diria Descartes, não se mede nem é (facilmente) descritível em termos de quantidades.
Assim, para a maioria das pessoas, questões como a liberdade de pensamento (não me refiro à de expressão mas à de autoria) e de auto­‑determinação do Eu são abstrusas. A maior parte das pessoas contenta­‑se em satisfazer o prazer imediato tanto quanto possível dentro da lei. Vêm melhor o que ocorre fora delas e aos seus corpos do que o que se passa dentro da mente.
A cultura britânica tem uma longa tradição de depreciar o que não se vê: até a pessoa é definida como um corpo («a body» queria dizer uma pessoa, até há relativamente pouco tempo; daí o «anybody», «nobody» e vários outros). Esse «sólido bom senso», essa «hard headedness» (que se traduz como «dureza de cabeça») de que os anglo­‑saxónicos se orgulham gerou, através de pensadores brilhantes, o empirismo, a crença de que é o que vem do exterior que é importante (Occam, Bacon, Hobbes, Locke, Hume). Esta importância no exterior levou, nos Estados Unidos, aos extremos do behaviorismo (faz­‑se o que o meio nos faz fazer, é­‑se o que se faz), actualmente quase abandonado. Mas uma versão idêntica (é­‑se o que se faz) predomina actualmente em todo o mundo, proveniente, de novo, de um pensador escocês e da prática americana. O pensador é Adam Smith e a sua teoria tem um impressionante mérito: o de acabar com o conflito entre o bem do indivíduo e o bem colectivo. O que Smith mostrou foi que se cada indivíduo jogar para seu benefício, todos ganham desde que entrem no sistema de oferta e de procura. O indivíduo egoísta enriquece ao vender as coisas que os outros desejam e pode comprar, com os seus ganhos, o que o seu desejo egoísta lhe ditar: se todos os outros seguirem a mesma regra, todos ganharão egoistamente através da compra e venda aos outros. Esta ideia resolve, aparentemente, a oposição entre o bem colectivo e o bem individual: ao promover o seu egoísmo, o indivíduo promove o bem­‑estar colectivo; do egoísmo emerge a perfeição social.
A liberdade é assim definida não em termos interiores mas em termos do que um indivíduo pode fazer. Trata­‑se de liberdade de comportamento e não de liberdade de pensamento ou de decisão. Assim, eu posso não fazer a menor ideia de quem sou ou das razões por que faço as coisas mas ter liberdade para fazer o que vejo os outros fazer – no caso, vender e comprar. Esta definição «positivista» da liberdade (positivista porque se trata de uma coisa que se pode medir) corresponde às nossas liberdades política e económica.
Teoricamente, pode ser útil aumentar a liberdade política e económica para que passe a haver maior liberdade interior. Para que o sujeito se possa realizar enquanto pensamento e liberdade intelectual é primeiro necessário que não sofra fome, nem frio nem desconforto demasiado grandes; de modo que o liberalismo resolveria os problemas materiais e permitiria que as pessoas se dedicassem privadamente ao seu desenvolvimento pessoal. Mas não foi esse o efeito. O que ocorreu foi que a liberdade se passou a definir apenas em termos do poder de aquisição e não em termos de auto­‑determinação interior. O liberalismo é um positivismo e como tal rejeita quaisquer considerações não concretas, não quantificáveis, não visíveis: a liberdade de se escolher o que se é não se vê nem se mede, logo não é um factor que se considere; a liberdade de adquirir, essa, pode­‑se ver e medir, logo é, para o liberalismo, a própria definição de liberdade.
Assim, uma pessoa é considerada um aquisidor, um produtor, em suma, um mercado; deixa de se definir por uma mente e por uma visão do mundo mas apenas pela sua capacidade de produzir e de comprar. Passa a haver apenas cidadãos com poder de compra e valor de mercado: a mente, o crescimento pessoal, o sentido crítico, são coisas que não se vêm e sobre as quais o liberalismo não se pronuncia porque nem as considera.
