terça-feira, 7 de maio de 2013

Razões psicológicas e culturais da Falência da Democracia em Portugal

Razões psicológicas e culturais da Falência da Democracia em Portugal



Breves considerações sobre a origem das sociedades – Não sabemos como as sociedades do homem anterior a sapiens se organizavam (ou sabemos pouco) mas sabemos qual pode ter sido a organização original da nossa espécie.  Aparentemente, formávamos grupos pequenos, identitários, e sempre em guerra uns com os outros.  Assim se geraram duas tendências: para a cooperação altruísta com os membros do nosso grupo e para o ataque aos membros dos grupos rivais.  Essas duas tendências exprimem­‑se no grupo identitário, que define amigos e inimigos

Nesses grupos simples há um egualitarismo relativo, mas há sempre, pelo menos, classes de sexo e de idade; frequentemente surge a diferenciação do feiticeiro e do guerreiro, embora o feiticeiro possa ser guerreiro. 

Nas sociedades que obtêm mais recursos do meio (quer por caça e recolecção quer por mistura com a agricultura quer ainda apenas pela agricultura) deixa de haver igualitarismo: há famílias ricas, geralmente com uma ideologia que justifica a diferença (os reis­‑deuses egípcios, por exemplos, e todas as sociedades do Crescente Fértil).  Nesses casos há uma maior separação de funções, que pode incluir padres, guerreiros, agricultores e os chefes, que acumulam, pessoalmente, enormes quantidades de riqueza.  O clero geralmente também o faz.  Os grupos mais fortes vão conquistando os outros (exemplo: a expansão de Roma) e há impérios baseados na estratificação social intensa. 

Na Europa pós­‑invasões bárbaras sucedeu que grupos guerreiros deitaram abaixo a civilização romana.  Desses escombros nasceu uma nova sociedade de pequenos grupos, baseados na posse de homens e de terra: servos que trabalhavam a terra para o seu senhor, o conquistador bárbaro.  Houve, progressivamente, um emparcelamento das terras, à medida que os descendentes dos conquistadores conseguiam alargar os seus domínios: o rei tinha de recompensar os seus guerreiros e fazia­‑o com terras.  Isso levou a uma fragmentação dos territórios em vários poderes rivais (feudalismo) que apenas terminou no Séc. xvi, com a centralização do poder real (de que é exemplo, em Portugal, D.  João II). 

A centralização do poder real teve sucesso em Portugal e Espanha e em França.  Não teve sucesso na Alemanha e foi sempre contestada na Inglaterra.  Na Flandres não chegou a existir.  Há razões diversas para isto.  Na Alemanha houve incapacidade do Imperador; na Inglaterra houve, desde cedo, uma enorme rivalidade entre o Rei e a burguesia, que manteve sempre um poder suficientemente grande para se conseguir representar no Parlamento.  Aproximadamente o mesmo ocorreu na Holanda. 

O poder real central funciona de maneira relativamente simples: o rei acumula, em seu nome, grandes riquezas.  Os nobres perdem a sua função guerreira para passarem a gravitar na corte.  Consoante o Rei o permita ou não, os burgueses podem enriquecer.  Em Portugal não sucedeu tal porque os judeus foram expulsos. 

Primeira consequência psicológica – Surgem aqui dois modelos de pessoa com poder, modelos esses que são em tudo opostos.  O modelo do aristocrata é o do guerreiro arrogante que apenas faz a guerra; o seu poder assenta na exploração de um conjunto de terras e de pessoas que lhe estão, em maior ou menor grau, fixadas.  O burguês têm outros valores: o trabalho árduo, a palavra comercial, o lucro, as trocas comerciais, a competição, a necessidade de fixar regras funcionais para prever o comportamento dos outros e planear negócios.  A burguesia não se baseava como agora, em tecnologias muito complexas mas em cadeias de produção.  Dando o exemplo da tipografia, havia mestres e aprendizes (sujeitos a uma forte disciplina).  O mestre poderia chegar a quase não se ocupar do ofício de tipógrafo (geralmente não o fazia) e limitava­‑se a explorar comercialmente a empresa criada.  Associada à tipografia havia inúmeras profissões: fabrico de papel, de punções, desenho de letras, alfabetos, revisores tipográficos, encadernadores, cada uma com a mesma organização.  Essas várias profissões encaixam­‑se umas nas outras e têm prazos exactos a cumprir de maneira que quem compra, por exemplo, uma certa quantidade de papel saiba que a vai ter na data acordada. 

