quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Ars Vivendi: Ler o Jornal1

Um fragmento de Georges Daninos (sobre a nostalgia da inocência de uma vida toda programada: Monsieur Massenavette), a Aparição do sentir o eu, de Vergílio Ferreira e a Madame Bovary, de Flaubert, são os três inspiradores deste texto (incongruentes? Mas um trágico é sempre um cómico e vice­‑versa; e creio que Flaubert se riu e enterneceu ao mesmo tempo com as Bovarys que conheceu). M. Massenavette é um pasteleiro de uma cidade de província e Daninos inveja a vida dele por um segundo: uma vida calma, assente em princípios que não são postos em causa e todo entregue à sua profissão. Na Aparição discute­‑se a descoberta do eu, o milagre do ser contra o não ser. Na Bovary trata­‑se da necessidade de sentir e de viver intensamente.
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Quando eu era pequeno tinha a ideia de que os crescidos se levavam a sério e habitavam totalmente a personagem que eu via. O protótipo disto era a leitura do jornal: via­‑os ler o jornal, muito seriamente, mas não entendia como era possível uma pessoa interessar­‑se por coisas tão desinteressantes (porque separadas do desejo auto­‑centrado) como a política ou os faits­‑divers.
De tanto ver as personagens, em pequenos, acabamos por acreditar nelas. É mais tarde, quando tentamos nós próprios entrar para as personagens (usando o exemplo, quando tentamos achar o jornal interessante) que as coisas se alteram, porque sentimos a incapacidade de sair do nosso eu simples e auto­‑centrado que só se interessa pelos seus próprios caprichos e vontades. No jornal lê­‑se sobre coisas que não somos nós, pelo menos no sentido de não serem coisas que nos afectam directamente. É preciso uma pessoa sentir­‑se parte de uma sociedade, de um conjunto de normas, para compreender em que é que as notícias políticas ou económicas a afectam. Uma criança nunca será capaz disso, porque vive integralmente no plano dos desejos primários: aquilo a que o Freud chamaria o princípio do prazer.
A pessoa que lê o jornal com prazer sente­‑se, como M. Massenavette, parte de uma comunidade, conhece o seu papel, toma partido e assume o papel que a comunidade lhe deu. No limite, vive no papel, sem nunca sonhar com problemas existenciais ou sequer psicológicos. Os Mm. Massenavettes são a matéria­‑prima de que se fazem as sociedades estáveis: são a carne e o espírito que dão corpo às estruturas sociais. Cumprem, fazem cumprir e não existem como seres questionadores. Não compreendem a Aparição e nunca cederiam às tentações de Emma Bovary: a sua personagem social nunca o permitiria. A Bovary, pelo contrário, não tolera a obediência às normas do seu estatuto. Em parte porque é ambiciosa, em parte porque não as compreende mas as despreza, em parte –e talvez sobretudo– porque precisa de sentir. E como sentir para um espírito simples é apenas sentir os prazeres primários, procura o sexo. Mas, como a criança de Freud, vive no princípio do prazer. De resto, é um M. Massenavette que a Bovary rejeita: o seu marido, contente com a sua sorte.
Emma Bovary tipifica aquilo a que chamo não acreditar na personagem por baixo. Não conseguimos compreender os atractivos da personagem –não conseguimos chegar a ler o jornal, e apenas podemos fingir que o fazemos– porque o que realmente tem significado para nós são os nossos desejos imediatos, aquilo que nos cerca: não conseguimos interessar­‑nos pela discussão de uma lei que não nos diga respeito, não conseguimos interessar­‑nos pela ideia de «país». Somos todos no nosso querer e desejar e não no que se passa fora de nós e sem relação directa connosco.
Mesmo quando finalmente conseguimos interessar­‑nos pelo que se passa longe de nós –quando finalmente temos interesse na leitura do jornal– há sempre grandes tentações de cair no egocentrismo infantil. Se pudermos conseguir ser o centro do mundo e ter o que desejamos sentimo­‑nos de novo como crianças e sentimos o prazer inteiro do desejo gratificado. Daí que, na adolescência e, para muita gente, durante toda a vida, consideremos os que jogam realmente as regras e que se interessam principalmente pelo que vem no jornal uns tansos, uns ingénuos. Afinal, a regra que aplaudimos quando lemos o jornal pode ser a honestidade, mas eu vou lá resistir a ficar com o dinheiro todo ou a ir para a cama com a bela mulher de um amigo! Há, portanto, muitas pessoas que já lêem o jornal, mas sobretudo sobre o seu clube, sobre o seu carro, o seu computador, e têm sempre um olho para o que podem arranjar como gratificação primária. Digamos que lêem o jornal porque fica mal ler (ver?) o Playboy. E por isso há tantas «Revistas do Automóvel», «A Bola» e «Maria».