De maneira que o que o liberalismo (e as democracias parlamentares que o defendem) abusou da polissemia da palavra «liberdade». Repetindo­‑me, Liberdade significa que uma pessoa escolhe o que vai fazer e porque é que o vai fazer. Para poder escolher, o indivíduo tem, primeiro, de Ser, e de conseguir definir o que é. Na versão liberal, o indivíduo tem apenas direito de comprar o que quiser e de se vender como força de trabalho. Confundiu­‑se assim a verdadeira liberdade – a interior – com uma sua expressão mais simples, concreta e visível: a liberdade de comprar e de trabalhar, independentemente de pensar. Para tornar mais plausível esta noção de liberdade, há eleições em que se escolhe entre candidatos de um aparelho que ninguém conhece realmente. É uma liberdade fictícia (mas que tem a vantagem de convencer as pessoas de que o que sucede politicamente está sob o controlo delas, o que torna implausíveis revoltas).
Que eu saiba, essa concretização da liberdade pessoal em liberdade política e económica foi expressa, na sua versão mais forte, pelo «american way of life»; a Europa importou, inicialmente com algumas reservas e, a partir dos anos 80, quase completamente, essa visão. A «sociedade de consumo», inicialmente muito contestada é agora considerada o estado natural do homem moderno.

Novos mercados: a criatividade do capitalismo

O capitalismo tal como o conhecemos assenta na ideia de que o valor mais importante é a compra e a venda seja do que for. Há coisas essenciais e outras irrelevantes na vida das pessoas. Segundo a doutrina capitalista ambas valem o mesmo. Quando os bens essenciais já circulam entre os cidadãos, as empresas devem crescer criando mercados. Criar mercados significa muitas coisas, mas entre elas está a ideia de convencer as pessoas de que necessitam de uma coisa de que não precisam; isto é, criar mercados significa manipular a mente das pessoas para quererem o que não queriam antes. A melhor forma de manipular as consciências é bombardear as pessoas com publicidade que lhes afirma que precisam de uma coisa. Ao fim de pouco tempo cria­‑se a necessidade psicológica de ter essa coisa. A criação de necessidades que o não são é admitida livremente a ponto de ser usada pela própria publicidade: «seria possível viver sem o produto x? Sim, mas não seria a mesma coisa».
Ao mesmo tempo é­‑nos dado a entender que o que compramos nos revela (aos outros e a nós próprios) como pessoa de sucesso (Barthes). Sempre ocorreu que «não se possa não ter» algumas coisas completamente inúteis. Isso ocorria nos meios ricos. Mas agora ocorre em todas as camadas e em todos os produtos: automóveis que se vendem pelos «acessórios», telemóveis que fazem tudo além da sua função primária, computadores pessoais com potência com que ninguém sonhava há 30 anos e que ninguém usa a não ser para ter «um ‘look’ diferente» (mas exactamente igual ao de milhões de outros) que em nada afecta a funcionalidade. Sempre se gostou do luxo; mas o luxo passou a necessidade porque a mente que o capitalismo criou (em grande parte graças à publicidade) mede o sucesso e o bem­‑estar em termos de medidas exteriores, das medidas que os economistas usam como definição de bem­‑estar. O facto de se ter uma televisão com super­‑definição ou um computador com «gráficos espectaculares» não faz ninguém menos infeliz. Mas as pessoas convenceram­‑se de que sim porque lho disseram, indirectamente, milhões de vezes.
O carácter manipulativo e invasor da nossa liberdade é particularmente visível na publicidade dirigida às crianças. Desde o momento em que a criança se tornou um consumidor (através da pressão que exercem nos pais) passou a haver publicidade dirigida a mentes em formação e que ninguém afirma poderem ser capazes de escolha. Dantes essa publicidade via­‑se no Natal; agora é contínua. Esta liberdade de vender e de impingir é o contrário da liberdade mental de poder escolher por si. Ninguém pode razoavelmente esperar que uma criança educada no consumo chegue à maioridade e diga, subitamente: «Agora compreendo tudo, têm­‑me manipulado mentalmente mas vai passar a ser diferente agora que tenho 18 anos». Não, uma pessoa que seja educada na lavagem ao cérebro tem o cérebro lavado, vazio.

