segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Sobre a radicalização política.

Num artigo recente no Público, Pacheco Pereira defende que houve uma radicalização da direita; admite, também, que o Bloco de Esquerda promoveu a reedição da dicotomia esquerda-direita. Num artigo recente do The Economist lê-se que nos Estados Unidos há, igualmente, uma radicalização, sobretudo à direita.

Tomemos em consideração o que diz Pacheco, que é mais próximo da nossa realidade, e consideremos depois o efeito mais geral da radicalização à direita e à esquerda.

O que Pacheco diz é que a mensagem da direita se transformou numa realidade nas mentes das pessoas. O que foi assimilado é simples: que há que ter as contas certas e que esse argumento é mais forte do que os argumentos de justiça social.

Isto é verdade? Creio que sim. Compreende-se? Creio igualmente que sim.

Que é verdade em Portugal prova-o o facto de Passos Coelho ter ganho as eleições, quase com maioria absoluta, com esse mesmo argumento. No plano europeu essa ideia foi principalmente defendida pela Alemanha, mas conseguiu determinar a política da UE. Que se compreende mostra-o a necessidade de reformar o estado social europeu, mesmo antes do domínio alemão.

O facto de se compreender que os gastos com as políticas sociais (parte importante dos gastos do Estado) tinham atingido níveis incomportáveis não justifica que se diga que não houve um reforço das posições da direita liberal. Pelo contrário, os dois fenómenos estão ligados: houve tal reforço e em consequência parcial do insucesso das políticas demasiado generosas.

Dir-se-á: «a esquerda falhou e por isso a direita sai reforçada».

Mas não foi isso que se passou. Não foi «a esquerda» que falhou: foi o modelo social europeu, que não era particularmente de esquerda. Era partilhado pelo centro (social-democratas e democratas-cristãos). Ambos os grupos defendiam um Estado interventivo e com preocupações sociais. Na Europa esse modelo foi atacado por Margaret Thatcher; e, com a crise financeira, todos os países tiveram de o repensar.

Foi então que a direita mudou o discurso: de democrata-cristã passou, quase sem transição, a liberal. A razão é que a democracia cristã, isto é, a ideia do Estado Social forte e da economia parcialmente dirigida pelo Estado, falhou. As outras ideias de direita (nacionalismos, monarquia iluminista, etc.) estavam desacreditadas. Mas havia um outro pensamento económico «de direita» a emergir nos anos 80 — precisamente o neo-liberalismo, popularizado por Milton Friedman mas que nunca tinha deixado de existir, mesmo no tempo de domínio do keynesianismo. Foi essa ideia que os partidos de direita europeus abraçaram.

Os partidos políticos não têm tempo de estudar ciência política: têm de ganhar eleições, e para isso precisam de uma mensagem simples e clara. A da direita passou a ser que o mercado tudo resolve. Na Europa sabe-se muito bem que não é assim: num sistema de mercado completamente livre há acumulação de capital, assimetrias de rendimentos, instabilidade de trabalho e, claro, revoluções. Foi isso mesmo que o Estado Social pretendeu resolver. A direita voltou, então, a uma solução já testada (no Séc. xix) e rejeitada.

Pode então dizer-se que houve uma radicalização do discurso da direita? Não exactamente, o que houve foi uma mudança de paradigma: abandonou-se um paradigma em que o Estado tem intervenção na economia para um outro em que deixa de a ter. A «radicalização» vem de que o liberalismo é o oposto da democracia cristã: defende o apagamento do Estado em vez da sua importância como actor económico e social. Ou seja, há mudança de filosofia política por parte dos conservadores, não radicalização de uma posição conservadora anterior.

É então verdade, como defende Pacheco Pereira, que várias das reivindicações que passam agora como de extrema-esquerda não o são, de todo. Assim, a assunção, pelo Estado, da educação, da saúde, das estradas e caminhos de ferro, são todas elas, directamente herdadas do republicanismo. A preocupação com o ambiente, agora considerada um valor de esquerda, foi sempre uma preocupação de qualquer pessoa informada. Diferenças entre a esquerda e a direita eram mais baseadas na religião (casamento, divórcio, igualdade entre homem e mulher) e no nacionalismo/internacionalismo (defesa da língua e da cultura nacional ou internacionalismo) do que com qualquer dos anteriores.

Retomemos então a pergunta inicial: houve radicalização da direita? Não, houve mudança de paradigma.

Ora o liberalismo, no seu extremo (no seu absurdo, parece-me) defende que o Estado deve quase desaparecer. A saúde seria privada, a educação também, as comunicações, transportes, tudo seria resolvido apenas pela iniciativa privada. Esse modelo nem nos Estados Unidos existe, mas tem uma lógica mental tentadora: se todos seguirem o seu interesse farão aquilo que os outros querem para vender a mais baixo preço. É verdade, mas isso nunca ocorre: há sempre cartéis, grupos que tomam conta do poder e monopólios. O mito da ausência de Estado é, precisamente, um mito.

Mas tal como um socialismo primário («a terra a quem a trabalha») foi popular por ser fácil de perceber, um liberalismo primário («a iniciativa privada tudo resolve») também o é.

Tudo isto dito, é verdade que agora passa como mensagem de extrema-esquerda a antiga mensagem do centro europeu. Que se corre o risco de substituir a filosofia política pela economia (mais uma vez, ao arrepio da tradição política europeia). E, finalmente, de a direita voltar a defender uma sociedade assimétrica, injusta, potencialmente explosiva em termos sociais.

O exacto contrário da democracia cristã europeia.

A direita radicalizou-se? Sem dúvida.