Há uma forma particular de mascarar o rejeitar por baixo em rejeitar por cima que é muito frequente. Isto é, conhece­‑se a personagem mas não se gosta dela. As razões são superficiais: rejeita­‑se apenas por achar que viver «daquela maneira» é vieux jeux ou «foleiro», sem realmente compreender o que se rejeita. Finge­‑se então um desdém «superior» pela posição que não se compreende porque se é primário e auto­‑centrado. Na minha memória estão todos os pedantes de todos os círculos «bem­‑pensantes» e muitas raparigas bonitas que se recusavam ao banal – como a Bovary. A recusa era puramente infantil: queriam apenas a gratificação imediata, mas, imitando quem realmente se pergunta porquê ler o jornal, diziam que o não liam porque o desprezavam. E dizendo­‑se acima das regras tentavam (e conseguiam e conseguem, pelo menos durante algum tem­po) que as outras pessoas os deixem seguir apenas a necessidade primária de prazer imediato, em nome de um «ideal» mais profundo. Ou seja, dizendo­‑se acima das regras, essas pessoas conseguem viver por baixo delas com o consentimento dos outros.
Claro que uma rejeição profunda da personagem é muito diferente e mais rara – na verdade é raríssima e provavelmente nunca é integral. Estar realmente acima da personagem implica compreendê­‑la, compreender o eu e compreender que, qualquer que seja a personagem, o eu é mais do que ela. Isto significa compreender que o que eu faço ou sinto não é tudo aquilo que sou, e que o eu mais verdadeiramente Eu é o que observa o que faço e sinto. Nesse sentido, o eu é a tal aparição de que o Vergílio Ferreira fala, o milagre de ser um eu. O eu­‑desejo, sensação de ser e prazer de fazer não é afinal eu próprio; eu sou quem pensa esse eu, quem o vê e quem o comenta. É, afinal, o aparecimento do eu racional, do eu cartesiano, que pode tentar compreender o outro eu, o dos impulsos, entu­siasmos e deveres.
Não se trata de dois eus diferentes, mas apenas de duas localizações diferentes da nossa atenção: a primeira é mais emocional e directa; a segunda existe num plano mais neutro, de não acção e de observação das possibilidades e das razões da acção.
Ainda que quase ninguém enuncie esta diferença entre eu­‑ac­ção/ emo­ção e eu­‑observação dos meus sentimentos e acções, as pessoas têm potencialmente consciência da diferença porque essa consciência está implícita na linguagem: «eu sinto­‑me alegre», «eu fiz uma asneira». Nestes casos a linguagem afirma os dois eus: o que observa é o que fala e refere­‑se ao eu que sente e fez. Na maior parte das pessoas este eu «comentador» limita­‑se a observar o que o eu acção faz. Nesse sentido pode criticar­‑se: «mas que estupidez», diz o eu comentador, «o que eu fiz!», sendo este segundo eu o eu agente. Mas essa crítica segue critérios que foram importados de outras pessoas, do que se ouviu: ou, retomando a metáfora, critérios aprendidos no jornal. Não são critérios que tenham sido realmente pensados pela pessoa.
Em parêntesis, é interessante notar que tanto M. Massenavette como Emma Bovary nunca desenvolvem realmente a capacidade de se questionar autonomamente. É certo que M. Massenavette se vê como membro da sociedade, visto e questionado por ela, enquanto que a Emma Bovary se centra sobretudo no seu prazer de mulher. Mas nenhum deles consegue criar novas regras ou justificar realmente o seu comportamento: «porque os outros fazem assim» e «porque eu quero» são as únicas explicações que eles poderiam dar de fazerem o que fazem. E fecho o parêntesis.