A educação para a Função

Para isto concorre um outro aspecto: a educação. No passado a educação dada pelos Liceus correspondia, de certa forma, à Bildung alemã de antes da 2ª guerra mundial: pretendia­‑se formar cidadãos que conseguissem pensar por si, que conseguissem problematizar, que fossem filósofos no sentido literal do termo (amor pelo saber): pessoas que tinham uma visão do mundo e que agiam baseadas nessa visão do mundo. A educação era complexa, havendo Filosofia mesmo nos cursos de ciências, e preparava para a universidade, que se prentendia (com sucesso ou não é outro problema) criar pessoas com uma visão de conjunto aprofundada sobre uma área de conhecimento. De há anos para cá, e por pressão tecnocrática, não se ensina os estudantes a pensar mas apenas se prepara pessoas para postos de trabalho. Os próprios estudantes é o que pedem: são muito poucos os que querem compreender o sentido das coisas. O que a maior parte quer é saber fazer determinada coisa que lhe dê um bom emprego, um emprego que lhe permita comprar à vontade.
Enquanto que no passado a universidade pretendia formar pensadores agora forma peças de um mecanismo: peças que não entendem o mecanismo na sua complexidade mas que asseguram bem a sua função e que, sem o saber, mantêm a máquina social. É isto que é hoje a alienação: as pessoas são treinadas para saber o suficiente para receber uma recompensa em termos de bens materiais e não sabem mais nada além disso. Não sabendo mais além disso não podem pôr o sistema em causa, que se auto­‑perpetua assim.
Isto ocorre mesmo que as pessoas sejam extremamente infelizes e que os níveis de angústia sejam máximos. Somos uma sociedade de anti­‑depressivos, ansiolíticos e psicólogos que tentam ajudar as pessoas a aguentar uma vida insuportável, baseada na concorrência com os outros e na compra de mais coisas para mostrar aos outros que se é mais importante do que eles. Sendo o único valor a concorrência, a competição, há sempre muito mais perdedores do que ganhadores. Na derrota, os perdedores acham que não têm forças para competir, porque competir, vencer ou perder, foi a única coisa que se lhes ensinou. Nunca pensam, porque não têm maneira de o pensar por falta de capacidade de enunciar esse tipo de problemas, que é o próprio sistema que as faz infelizes e que comprar não resolve a angústia. Como já se disse, seria necessário menos Prozac e mais filosofia; mas o que de facto se está a dizer é que este sistema de competição contínua leva as pessoas ao desespero e que, simplesmente, não funciona. Não funciona porque não dá às pessoas nem identidade (a não ser os sinais exteriores de riqueza) nem capacidade de problematizar seja o que for fora da sua especialidade. Não funciona porque não somos formigas que, essas sim, estão programadas geneticamente para servir a colónia. A liberdade verdadeira não é a liberdade de comprar e de copiar opiniões, mas a liberdade de pensar por si e de escolher profundamente o que se quer.
Em muito maior grau do que Freud o afirmava, a nossa sociedade produz neuróticos, com a agravante de que esses neuróticos não são capazes de perceber a razão de ser do seu neuroticismo. A pessoa já não é uma entidade psicológica e social, mas sim um mero instrumento de fazer coisas que são pagas; o único prazer que lhe é permitido é mostrar aos outros que é melhor, o que, se tiver sucesso, deprime os outros; e se fracassar deprime o próprio.
