terça-feira, 20 de março de 2007

Sentir a música.

O Silêncio e o Sentir

A música só ocorre porque há silêncio. O silêncio é um estado de não ser, um estado em que não há tempo nem espaço, nem alto nem baixo, nem cor nem forma. É nessa escuridão que um som, depois outro, vão definir uma ordem.

Há ordem no tempo: uma série de sons é percebida como estruturada em termos métricos, como quando, no tique-taque de um relógio, ouvimos agrupamentos que só estão na nossa mente. Um, dois, três, um dois três, um, dois três. Mas – e basta fazer um pequeno esforço – pode também ser Um, dois, um dois, ou qualquer outro padrão. Se as notas se sucedem com qualquer relação temporal que sirvam ao ouvinte para pendurar uma estrutura temporal, a indefinição do silêncio será substituída por um espaço estruturado.

Há ordem no espaço, também: há acima e abaixo, há subir e descer. É intuitivo, inato, considerarmos os sons mais agudos como mais «altos» e os mais graves como mais «baixos». Não há nenhuma maneira de cantar as notas dó ré mi fá sol e ter a sensação de que se desce.

Há ordem no nosso sentir, também. O nosso corpo, como o silêncio, estão em estado indefinido. Mas quando ocorre uma sucessão de sons com determinadas relações, sentiremos que há notas que correspondem à distensão e outras que correspondem à tensão. Num discurso melódico organizado haverá notas de repouso, notas que perturbam esse repouso e notas que ocorrem entre pontos de repouso e não repouso. O nosso corpo sente isso em termos de tensão – enquanto o repouso não vem – e de distensão.

Finalmente, enquanto que o silêncio não tem cor nem forma, um som tem sempre brilho e textura – o timbre. Um saxofone ou um clarinete têm um som de veludo, um oboé é acre e áspero.

Ouvir o silêncio

Muitos músicos afirmam, talvez de forma nebulosa, que a parte mais importante da música é o silêncio. Penso que isto significa que tem de se estar bem concentrado no silêncio para compreender até que ponto a música é um estruturador do nada.

«Ouvir o silêncio» é difícil. É como fechar os olhos perante uma imagem e preferir ficar na escuridão. Ouvir o silêncio é um acto voluntário e deliberado.

Ouvir o silêncio é saber contemplar o nada, saber olhar para onde nada está. É como sentir a solidão – de resto, o silêncio é uma forma de solidão – o que a maior parte das pessoas evita. Sentir a solidão ou ouvir o silêncio é sentir o próprio ser, no seu estado de abandono, enquanto esse ser não é afectado por nenhum estímulo proveniente do exterior. Estar só, ouvir o silêncio, é sentir o que somos quando mais nada é. Não se trata de um mergulho introspectivo. É apenas a capacidade de experienciar a ausência de ser. Ouvir o silêncio é saber estar em repouso e sentir esse repouso sem o rejeitar.

É nessa ausência de ser, nesse estado incriado que a música vai estabelecer um significado. Só nos conseguiremos entregar a esse novo significado se conseguirmos primeiro reduzir a nossa própria actividade a ponto de nos deixarmos ser movidos pelo som que passa a estruturar o que antes era apenas repouso.

Quando a música – na verdade, pode tratar-se de outra experiência qualquer – passa a estruturar o sentimento difuso de nada, o nosso corpo entra em vibração com essa experiência. Sobre as outras experiências a música tem a grande superioridade de ser inespecífica: não é, como no sexo, na fome ou no calor, uma experiência centrada e imediatamente identificável.