Nos países em que a aristocracia e o rei não conseguiram impor duradouramente a sua força o modelo burguês impôs­‑se.  Permitia, afinal, alguma mobilidade social e dava empregos mais bem pagos e menos penosos do que a agricultura a que o sistema aristocrático condenava os servos e trabalhadores rurais.  Nos países em que o modelo aristocrático se impôs a burguesia, assim que enriquecia, imitava o comportamento dos aristocratas, comprava terras e instalava­‑se na agricultura (foi o que sucedeu em França).  Em Portugal, no Séc. xvii, residentes ingleses espantavam­‑se que os comerciantes enriquecidos tivessem vergonha da sua profissão e educassem os filhos para serem outra coisa em vez de desenvolver o negócio – uma possibilidade era mandá­‑los estudar teologia ou direito e assim entrar na «nobreza do pano verde», isto é, o enobrecimento por serviços prestados à coroa através da administração (pano verde porque se estendia um pano de burel verde em cima de uma mesa para fazer uma secretária; é daí que vem o termo francês «bureau» que significa secretária e escritório). 

Como vimos, o modelo aristocrático baseia­‑se na diferença substancial entre as pessoas nobres e as que o não são e na submissão incondicional das segundas às primeiras; baseia­‑se, também, numa hierarquia rígida: é o rei que manda e assim por diante até ao camponês.  O que define um estado é o rei, senhor e quase deus identitário de um povo: o sistema é colectivista, não individualista. 

A burguesia é, por força da competição, individualista; e é mais igualitária do que a aristocracia: os homens definem­‑se pelo poder que conseguem ganhar pelo dinheiro e não pela sua origem (dentro de certos limites).  A burguesia tem de saber fazer planos a longo prazo e leis que definam as relações entre as pessoas.  Deixa de ser a essência da pessoa (o carácter quase sagrado, deificado, do aristocrata) a determinar as suas relações com os outros para ser uma lei que, escrita ou consuetudinária, garante o funcionamento da co­operação entre os vários homens de negócios.  Não faz qualquer sentido haver um «rei dos burgueses»: todos têm de se reunir para pensar no futuro comum.  É esta a origem de uma forma de «poder do povo» (porque a burguesia era «terceiro estado», isto é, não era nem aristocracia nem clero) que teve a sua expressão maior na Revolução Francesa: a passagem do poder da aristocracia para a burguesia. 

Pobres e ricos na aristocracia e na burguesia – Num sistema puramente aristocrático um plebeu não tem nenhum poder e está completamente nas mãos do clero e da nobreza.  Sem a possibilidade de ascensão social através do comércio e da indústria fica reduzido a esperar esmolas dos ricos.  Efectivamente assim acontecia em Portugal: havia sessões de esmolas públicas.  Nesta situação, o povo aprende a impotência total, a paciência, a conformação, e um certo estoicismo: se nada pode fazer, apenas pode esperar.  Mas desenvolve, também, valores de profundo ressentimento com os poderosos e estratégias fraudulentas de os enganar: trata­‑se do modelo do espertalhão, do Chico­‑esperto, que todos conhecemos.  Enquanto que numa sociedade burguesa o pobre pode, embora com dificuldade, enriquecer pelo puro trabalho e probidade, numa sociedade aristocrática apenas pode ganhar poder pela intriga e pela desobediência às leis.  Valorizam­‑se então, nas duas sociedades, éticas diferentes: nas aristocráticas, o que o povo espera é esmola e clemência por parte do poder, como as crianças dependentes dos pais.  Nas sociedades burguesas isso pode ocorrer, mas tende a ser mal visto: o caminho do enriquecimento é o trabalho e o que se pede ao estado é que faça leis que o permitam e não faça guerras que o perturbem.  Quem pede, nessas sociedades, está a fazer batota: o dinheiro ganha­‑se pelo trabalho e pela probidade, não pela caridade. 

A religião dos países de poder real e de poder burguês reflecte essas diferenças – no seu mais extremo entre o catolicismo piedoso e o calvinismo inflexível que considera o lucro como uma marca de virtude.  Que o protestantismo encaminhou as democracias é bem sabido. Veremos como o catolicismo/aristocratismo preparou o caminho dos totalitarismos. 

Portugal, aristocratismo, catolicismo, comunismo – Em Portugal o modelo foi, no mais extremo, aristocrático.  A coroa tinha vários monopólios, baseados numa política de exploração de zonas além­‑mar; o trabalho fazia­‑se aí, não em Portugal, em que apenas tinha de haver administração.  Apesar de mudanças significativas nos anos 60 (industrialização muito forte) o modelo continuou a ser aristocrático: os novos aristocratas eram os professores de Direito das Universidades. 

Esta situação é, pois, muito antiga.  Por isso, entranhou­‑se no povo uma relação de ódio­‑submissão ao poder.  Por volta de 1800, a Duquesa de Abrantes, francesa, comentava que em Portugal um dos valores mais altos é o «coitado».  Se um assassino for perseguido pela polícia o povo dar­‑lhe­‑á guarida.  Isto ocorre porque a polícia representa a autoridade, isto é, os nobres, e quem é por ela perseguido é, automaticamente, feito aliado do povo.  O poder nem tem rosto, são «eles» (também ocorre em França, mas creio que não na Alemanha).