São tempos horríveis (uso a palavra com plena consciência do seu significado), os que vivemos, então: cada pessoa é um operário, independentemente do seu nível de formação. Um operário é um robot mandado por outros, é um mecanismo que só sabe fazer o que aprendeu e que não compreende porque é que o faz. Quantos de nós poderão dizer actualmente que receberam uma educação que lhe permite a compreensão do mundo? Quantos de nós saberão realmente dar uma opinião informada sobre coisas fora do seu domínio de especialidade? (Não falo de quem diz que sabe – gurus, especialistas instantâneos, peritos que tantas vezes falam do que não sabem mas que o fazem com grande segurança). Colocar a questão é responder­‑lhe: não sabemos o que fazemos, para que o fazemos, não compreendemos o nosso lugar no mundo e nem sequer compreendemos o mundo. Somos como formigas que levam, cegamente, a comida para um formigueiro que nem sabem que existe. As formigas são felizes ao fazê­‑lo; nós não.

É possível mudar?

Dado que a situação é de ignorância, de falta de capacidade de compreender, a única possibilidade é que quem pensa compreender, ainda que vagamente, o que se passa, o diga e o afirme. Naturalmente que as pessoas que melhor o poderiam dizer, porque têm a imprensa aos seus pés, são os políticos; mas eles nunca o dirão dizer porque um político tem de ser eleito e não é popular dizer às pessoas que elas estão massificadas. Mais, a mensagem é difícil de passar a seja quem for, porque corresponde a dizer às pessoas que elas são tolas e que a vida delas é inútil. Quase ninguém dá por isso porque o capitalismo tem a terrível eficácia de dar às pessoas angustiadas brinquedos alienantes que as impedem de pensar ou questionar as razões da sua angústia. O capitalismo é, pois, como um vírus que inibe o sistema imune: uma vez infectada, a vítima perde a capacidade de defesa. Por isso é tão difícil discuti­‑lo: todos fomos, em maior ou menos grau, programados a agir mais do que a pensar, a fazer mais do que a problematizar, a recusar a interioridade em favor da eficácia.
Outra dificuldade – esta menor – em transmitir o que aqui defendo é que a mensagem não se identifica claramente com as partições políticas geralmente aceites. A ideia pode ser expressa por uma pessoa de esquerda ou por uma pessoa de direita. A esquerda não totalitária será sensível à necessidade de auto­‑determinação pessoal, a direita será sensível à necessidade de cultivar valores que dêm sentido à vida pessoal. Reclamar a liberdade de pensamento não é um direito da esquerda ou da direita; é um direito de qualquer indivíduo, um direito que deveria constar de qualquer constituição.
Como dizer às pessoas que é melhor ganhar menos e ter menos coisas e ser mais livre? Quem nunca aprendeu a pensar nunca sentirá a necessidade de liberdade de pensamento: quer apenas ter, porque foi essa a maneira de se exprimir que aprendeu. É esta a magnitude da dificuldade. É difícil mas pelo menos deve­‑se tentar. A primeira coisa a fazer seria discutir a questão da liberdade mental nas sociedades capitalistas. Foi o que eu tentei fazer aqui.
Lisboa, Abril­‑Maio e Julho de 2009,
Rodrigo de Sá­‑Nogueira Saraiva

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Ars Vivendi: Ler o Jornal1

Um fragmento de Georges Daninos (sobre a nostalgia da inocência de uma vida toda programada: Monsieur Massenavette), a Aparição do sentir o eu, de Vergílio Ferreira e a Madame Bovary, de Flaubert, são os três inspiradores deste texto (incongruentes? Mas um trágico é sempre um cómico e vice­‑versa; e creio que Flaubert se riu e enterneceu ao mesmo tempo com as Bovarys que conheceu). M. Massenavette é um pasteleiro de uma cidade de província e Daninos inveja a vida dele por um segundo: uma vida calma, assente em princípios que não são postos em causa e todo entregue à sua profissão. Na Aparição discute­‑se a descoberta do eu, o milagre do ser contra o não ser. Na Bovary trata­‑se da necessidade de sentir e de viver intensamente.
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Quando eu era pequeno tinha a ideia de que os crescidos se levavam a sério e habitavam totalmente a personagem que eu via. O protótipo disto era a leitura do jornal: via­‑os ler o jornal, muito seriamente, mas não entendia como era possível uma pessoa interessar­‑se por coisas tão desinteressantes (porque separadas do desejo auto­‑centrado) como a política ou os faits­‑divers.