Quando uma sucessão estruturada de notas nos atinge o nosso corpo «vibra» de acordo com ela. A sucessão de notas define, como disse antes, pontos de repouso – ou de equilíbrio – e pontos de desequilíbrio. A nota mais «forte» (geralmente a mais pregnante, a que foi tocada durante mais tempo, com maior energia ou simplesmente mais vezes) cria um estado de equilíbrio, uma expectativa do seu regresso. Esse equilíbrio é violado pelas notas mais fracas que funcionam como sons que esperamos transitórios: devem reconduzir à nota forte. Se se cantarem duas notas (duas notas quaisquer) verificar se á que a primeira a ser cantada, ou a que foi cantada mais tempo, funciona como uma espécie de âncora, de base: a outra nota parece uma perturbação dessa nota inicial e só atingimos o equilíbrio quando voltarmos a cantar essa nota inicial. Havendo mais notas o sistema é mais complicado, mas funciona da mesma maneira: há um ponto de equilíbrio para que se espera que o «sistema» de notas evolua. Enquanto esse ponto de equilíbrio não for atingido sentimos que o «problema» não está resolvido.

O processo funciona exactamente como quando observamos uma árvore a ser dobrada pelo vento. A árvore tem uma posição «natural» que é modificada pelo vento, que a dobra, mas esperamos sempre que a árvore volte à posição natural. Se isso não acontecer, tem se a sensação de que a árvore ficou «estragada». Quer dizer, se a árvore mudar de posição os termos do problema inicial alteram se: não houve uma solução para o desvio inicial mas sim uma avaria do sistema.

Com a música passa se exactamente a mesma coisa: esperamos que ela volte, como a árvore, ao ponto de equilíbrio.

Temos então que a música funciona como a estruturação de um equilíbrio que depois é perturbado e finalmente resolvido. Há muitas maneiras de se atingir esse equilíbrio final, mas enquanto se lá não chega, o nosso corpo tem a sensação de que algo não está resolvido (é, de resto, este o termo que se usa em música: a resolução de uma modulação quer dizer, a resolução de um afastamento do equilíbrio inicial).

Claro que a música não depende só disso: há cor, textura, ritmo, mas todos eles têm de estar subordinados a esta resolução do desequilíbrio.

O corpo sinestésico

«Sinestesia» quer dizer «sentir com». Só são sensíveis à música pessoas que sintam que o corpo delas vibra sinestesicamente com a música, isto é, que os desequilíbrios e equilíbrios da música se sentem no nosso corpo. Há pessoas para quem os sons são apenas sons, da mesma maneira que há pessoa para quem as cores são apenas cores. Há pessoas para quem não é muito importante que os cortinados sejam azuis, verdes ou vermelhos, ou mesmo que não haja cortinados. Podem preferir uma das cores, mas não é um problema importante. Outras sofrem com as cores de certos locais: alguns sítios são abafados, outros deprimentes, outros parecem frescos, uns tranquilos, outros demasiado tónicos.

Com a música passa se o mesmo: há pessoas para quem certos timbres ou certas sequências de sons evocam imediatamente uma vibração especial; outras para quem essa relação é muito menos óbvia.

Fala se muito, nas ciências humanas, de «emoções». Acho que o termo confunde mais do que ajuda. Quando se ouve um som o corpo identifica o em termos da sua textura: é áspero, é doce, é brilhante, é opaco. Não há qualquer emoção nesse sentimento. Trata se apenas de percepção. Da mesa forma, certas sequências de sons provocam sensações corporais particulares – tensão, distensão, plenitude, exaurimento. É desses sentimentos e da sua estruturação que é feita a música e não de emoções como a alegria, a tristeza ou o misticismo. É certo que o resultado de uma música particular pode ser a alegria. Mas isso acontece porque há uma série de percepções corporais que a isso nos conduzem. O equilíbrio é claramente afirmado, os sons são distintos, as notas têm inícios e fins bem definidos, os timbres são brilhantes – há muitos exemplos disto na música instrumental de Handel. Em consequência disso sentimo nos alegres.

Ou, na «música triste», os sons têm inícios e fins «lentos», as notas descem, o equilíbrio é sempre «para baixo», os sons são pouco brilhantes e o volume de som é baixo. Finalmente, na música «angustiada», o equilíbrio parece quase impossível de atingir: sempre que se entrevê uma solução para o desequilíbrio verificamos que ele não aparece (exemplo típico disto é a modulação contínua em Wagner: fica se horas à espera do reestabelecimento da nota principal e o compositor tem um prazer quase mórbido em no la negar).