Quando as sociedades são estáveis, produzem­‑se os Mm. Massenavettes, que se entregam de alma e coração à sua personagem e tiram dela verdadeiro prazer: afinal vêm­‑se fazer o único papel que aprenderam. Podem subsistir angústias, mas geralmente os reforços sociais são suficientes para manter a pessoa bem disposta. Quando as sociedades são instáveis, produzem­‑se os camaleões sociais que vão copiando modelos aceites, mesmo quando são internamente contraditórios. São pessoas que copiam, que não são autoras da sua identidade e nem sequer questionadoras: são o que a sociedade lhes propõe e se o modelo é fragmentado e sem sentido, não são elas que o vão notar. Os Mm. Massenavettes, como as actuais pessoas em semi­‑crise existencial porque é bem ser­‑se profundo, são equivalentes e ambas lêem o jornal com prazer: apenas os jornais do tempo dos Mm. Massenavette eram mais coerentes do que os de agora.
Em todos estes casos a posição do eu que observa existe – na verdade é responsável pela exigência de ler o jornal, qualquer que ele seja. Mas a posição não é autónoma, mas controlada pela programação que nos vem de fora, seja ela conservadora ou post­‑moderna.
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Em algumas circunstâncias –o sofrimento psicológico e subsequente dúvida sobre si próprio, por exemplo– esse eu questionador ganha autonomia. A pessoa encontra­‑se mais tempo no estado de pensar nos seus próprios porquês. É nesse estado que podemos perguntar porque é que lemos o jornal, porque é que defendemos a família, porque é que somos de esquerda.
A descoberta do eu –a aparição do ser, como diria Vergílio Ferreira– é menos uma experiência existencial do que cognitiva. Como disse, a linguagem dá a todos a experiência de enunciar o eu racional (o «eu vou fazer» implica a existência desse espectador). Mas esse eu espectador não procura razões e, como nos casos anteriores, apenas se enuncia quando comenta o que o eu vital ou codificado pelos outros sente ou quer. É apenas quando aparece a capacidade de questionar (porque é que eu gosto de ler o jornal?) que surge o problema do significado, o problema da existência. No fundo a «aparição» é apenas perguntar porquê, é a passagem do eu agente ou emotivo para o eu pen­sador.
Como Vergílio Ferreira parece ter compreendido, essa experiência não é, em si, traumática a não ser que seja acompanhada da descrença num conjunto de valores – seguindo a metáfora, descrença da existência de qualquer jornal digno de se ler. Deus é a explicação natural desse conjunto de valores, mas não é a única: em vez de Deus pode ser a crença numa ordem natural, no progresso e no papel que cada um de nós representa nesse progresso ou, na verdade, qualquer outra convicção. Tem apenas de ser uma crença numa coisa maior do que o próprio eu, exterior ao sentir infantil do eu que deseja e se zanga. Voltando à metáfora, a pessoa interroga­‑se se o jornal tem os critérios que deveria ter. Questionar um critério não é apenas dizer que não como as Bovarys e os oportunistas na moda. Questionar realmente significa fazer o esforço de compreender o que esse critério realmente significa e não ficar convencido por esse significado; questionar realmente implica tentar outros critérios ou, no mínimo dos mínimos, tentar modificações ao critério. Para questionar critérios é necessário que a própria pessoa tenha ela própria critérios pessoais. Para o fazer tem de ser eu pensante, eu racional: tem de apresentar um sistema de valores autónomo. É esse sistema de valores que o sujeito cria que se torna maior do que ele e que lhe dá sentido da vida. É, pois, um substituto racional de Deus: uma entidade maior e exterior a nós próprios que determina como as coisas se devem fazer.