O sentimento preponderante é de que, não estando no poder, não posso ter qualquer influência: gera­‑se uma dinâmica de conformação completa, de dependência integral do poder e uma sensação de impotência total.  «Eles» decidem, «eu» tento esquivar­‑me e ludibriar as regras que «eles» me impõem para manter o poder que têm. 

Daqui provêm dois pontos de vista opostos.  Se eu for povo, quererei esmola e tentarei enganar o governo; o povo é bom, porque é uma vítima; o governo é mau, porque é verdugo.  Se eu for governo, direi que o povo é ignorante, interesseiro, e que não se pode confiar nele.  Ou seja: geram‑­se as posições de origem das ditaduras de esquerda e da direita. 

Esta situação leva a democracia ao total descalabro: o povo elege quem se identifica com ele.  Aqui há uns anos dizia­‑se de Mário Soares (sondagem no Expresso) que ele era um dos homens mais ricos de Portugal.  Creio que o raciocínio é: se ele lá está, encheu­‑se, e fez muito bem, «porque eu faria o mesmo» (relato real).  É esta ideologia de escravo que nos deu primeiros­‑ministros como José Sócrates Pinto de Sousa, que todos sabem que mente e todos suspeitam de ter enriquecido e feito negócios à custa de todos nós; é isso que manteve presidentes de Câmara corruptos a governar (Isaltino, Fátima Felgueiras).  Não há, assim, democracia possível. 

Contudo, foi o regime que se trouxe para Portugal: copiou­‑se os modelos funcionais das democracias europeias ocidentais, que decorreram do modelo de pessoa individualista, cooperativa e autónoma e da ausência de diferenças abissais de poder entre grupos humanos.  Logo de início houve, em Portugal, sinais de que a mentalidade aristocrática continuava: o povo pedia dinheiro, os governantes davam as esmolas; os governos acabaram com os cursos técnicos (para toda a gente ter um título e todos aprenderem a trabalhar sem sujar as mãos). 

Mas os chicos­‑espertos entraram no governo, legislaram e garantiram que eram eles a ganhar com isso: acabaram com a administração pública independente, substituída por capangas nomeados; nem a justiça já é independente e diz­‑se que os Códigos foram mudados para proteger quem está no poder; os investimentos visam lucros privados, não o bem do país; os deputados legislam nominalmente a bem do país mas têm ligações de interesse privado e financeiro com as firmas que há que dobrar ao interesse da nação.  Tudo isto debaixo da tolerância dos eleitores, habituados à impotência absoluta e à tolerância com os chicos­‑espertos. 

Que democracia? – A única possibilidade de sairmos do caos em que estamos é reformando a democracia e transcendendo a visão comunista/fascista da política.  Para reformar a democracia só há duas soluções: uma revolução ou um partido novo que ganhe as eleições e faça novas leis e novas formas de funcionamento das instituições.  Não sei porquê, todas as pessoas que falam na «refundação da democracia» dizem­‑se indisponíveis para participar num partido novo.  Será ainda a ideia de que quem está no poder é intrinsecamente corrupto?  Que esperam então?  Uma revolução?  Mas todos sabemos que tal revolução, na situação em que estamos, é impossível.  Revolução para quê? Para um novo Salazar? Onde é que ele está? Para um regime comunista? Seríamos esmagados pelos novos capitalismos (China, Brasil, Índia) e ostracizados pelos velhos (Europa, Estados Unidos).  Para outra democracia?  Na situação económica em que estamos ninguém o vai tentar.  Sejamos realistas, a única possibilidade é um novo partido com regras draconianas para com os seus membros e com um programa coerente e honesto. 

Para assegurar uma democracia funcional não basta isso.  É necessário que as pessoas se interessem pela coisa pública: deixar de falar em «nós», sem poder, e «eles», com poder.  A geração mais nova é, pelo menos quanto eu posso avaliar do que sei dos meus alunos, válida.  Mas demitiu­‑se da política.  Sem dúvida como os «refundadores da democracia», mete­‑lhes nojo; ou então são ainda demasiado novos para conseguirem sair dos pequenos mundos que conhecem.  E assim faço a minha segunda proposta: que se crie, nos liceus, cadeiras que expliquem, por exemplos concretos baseados na teoria dos jogos, a necessidade de participação honesta e responsável na cidadania. 

A liberdade, a democracia, dão trabalho.  Se a queremos temos de lutar por ela.  Recordemos que não estaríamos a ter esta conversa se não vivêssemos em democracia. 


Santo Estêvão, 7 de Maio de 2013


R. SáNogueira Saraiva