segunda-feira, 16 de maio de 2016

Carta a uma rapariga que perdeu um grande amor


CARTA A UMA RAPARIGA QUE PERDEU UM GRANDE AMOR

Sei como te sentes. É toda a vida que parece que se foi, é o próprio chão vivencial que parece que nos foge. Não há rumo, nem sentido. Não há futuro nem passado, apenas o presente e a pavorosa angústia que o preenche. O passado, e com ele o sentido, foram­ te retirados. Tudo o que era teu, teu e d’Ele, não é, de momento, de ninguém. Foi tudo como que amputado, como que decepado e sangra. Tudo dói. Os únicos momentos suportáveis são quando dormes, quando não te sentes. Queres morrer, mas falta­ te a coragem. O não ser parece­ te um sono de que não se acorda e de que avidamente não queres acordar. 

Tudo quanto tinhas era teu, mas não apenas teu. Era vosso, de ti por Ele e d’Ele por ti. E é isso que agora vês em toda a tua vida: tudo o que tens existiu entre ti e Ele. Tudo é um sinal dilacerante do que perdeste, tudo te diz que o que parecia ser nunca foi.

Sei como gostavas do musgo nas paredes de pedra, dos fetos debaixo das árvores. Sei como aprendeste a perder­ te n’Ele como te perdias na profundidade do verde do musgo. E sei que por isso já não consegues perder­ te em nada, porque perder­ te em alguma coisa te recorda que já te não podes perder n’Ele. Estás sozinha, sabes que ninguém te pode ajudar. Estás sozinha porque a beleza que sentes não a podes dar a ninguém e que, para ti, dói mais senti­ la do que negá­ la. E é assim que vai ser sempre, até encontrares a quem dar se ainda o conseguires fazer: a beleza, que dantes era esperança, sinal de amor, é agora recordação amarga. O musgo vai deixar de ser um poço em que entravas, uma esperança mágica, para ser apenas um bonito tom de verde. O vento nas folhas dos choupos, que antes te dava paz e te centrava a nostalgia do ser no amor que sentias e no conforto da companhia é agora apenas o ruído indiferente do vento a passar por entre folhas. É um ruído belo, mas é um ruído que te mostra apenas que a beleza se desinteressa de ti. Tudo deveria calar­ se, tudo deveria dizer­ te que a beleza já lá não está porque tu estás de luto, porque a beleza em ti já não existe. Mas ela está lá, indiferente ao teu sofrimento. E a beleza passa a doer, a mostrar­ te que estás sozinha. Já não celebra o teu amor e o teu ser, mas apenas te lembra de que tu és só, que mesmo a beleza se desinteressou de ti.

É nessa beleza que reside a tua salvação, mas também a tua condenação. Hás­ de conseguir compreender que essa beleza existe porque tu a vês, não porque a vês para Ele. A beleza é tua, não vossa. E vais, pouco a pouco, conseguir vê­ la. Mas nesse momento mudarás: compreenderás que és tu e o teu mundo, tu no singular, sem complemento. Nesse momento que perceberás que estás sozinha e que vais continuar sozinha para sempre, porque o que sentes será sempre apenas teu. Se conseguires voltar a encontrar a quem dar a profundidade do musgo que voltaste a sentir, renascerás. Mas se não encontrares ou tiveres medo de a voltar a mostrar ficarás em ti para sempre.

Não será fácil viver em ti. A beleza é algo que se dá. Só faz sentido achar belo o que se pode mostrar. Tu mostraste­ o apenas a uma pessoa. A partir de agora vais conseguir vê­ lo só para ti? Ou vais tentar mostrá­ lo a quem te comover, quase sem selecção? Se for esse o caso, viverás apenas em ti, e os outros a quem mostras serão apenas um suporte de ti próprio, uma espécie de montra dos teus sentimentos. «Vejam como é lindo». Ao compreender que o acto de mostrar é apenas equivalente ao acto de sentir, compreenderás que estás ainda mais sozinha, que mesmo os outros são apenas objectos, interlocutores sem significado, uma plateia que te serve de apoio concreto. Os outros serão apenas projecções de ti, apoios à tua própria emoção. Estás sozinha, tu e o que sentes.

Tu não és uma diletante do amor ou da beleza –­ duas palavras para a mesma coisa. Ao tratar essa coisa como algo que se mostra a qualquer pessoa sentes­ te a trair­ te até ao âmago. Podes tentar fazer do mostrar uma missão, podes ensinar. É um acto de ternura mas ao mesmo tempo de renúncia.

Tens de encontrar a quem dar que compreenda. Pode ser a crianças. Pode mesmo ser no abstracto: podes escrever, fazer música, criar a partir de ti. Os outros, se quiserem, que encontrem lá o que lhes aprouver. Estás sozinha, mas na medida em que conseguires objectivar a beleza que sentes num suporte que não sejam outras pessoas terás conseguido voltar a viver.

Podes ter a sorte de encontrar quem aches que mereça receber o que tens para dar e podes mesmo conseguir receber de novo. Se isso não acontecer, a solução é apenas dar sentido à tua própria beleza objectivando­ a para ti.

Viver quando se sente é difícil. Vive para ti e faz beleza ainda que não encontres a quem a dar.