A verdadeira crise existencial não ocorre, pois, com a emergência do ponto de vista reflexivo e crítico do eu. A crise ocorre quando não se acredita na existência dessa entidade maior e se compreende que essa entidade é apenas uma projecção da nossa mente – mente que é, afinal, tudo o que existe. Nesse caso fica­‑se apenas com o eu original, o eu da criança e do adolescente mimado que quer, que sente e que deseja. M. Massenavette parece­‑nos longínquo, impossível, improvável e invejável no seu conforto assente em verdades eternas e nunca questionadas. A crise acontece quando se compreende a solidão profunda e essencial de existir: eu existo apenas na minha mente e nas minhas representações, e o resto apenas me afecta na medida em que eu reagir e me sentir atingido. As crenças dos outros podem não me atingir; mas atingir­‑me­‑á sempre o desejo, a dor, a fome. Sou então como a Emma Bovary? Não, porque sei que mesmo os meus desejos são irrelevantes a não ser para o meu corpo e nunca darão sentido ao desespero fundamental de não compreender o sentido de existir. Como a minha própria existência é apenas um acidente, um dia vai desaparecer o meu eu e com ele todo o mundo, porque o mundo é apenas o que eu represento. E isso não coloca nenhum problema, porque com a morte desaparecem todos os desejos; na ausência absoluta de eu é impossível sentir, de modo que a morte não pode assustar – é apenas um estado de não ser, que não se sente. A morte –o não ser– é desejável, porque se pára o ciclo infernal de compreender e não fazer sentido e compreender­‑se que não faz sentido.
O eu pensante compreende, então, que se é verdade que ele próprio não tem verdades, ele é, contudo, a única verdade. E quem vive predominantemente na posição de eu pensante não tem a escolha de se dedicar apenas ao eu­‑acção e emoção. Já que se vive no mundo como observadores, tentemos que o que observamos faça sentido e que tenha interesse: afinal, temos uma vida para viver. Ao compreender isto, tudo quanto nos é exterior –nomeadamente qualquer entidade maior, qualquer moralidade– deixam de existir. A razão, afinal, não tem verdades. É esta toma­da de consciência da superfluidade da razão que é a verdadeira experiência traumática, mais ainda que a negação de Deus ou de qualquer ordem: é a negação da importância do próprio ser pensante e do próprio acto de pensar. É, portanto, a constatação da completa irrelevância do ser, de se ser.
Não há saída para o problema: se quisermos impor, em qualquer caso, uma ordem, saberemos sempre que ela é arbitrária e nunca seremos convictos na acção; se quisermos ser vitais, como, digamos, um touro, nunca o conseguiremos, porque nos é impossível: estaremos sempre a ver­‑nos ser touro e não a sentir­‑nos touro, porque a decisão de ser touro vem da razão e não do instinto de ser, do eu primário. O problema é, como o Freud o compreendeu (Neurose e Civilização), in­solúvel.
A única saída –pelo menos aparente– é o hedonismo completo, fazer aquilo que me dá menos problemas e mais prazer. Não é o que vem no jornal, mas não esqueçamos que o Playboy é também um jornal: lêem­‑no os idiotas que se vergam ao deus desejo como quem se vergou a outra norma qualquer. Prazer, hedonismo, neste texto significam apenas procurar aquilo que torna a duração da nossa vida suportável. O que cada um acha que é melhor para si depende da pessoa. Mas é raro que seja apenas o deboche, porque se paga sempre por isso. Geralmente, se se for inteligente, ter­‑se­‑á uma vida pacata e com hobbies –mesmo que secretos e considerados condenáveis– bem escolhidos para nos manter entretidos. E, quanto aos outros, é usá­‑los para o nosso prazer. Mas isso nem sequer sei se é possível a uma pessoa normal.
A Ars Vivendi está precisamente em saber atingir um equilíbrio entre dois pontos de vista do eu: os pontos de vista agente e pensante. Trata­‑se, pois, de atingir a sofrosine, o equilíbrio a que os gregos aspiravam (certamente sem sucesso – basta pensar em Sócrates). Para chegar a esse equilíbrio é preciso compreender bem o nosso eu primário, mas também os preconceitos do nosso eu racional. E temos de saber, connosco, ser como um bom educador: tolerante e respeitador das especificidades e interesses do aluno, mas ao mesmo tempo suficientemente firme para conseguir impedir que o aluno –o eu primário– tome conta da nossa vida. É preciso aprender a dar­‑lhe expressão, a dar­‑lhe o recreio de que ele necessita mas sem excesso. Isso faz­‑se identificando aquilo de que realmente ele (o aluno, o eu primário) gosta –não aquilo de que o eu pensante ou os outros queriam que ele gostasse– e dando­‑lho nas quantidades necessárias para o manter tranquilo e satisfeito ao mesmo tempo que o eu professor (o eu pensante) mantém o controlo.
No fundo, a Ars Vivendi é ser um bom professor ou um bom pai de si próprio: o que decide para o aluno ou filho que jornal se deve ler e por quanto tempo.