De tanto ver as personagens, em pequenos, acabamos por acreditar nelas. É mais tarde, quando tentamos nós próprios entrar para as personagens (usando o exemplo, quando tentamos achar o jornal interessante) que as coisas se alteram, porque sentimos a incapacidade de sair do nosso eu simples e auto­‑centrado que só se interessa pelos seus próprios caprichos e vontades. No jornal lê­‑se sobre coisas que não somos nós, pelo menos no sentido de não serem coisas que nos afectam directamente. É preciso uma pessoa sentir­‑se parte de uma sociedade, de um conjunto de normas, para compreender em que é que as notícias políticas ou económicas a afectam. Uma criança nunca será capaz disso, porque vive integralmente no plano dos desejos primários: aquilo a que o Freud chamaria o princípio do prazer.
A pessoa que lê o jornal com prazer sente­‑se, como M. Massenavette, parte de uma comunidade, conhece o seu papel, toma partido e assume o papel que a comunidade lhe deu. No limite, vive no papel, sem nunca sonhar com problemas existenciais ou sequer psicológicos. Os Mm. Massenavettes são a matéria­‑prima de que se fazem as sociedades estáveis: são a carne e o espírito que dão corpo às estruturas sociais. Cumprem, fazem cumprir e não existem como seres questionadores. Não compreendem a Aparição e nunca cederiam às tentações de Emma Bovary: a sua personagem social nunca o permitiria. A Bovary, pelo contrário, não tolera a obediência às normas do seu estatuto. Em parte porque é ambiciosa, em parte porque não as compreende mas as despreza, em parte –e talvez sobretudo– porque precisa de sentir. E como sentir para um espírito simples é apenas sentir os prazeres primários, procura o sexo. Mas, como a criança de Freud, vive no princípio do prazer. De resto, é um M. Massenavette que a Bovary rejeita: o seu marido, contente com a sua sorte.
Emma Bovary tipifica aquilo a que chamo não acreditar na personagem por baixo. Não conseguimos compreender os atractivos da personagem –não conseguimos chegar a ler o jornal, e apenas podemos fingir que o fazemos– porque o que realmente tem significado para nós são os nossos desejos imediatos, aquilo que nos cerca: não conseguimos interessar­‑nos pela discussão de uma lei que não nos diga respeito, não conseguimos interessar­‑nos pela ideia de «país». Somos todos no nosso querer e desejar e não no que se passa fora de nós e sem relação directa connosco.
Mesmo quando finalmente conseguimos interessar­‑nos pelo que se passa longe de nós –quando finalmente temos interesse na leitura do jornal– há sempre grandes tentações de cair no egocentrismo infantil. Se pudermos conseguir ser o centro do mundo e ter o que desejamos sentimo­‑nos de novo como crianças e sentimos o prazer inteiro do desejo gratificado. Daí que, na adolescência e, para muita gente, durante toda a vida, consideremos os que jogam realmente as regras e que se interessam principalmente pelo que vem no jornal uns tansos, uns ingénuos. Afinal, a regra que aplaudimos quando lemos o jornal pode ser a honestidade, mas eu vou lá resistir a ficar com o dinheiro todo ou a ir para a cama com a bela mulher de um amigo! Há, portanto, muitas pessoas que já lêem o jornal, mas sobretudo sobre o seu clube, sobre o seu carro, o seu computador, e têm sempre um olho para o que podem arranjar como gratificação primária. Digamos que lêem o jornal porque fica mal ler (ver?) o Playboy. E por isso há tantas «Revistas do Automóvel», «A Bola» e «Maria».