Quer isto dizer que, para compreender bem a música, precisamos de deixar de pensar que as emoções são a matéria primária do sentir: o que é primário são as sensações do corpo, não os nomes (alegria, tristeza, desespero) que damos aos nossos estados de espírito. Ser sensível à música implica ser sensível ao corpo e às suas sensações; na medida em que não se der nomes a essas sensações conseguiremos entrar no mundo mágico da música e afastamo nos do espaço contaminado das palavras.

Interpretar As experiências do corpo

Actualmente quando se diz «corpo» está se muitas vezes a pensar no corpo dos outros e da maneira como vemos o corpo dos outros. Na música (e, na verdade, em qualquer forma de arte) o que é importante é o que sentimos no nosso corpo.

Contrariamente à fome, à sede, ao sexo, a música não tem um local específico onde se sente e não resulta numa motivação clara: a música, por si só, não nos pode fazer sentir fome, sede, ou desejo. O tipo de resultado corporal da música corresponde, como disse, a estados gerais de actividade, distensão, força, equilíbrio desequilíbrio.

Digamos que a música provoca, nas pessoas que lhe são sensíveis, disposições para sentir emoções e não emoções específicas. Tenho consciência de que é difícil explicar o que quero dizer. Como já disse acima, a emoção é um conteúdo específico e a que damos nome. Na música há apenas tendências corporais – uma espécie de sentir primário, sem objecto. A música é a experiência de emoções não sociais por definição: tem que ver com o que sentimos em nós e não relativamente aos outros.

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O corpo pode ficar tonificado, pronto para a acção, ou, pelo contrário, átono e em absoluta paz. Podemos sentir coisas como a repetição obsessiva de certas notas ou motivos musicais como agressões – como coisas insuportáveis – e podemos sentir uma melodia simples e que leve ao equilíbrio como pacificadora. É exclusivamente dessas pequenas coisas que é feito o significado musical. Há uma lógica corporal, muito semelhante àquilo que penso suceder na dança e igual ao que acontece ao nosso corpo quando falamos de qualquer assunto com outra pessoa.

Quando sentimos ternura os nossos gestos são macios, sem força, os nossos músculos estão em repouso. Quando alguém nos insulta retesam­ se­ nos os músculos, estamos preparados para bater. Se conseguirmos simular corporalmente uma sequência de estados corporais teremos exactamente noção dos efeitos que a música tem em nós.


Trata se, portanto, de uma sequência de estados posturais e é a essa sequência que se chama estrutura do discurso musical. Na música simples pode haver apenas um estado corporal ou postural. Nas músicas mais complexas o interesse vem da maneira específica como se seguem esses estados e das relações entre eles.

Uma complexidade adicional da musica vem do facto de que há muitos factores simultâneos a influir nos nossos estados posturais e corporais: como disse no início, o timbre, a intensidade do som, a relação entre as notas. O estudo desses factores nunca foi feito (ou pelo menos nunca foi bem feito), de modo que não sei dizer qual o efeito de cada parâmetro no nosso corpo. Posso tentar analisar o efeito de cada parâmetro no meu corpo, mas isso ficará para outro sítio.

O que é importante agora é compreender que a sequência dos estados corporais é absolutamente livre na música. Enquanto que, numa conversa com outra pessoa é difícil passar da cólera à ternura, na música é perfeitamente exequível passar de uma tensão muscular extrema a uma atonicidade quase absoluta. Da mesma maneira, é possível passar da maior excitação à maior tranquilidade.

A gramática das sequências

Isto significa que não há sequências de estados corporais errados nem certos. Mas não significa que cada época não tenha escolhido o tipo de sequência de estados corporais aceitáveis ou inaceitáveis.

Mas vai longo. COntinua, como se dizia antigamente.

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