Há uma forma particular de mascarar o rejeitar por baixo em rejeitar por cima que é muito frequente. Isto é, conhece­‑se a personagem mas não se gosta dela. As razões são superficiais: rejeita­‑se apenas por achar que viver «daquela maneira» é vieux jeux ou «foleiro», sem realmente compreender o que se rejeita. Finge­‑se então um desdém «superior» pela posição que não se compreende porque se é primário e auto­‑centrado. Na minha memória estão todos os pedantes de todos os círculos «bem­‑pensantes» e muitas raparigas bonitas que se recusavam ao banal – como a Bovary. A recusa era puramente infantil: queriam apenas a gratificação imediata, mas, imitando quem realmente se pergunta porquê ler o jornal, diziam que o não liam porque o desprezavam. E dizendo­‑se acima das regras tentavam (e conseguiam e conseguem, pelo menos durante algum tem­po) que as outras pessoas os deixem seguir apenas a necessidade primária de prazer imediato, em nome de um «ideal» mais profundo. Ou seja, dizendo­‑se acima das regras, essas pessoas conseguem viver por baixo delas com o consentimento dos outros.
Claro que uma rejeição profunda da personagem é muito diferente e mais rara – na verdade é raríssima e provavelmente nunca é integral. Estar realmente acima da personagem implica compreendê­‑la, compreender o eu e compreender que, qualquer que seja a personagem, o eu é mais do que ela. Isto significa compreender que o que eu faço ou sinto não é tudo aquilo que sou, e que o eu mais verdadeiramente Eu é o que observa o que faço e sinto. Nesse sentido, o eu é a tal aparição de que o Vergílio Ferreira fala, o milagre de ser um eu. O eu­‑desejo, sensação de ser e prazer de fazer não é afinal eu próprio; eu sou quem pensa esse eu, quem o vê e quem o comenta. É, afinal, o aparecimento do eu racional, do eu cartesiano, que pode tentar compreender o outro eu, o dos impulsos, entu­siasmos e deveres.
Não se trata de dois eus diferentes, mas apenas de duas localizações diferentes da nossa atenção: a primeira é mais emocional e directa; a segunda existe num plano mais neutro, de não acção e de observação das possibilidades e das razões da acção.
Ainda que quase ninguém enuncie esta diferença entre eu­‑ac­ção/ emo­ção e eu­‑observação dos meus sentimentos e acções, as pessoas têm potencialmente consciência da diferença porque essa consciência está implícita na linguagem: «eu sinto­‑me alegre», «eu fiz uma asneira». Nestes casos a linguagem afirma os dois eus: o que observa é o que fala e refere­‑se ao eu que sente e fez. Na maior parte das pessoas este eu «comentador» limita­‑se a observar o que o eu acção faz. Nesse sentido pode criticar­‑se: «mas que estupidez», diz o eu comentador, «o que eu fiz!», sendo este segundo eu o eu agente. Mas essa crítica segue critérios que foram importados de outras pessoas, do que se ouviu: ou, retomando a metáfora, critérios aprendidos no jornal. Não são critérios que tenham sido realmente pensados pela pessoa.
Em parêntesis, é interessante notar que tanto M. Massenavette como Emma Bovary nunca desenvolvem realmente a capacidade de se questionar autonomamente. É certo que M. Massenavette se vê como membro da sociedade, visto e questionado por ela, enquanto que a Emma Bovary se centra sobretudo no seu prazer de mulher. Mas nenhum deles consegue criar novas regras ou justificar realmente o seu comportamento: «porque os outros fazem assim» e «porque eu quero» são as únicas explicações que eles poderiam dar de fazerem o que fazem. E fecho o parêntesis.
Quando as sociedades são estáveis, produzem­‑se os Mm. Massenavettes, que se entregam de alma e coração à sua personagem e tiram dela verdadeiro prazer: afinal vêm­‑se fazer o único papel que aprenderam. Podem subsistir angústias, mas geralmente os reforços sociais são suficientes para manter a pessoa bem disposta. Quando as sociedades são instáveis, produzem­‑se os camaleões sociais que vão copiando modelos aceites, mesmo quando são internamente contraditórios. São pessoas que copiam, que não são autoras da sua identidade e nem sequer questionadoras: são o que a sociedade lhes propõe e se o modelo é fragmentado e sem sentido, não são elas que o vão notar. Os Mm. Massenavettes, como as actuais pessoas em semi­‑crise existencial porque é bem ser­‑se profundo, são equivalentes e ambas lêem o jornal com prazer: apenas os jornais do tempo dos Mm. Massenavette eram mais coerentes do que os de agora.
Em todos estes casos a posição do eu que observa existe – na verdade é responsável pela exigência de ler o jornal, qualquer que ele seja. Mas a posição não é autónoma, mas controlada pela programação que nos vem de fora, seja ela conservadora ou post­‑moderna.
§
Em algumas circunstâncias –o sofrimento psicológico e subsequente dúvida sobre si próprio, por exemplo– esse eu questionador ganha autonomia. A pessoa encontra­‑se mais tempo no estado de pensar nos seus próprios porquês. É nesse estado que podemos perguntar porque é que lemos o jornal, porque é que defendemos a família, porque é que somos de esquerda.
A descoberta do eu –a aparição do ser, como diria Vergílio Ferreira– é menos uma experiência existencial do que cognitiva. Como disse, a linguagem dá a todos a experiência de enunciar o eu racional (o «eu vou fazer» implica a existência desse espectador). Mas esse eu espectador não procura razões e, como nos casos anteriores, apenas se enuncia quando comenta o que o eu vital ou codificado pelos outros sente ou quer. É apenas quando aparece a capacidade de questionar (porque é que eu gosto de ler o jornal?) que surge o problema do significado, o problema da existência. No fundo a «aparição» é apenas perguntar porquê, é a passagem do eu agente ou emotivo para o eu pen­sador.
Como Vergílio Ferreira parece ter compreendido, essa experiência não é, em si, traumática a não ser que seja acompanhada da descrença num conjunto de valores – seguindo a metáfora, descrença da existência de qualquer jornal digno de se ler. Deus é a explicação natural desse conjunto de valores, mas não é a única: em vez de Deus pode ser a crença numa ordem natural, no progresso e no papel que cada um de nós representa nesse progresso ou, na verdade, qualquer outra convicção. Tem apenas de ser uma crença numa coisa maior do que o próprio eu, exterior ao sentir infantil do eu que deseja e se zanga. Voltando à metáfora, a pessoa interroga­‑se se o jornal tem os critérios que deveria ter. Questionar um critério não é apenas dizer que não como as Bovarys e os oportunistas na moda. Questionar realmente significa fazer o esforço de compreender o que esse critério realmente significa e não ficar convencido por esse significado; questionar realmente implica tentar outros critérios ou, no mínimo dos mínimos, tentar modificações ao critério. Para questionar critérios é necessário que a própria pessoa tenha ela própria critérios pessoais. Para o fazer tem de ser eu pensante, eu racional: tem de apresentar um sistema de valores autónomo. É esse sistema de valores que o sujeito cria que se torna maior do que ele e que lhe dá sentido da vida. É, pois, um substituto racional de Deus: uma entidade maior e exterior a nós próprios que determina como as coisas se devem fazer.
A verdadeira crise existencial não ocorre, pois, com a emergência do ponto de vista reflexivo e crítico do eu. A crise ocorre quando não se acredita na existência dessa entidade maior e se compreende que essa entidade é apenas uma projecção da nossa mente – mente que é, afinal, tudo o que existe. Nesse caso fica­‑se apenas com o eu original, o eu da criança e do adolescente mimado que quer, que sente e que deseja. M. Massenavette parece­‑nos longínquo, impossível, improvável e invejável no seu conforto assente em verdades eternas e nunca questionadas. A crise acontece quando se compreende a solidão profunda e essencial de existir: eu existo apenas na minha mente e nas minhas representações, e o resto apenas me afecta na medida em que eu reagir e me sentir atingido. As crenças dos outros podem não me atingir; mas atingir­‑me­‑á sempre o desejo, a dor, a fome. Sou então como a Emma Bovary? Não, porque sei que mesmo os meus desejos são irrelevantes a não ser para o meu corpo e nunca darão sentido ao desespero fundamental de não compreender o sentido de existir. Como a minha própria existência é apenas um acidente, um dia vai desaparecer o meu eu e com ele todo o mundo, porque o mundo é apenas o que eu represento. E isso não coloca nenhum problema, porque com a morte desaparecem todos os desejos; na ausência absoluta de eu é impossível sentir, de modo que a morte não pode assustar – é apenas um estado de não ser, que não se sente. A morte –o não ser– é desejável, porque se pára o ciclo infernal de compreender e não fazer sentido e compreender­‑se que não faz sentido.
O eu pensante compreende, então, que se é verdade que ele próprio não tem verdades, ele é, contudo, a única verdade. E quem vive predominantemente na posição de eu pensante não tem a escolha de se dedicar apenas ao eu­‑acção e emoção. Já que se vive no mundo como observadores, tentemos que o que observamos faça sentido e que tenha interesse: afinal, temos uma vida para viver. Ao compreender isto, tudo quanto nos é exterior –nomeadamente qualquer entidade maior, qualquer moralidade– deixam de existir. A razão, afinal, não tem verdades. É esta toma­da de consciência da superfluidade da razão que é a verdadeira experiência traumática, mais ainda que a negação de Deus ou de qualquer ordem: é a negação da importância do próprio ser pensante e do próprio acto de pensar. É, portanto, a constatação da completa irrelevância do ser, de se ser.
Não há saída para o problema: se quisermos impor, em qualquer caso, uma ordem, saberemos sempre que ela é arbitrária e nunca seremos convictos na acção; se quisermos ser vitais, como, digamos, um touro, nunca o conseguiremos, porque nos é impossível: estaremos sempre a ver­‑nos ser touro e não a sentir­‑nos touro, porque a decisão de ser touro vem da razão e não do instinto de ser, do eu primário. O problema é, como o Freud o compreendeu (Neurose e Civilização), in­solúvel.
A única saída –pelo menos aparente– é o hedonismo completo, fazer aquilo que me dá menos problemas e mais prazer. Não é o que vem no jornal, mas não esqueçamos que o Playboy é também um jornal: lêem­‑no os idiotas que se vergam ao deus desejo como quem se vergou a outra norma qualquer. Prazer, hedonismo, neste texto significam apenas procurar aquilo que torna a duração da nossa vida suportável. O que cada um acha que é melhor para si depende da pessoa. Mas é raro que seja apenas o deboche, porque se paga sempre por isso. Geralmente, se se for inteligente, ter­‑se­‑á uma vida pacata e com hobbies –mesmo que secretos e considerados condenáveis– bem escolhidos para nos manter entretidos. E, quanto aos outros, é usá­‑los para o nosso prazer. Mas isso nem sequer sei se é possível a uma pessoa normal.
A Ars Vivendi está precisamente em saber atingir um equilíbrio entre dois pontos de vista do eu: os pontos de vista agente e pensante. Trata­‑se, pois, de atingir a sofrosine, o equilíbrio a que os gregos aspiravam (certamente sem sucesso – basta pensar em Sócrates). Para chegar a esse equilíbrio é preciso compreender bem o nosso eu primário, mas também os preconceitos do nosso eu racional. E temos de saber, connosco, ser como um bom educador: tolerante e respeitador das especificidades e interesses do aluno, mas ao mesmo tempo suficientemente firme para conseguir impedir que o aluno –o eu primário– tome conta da nossa vida. É preciso aprender a dar­‑lhe expressão, a dar­‑lhe o recreio de que ele necessita mas sem excesso. Isso faz­‑se identificando aquilo de que realmente ele (o aluno, o eu primário) gosta –não aquilo de que o eu pensante ou os outros queriam que ele gostasse– e dando­‑lho nas quantidades necessárias para o manter tranquilo e satisfeito ao mesmo tempo que o eu professor (o eu pensante) mantém o controlo.
No fundo, a Ars Vivendi é ser um bom professor ou um bom pai de si próprio: o que decide para o aluno ou filho que jornal se deve ler e por quanto tempo.